Manifesto de indignação sobre as águas de abril em Niterói

Conheço Niterói desde criança, quando viajava de Macaé para o Rio de Janeiro e aqui esperava, com a família, nas intermináveis filas, as barcas para fazer a travessia. A espera às vezes era tão longa que dava tempo de deixar o carro na fila e ir almoçar naquela avenida que me impressionava e que parecia, depois da Presidente Vargas, em minhas percepções infantis, a maior rua do mundo. Lembro ainda da revolta da população contra a empresa das barcas, no início da década de 1960, que vi, não nos jornais, mas nas casas incendiadas dos Carreteiros, na Alameda São Boaventura. No início dos anos setenta, tempos em que vim do interior fazer cursinho para o vestibular, residi aqui e depois no Rio e acompanhei com pessoal interesse a construção da Ponte que aproximaria ainda mais as duas cidades irmãs. Após intervalo de alguns poucos anos, voltei com freqüência à cidade para rever amigos e, nos anos 80, viajava semanalmente à cidade parta cursar o mestrado na UFF. Depois que me tornei professor nessa Universidade, voltei a residir aqui em caráter definitivo, a partir de 1991, considerando-me, hoje, plenamente, um cidadão niteroiense, com esposa e filho nativos. E é nessa condição de cidadania plena que me manifesto sobe minha cidade.
Nas duas últimas décadas, tenho ouvido com desconfiança o insistente discurso político que coloca a cidade como tendo “excelente qualidade de vida”, embora, no íntimo, deseje e espere essa condição para todos os citadinos daqui. Costumo ter esperança histórica e acredito que a política – bem feita, embora feita por seres humanos – é o lugar da esperança. Sei que aqui reside uma questão contraditória e talvez insolúvel: Como fazer política sem políticos, sem que os humanos se profissionalizem na política e a tornem instrumento de suas ambições, de sua vontade de poder? Como perseguir a esperança fazendo política, se é nela também que se esconde – e, muitas vezes, se manifesta – a corrupção humana? Sei que essa estória de qualidade de vida é uma balela, constitui-se de indicadores quantitativos, muitas vezes ridículos. Mas sou reincidente em esperança política e acho que é a intervenção cidadã que pode alterar o curso da história; crença relativamente inabalável, decorrente de minha formação. Por isso que uma cidade pode melhorar sim.
Entretanto, nesta última semana minha cidade não sai das páginas dos jornais que noticiam as tragédias que, só aparentemente, decorrem das chuvas. Niterói está tão falada que também fiquei impelido a falar. No caos que o município enfrenta e que, infeliz e absurdamente, tem custado vidas, verifica-se a ausência do poder público em obras decentes que possam dar um destino digno aos nossos caros impostos. A ocupação urbana sem planejamento e com intervenções populistas, especialmente nas duas últimas décadas com o mesmo grupo no governo (ou desgoverno!) que tivemos (ou que não tivemos!) e que têm incentivado as ocupações irregulares nos morros da cidade, levando energia elétrica, pavimentação, desmatamento, títulos de propriedade, escolas precárias, por exemplo, mostra agora sua face eleitoreira, perversa e irresponsável. A badalada “cidade com um dos melhores índices de qualidade de vida do país e do mundo”, agora demonstra sua desqualificação, e devemos nos perguntar: Qualidade de quê? Qualidade para quem?
Quando vemos ruas serem desasfaltadas e asfaltadas várias vezes nos bairros nobres e a permanência da lama, da poeira e da buraqueira na periferia; quando os acordos e as alianças econômicas e políticas garantem as ocupações de áreas não edificantes por espigões para as elites que têm contenções de encostas bem feitas (basta ver a praia de Boa Viagem), enquanto as áreas populares se penduram pelos barrancos que escorrem com as chuvas (basta ver os morros do Bumba, do Estado, do Viradouro, da Ititioca, do Castro, do Palácio – e o exemplo do "Maquinho" (uma obra da Prefeitura para ser centro de cultura neste morro e que está precariamente pendurada em uma encosta deslizante a olhos vistos, já há algum tempo, em frente ao MAC - Museu de Arte Contemporânea, ambos com projetos de Oscar Niemeyer) está aí para todo mundo ver. Quando vemos os investimentos de milhões de dólares no profano Caminho de Niemeyer, onde os estudantes da UFF são assaltados dia e noite, pois não se gasta com segurança o que se gasta com concreto (já que a segurança é um serviço público que não gera dinheiro, enquanto que o concreto armado é encomendado às construtoras, estas sim, que sustentam, com seu caixa dois, as campanhas políticas para a Prefeitura de Niterói); quando vemos políticos se digladiando e depois se associando e depois se digladiando novamente e depois se associando cinicamente, em lamentáveis espetáculos públicos de falta de escrúpulos, de compromisso, de ética e de vergonha; quando vemos a sujeira ser varrida para baixo do tapete (basta visitar o lixão do morro do Céu - que belo nome! – ou o lixão coberto de casas e ruas pavimentadas que desabou no morro do Bumba); quando ouvimos o discurso que culpabiliza a população vítima dessa incúria ("O povo joga lixo nos bueiros, constrói em áreas de risco, não quer morar afastado do centro..."); quando vemos o serviço de transporte público precarizado, irregular, caro, limitado e indecente que acaba por justificar a permanência da população pobre nos morros das áreas centrais da cidade; quando temos mandatos judiciais que impedem a circulação de novas linhas de barcas; quando não se tem metrô (embora se tenha um leito de ferrovia de Niterói até Venda das Pedras, passando por São Gonçalo e Itaboraí, em total abandono); quando não há linhas de barcas para São Gonçalo, nem de ônibus, de lá para Icaraí ou São Francisco (onde o povo não reside, mas trabalha!), obrigando as pessoas a fazerem baldeação entre meios de transporte de empresas que têm a cidade loteada para eles, enquanto a população tem que passar pelos shoppings do horroroso terminal com o nome do pai do prefeito; quando vemos o campo de São Bento, na rua que também tem o nome do pai do prefeito – e que é o mesmo nome do atual prefeito – inundado e depois cheio de lama; quando pagamos nossos altos impostos à vista e em dia; quando vemos os salários dos políticos no executivo e no legislativo; quando temos uma Universidade Federal que pouco ou nada contribui com a reversão disso, seja por intervenções mais políticas do que técnicas, tanto no que se refere à Reitoria como ao nosso próprio sindicato; quando contamos os cadáveres de adultos, idosos e crianças que são aparentemente vítimas das chuvas – como se chuva fosse uma raridade, uma aberração da natureza, uma surpresa inesperada (dizem – “Choveu mais do que o esperado..." !!??), pode-se até pensar que as bombas que explodem no Iraque sejam esperadas, naturais, mas as chuvas, no Estado do Rio de Janeiro, não; quando vemos a indústria de multas de Niterói com os "pardais" escondidos e os recursos indeferidos (onde, no mesmo local e hora em que se paga estacionamento com cartela legalizada pela Prefeitura Municipal, podemos ser multados por estacionamento irregular!!??); quando ficamos sabendo dos bilhões de dólares em royalties que o Estado e o Município recebia (cadê?) e que agora, em campanhas manipulatórias, dizem que precisamos, para fazer todas as obras sociais, como se as tais obras estivessem sendo feitas com a aplicação dessas verbas (como se o saneamento, o transporte, a drenagem urbana e suburbana estivessem a funcionar); quando vemos Niterói como um paraíso das escolas privadas frente a uma rede municipal pífia. Quando, enfim, enchemos o saco e nem sequer lemos até o fim ou escrevemos um manifesto inconformado como este, dizemos em coro -"Que tragédia essa chuva!". E São Pedro leva a culpa.
No campo da engenharia, tecnicamente, deve-se trabalhar sempre com uma margem de segurança, seja atual ou futura, devido a fatores imponderáveis que, em algum momento imprevisto, estarão concorrentemente presentes. Dito de modo leigo, significa que, quando se projeta um elevador, por exemplo, deve estar prevista sua carga máxima (a cabine estar cheia de obesos) e o desgaste do uso (a fadiga dos cabos e engrenagens que têm um tempo de durabilidade); quando se projeta um prédio deve-se prever que todos os apartamentos estejam cheios de mobiliário e de gente e que o edifício esteja exposto a ventos fortes ou tremores de terra; quando se projeta uma ponte, que ela em algum momento possa estar cheia de carretas carregadas e paradas sobre ela, deve-se considerar a força da correnteza do rio na cheia passando debaixo dela. Ao abrir avenidas ou estradas, deve ser considerado o fluxo de veículos do futuro e não o do presente; a mesma coisa em relação aos usuários, quando se projeta uma estação de metrô ou um sistema de comunicação por celular ou Internet. Quando se constroem sistemas de drenagem das cidades costeiras, deve ser considerada a capacidade de vazão das tubulações pluviais e das bombas de sucção, para escoar as águas, mesmo com chuvas torrenciais e com a maré alta. O problema é que política e economicamente nada disso faz sentido e as instalações, ainda que sejam planejadas tecnicamente de um modo seguro, são executadas economicamente dentro da média. E essa decisão de fazer tudo pela média é política. Isso significa que, quase sempre, os elevadores são feitos (e autorizados a funcionar) para pessoas com cerca de 70 quilos; os prédios são erguidos considerando que é improvável que todos os apartamentos estejam cheios de gente ao mesmo tempo, que todos os moradores dêem descarga ou tomem banho, ou que ligarão os aparelhos de ar refrigerado ao mesmo tempo; que nem sempre a terra treme com intensidades mensuráveis na escala Richter. Como conseqüência, as pontes são construídas considerando a vazão média dos rios e o peso médio dos caminhões e automóveis que por ali irão passar; os sistemas de drenagem urbana são feitos para as chuvas esperadas, ou seja, para a média. E é no espaço que fica entre o planejado e o executado que mora o superfaturamento; o orçamento dos projetos é feito dentro dos parâmetros de segurança, mas a execução das obras fica na média; a diferença vai pro caixa dois dos empreiteiros corruptos e dos administradores públicos que torcem para não chover muito. É uma roleta russa. Mas se acontecer o pior, já existe a palavra, o discurso está pronto: “Que fatalidade!” Se o que ultrapassa a média é tecnicamente esperado e, portanto arriscado não considerar, a administração política das cidades diz, com a maior cara de pau, que “passou do esperado, ultrapassou em X % a média” – e isso é dosado milimetricamente: “Foram mais de 300 mm de precipitação! Isso é mais do que o dobro da média esperada para todo o mês de abril!”. E a sociedade diz: “Oh!” E aí tudo parece natural, mas seria melhor dizer, sobrenatural. A mesma Universidade Federal Fluminense que recebeu recursos públicos e fez os estudos – encomendados pela Prefeitura de Niterói – apontando as áreas de risco não cobrou politicamente as medidas conseqüentes, apenas dizendo: “Nós fizemos os estudos e entregamos os relatórios, mas aí veio a mudança política, né...” Tudo com uma naturalidade sobrenatural. Nesta semana, fui obrigado a ouvir todas essas frases e todo esse discurso de omissão, porque onde todos sabem, ou pensam saber, nenhum faz.
Digo tudo isso sem sequer ser engenheiro, apenas considerando o bom senso. Nossas mães e avós, donas de casa, ao fazerem o almoço ou planejar uma festa, consideravam que sempre “poderia chegar mais um, ou haver alguém com mais fome naquele dia”; ou seja, trabalhavam com uma margem de segurança, fazendo um pouco mais de comida para evitar um constrangimento e sempre sem desperdício, aproveitando o arroz da véspera para fazer os bolinhos. No caso dos governos, deveriam prevenir, para evitar perdas de vidas, não simplesmente um constrangimento; mas nem constrangidos ficam. O discurso dos culpados é que “não devemos procurar culpados nessa hora, em respeito às vítimas”, como disse o governador do Estado.
Se nossos governantes são irresponsáveis, incapazes, incompetentes, não podemos esperar que levem em conta a engenharia, a geologia, o planejamento urbano, as lições de ciências, mas bastava que  seguissem o exemplo da vovó preparando o almoço; ou mesmo do vovô que dizia: “Quem não tem competência não se estabeleça!”
Como cidadão niteroiense por adoção e professor da Universidade com dedicação exclusiva, não sei se sinto luto, nojo, vergonha ou tudo junto, ou não sei o que dizer. Mas quando a tolerância acaba ao contabilizarmos mortos, feridos, traumatizados e desalojados, e vemos os governantes estabelecidos na cidade há 20 anos com pretensões de continuidade, só posso dizer: Cínicos!
 
Dácio Lobo Jr.
(Professor de Sociologia da Educação da UFF)
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