Brasil: Carnaval, uma revolução feminina a cada ano

Rio de Janeiro, 22/2/2010 – Fátima Oliveira, uma das poucas médicas negras do Brasil, sempre frequenta “o carnaval mais bonito”, em Sabará, cidade mineira de 130 mil habitantes, onde “os homens se vestem de mulher” em uma festa “muito familiar, do povo, sem turistas”.

Os travestidos são comuns nos muitos e variados carnavais brasileiros. Mas é maciço em Sabará, disse Oliveira, integrante do conselho da Rede de Saúde das Mulheres Latino-Americanas e do Caribe e que antes presidiu a Rede Nacional Feminista de Saúde e Direitos Sexuais e Reprodutivos.


O carnaval brasileiro é “uma festa integral, libertária, de expressão corporal, de se desnudar do cotidiano para converter-se no que cada um gosta”, e isso favorece as mulheres, especialmente as negras, protagonistas inclusive de um resgate estético como “rainhas” e modelo de beleza, disse à IPS.

O carnaval tem origens pagãs anteriores ao cristianismo, com um caráter subversivo, de dar volta ao mundo. O catolicismo o adotou para ajustar-se à festa popular, mas dando-lhe o sentido de “adeus aos prazeres da carne”.

O carnaval do Brasil é considerado o mais importante dos realizados no mundo antes da quaresma, e se prolonga por mais de uma semana. As escolas de samba e as bandas ensaiam o ano todo para os desfiles que se multiplicam por todo o território nacional.

É “um momento, mas algo fica para o resto do ano”, afirmou Oliveira.

O carnaval é “uma inversão do mundo” para “a alegria, a abundância, a liberdade e, sobretudo, a igualdade de todos perante a sociedade”, é o “feminino em um universo social e cosmológico marcado pelos homens”, segundo Roberto da Matta, reconhecido por dar a essa festa a dignidade de uma interpretação antropológica.

Mas a festa serve apenas para “revelar seu justo e exato oposto” na realidade da vida, disse à IPS.

As mulheres desfrutam dessa inversão da ordem que altera hierarquias”, e sempre tiveram forte presença no carnaval, um lugar para o “exercício do poder da sexualidade” também dos homens, observou Sonia Correa, co-presidente do internacional Observatório de Sexualidade e Política.

Sexualidade complexa

Porém, há contradições. “O paraíso da sexualidade” que surpreende os estrangeiros, especialmente os asiáticos, pela maneira livre como os brasileiros “lidam com o corpo”, também compreende discriminações de raça, “a dominação masculina” e violências contra as mulheres e a infância, disse Correa.

Além do mais, é crescente a presença ostensiva de transsexuais, que já superaram a fase de simples exibição de suas opções e ganharam legitimidade para defender seus direitos no carnaval, e acabaram por politizá-lo. Uma de suas demandas é o direito a banheiros próprios, afirmou Correa.

Há alguns anos, contou, um repórter de televisão encantou-se com a beleza de uma jovem no desfile das escolas de samba do Rio de Janeiro, e a seguiu para perguntar seu nome. “Wilson”, foi a resposta.

A festa “mistura os desiguais”, mas é fruto de uma longa luta das comunidades negras, que criaram a forma atual do carnaval no Rio de Janeiro e em outras cidades. No início, há cerca de 80 anos, sofreram uma dura repressão policial, recordou Correa à IPS.

Hoje, os negros continuam dominando a música e a bateria, o coração da escola de samba.

Os homossexuais conquistaram reconhecimento como mão-de-obra artística e ocupam lugares de destaque nas escolas de samba, e a convivência nesse meio é positiva, mas não é assim no Estado da Bahia, onde o carnaval é diferente.

Ali não diminui a violência homofóbica, destacou Luiz Mott, fundador do Grupo Gay da Bahia (GGB), a mais antiga organização homossexual da América Latina.

No Brasil, mais de três mil homossexuais e travestis foram assassinados desde 1980, segundo dados do monitoramento do GGB, que assegura que o país é campeão mundial desses crimes. Em seu último informe, que vai de 1980 a 2008, somavam 2.998, e a média aumenta. Em 2008, foram 190 assassinatos, 55% a mais do que em 2007.

No carnaval de rua e maciço de Salvador aparecem vários grupos de homens vestidos de mulher e “assumindo seu lado feminino”, mas “contraditoriamente, são homofóbicos”, disse Mott. Se travestem com a intenção de ridicularizar e “reforçam seu antagonismo sexual para o resto do ano”, acrescentou.

Muitos aproveitam a permissividade do carnaval para “descarregar seus ódios” em um momento em que o ambiente de liberação e o consumo de álcool aumentam a vulnerabilidade de uns e a agressividade de outros.

Os trios elétricos, que animam as multidões de Salvador, contam com muitos cantores e músicos gays ou lésbicas, mas que não assumem publicamente sua condição, lamentou.

Para reduzir a homofobia, as paradas gay, como a de São Paulo que reúne três milhões de pessoas, são mais efetivas do que o carnaval, comparou Mott. Ali, os LGBT (lésbicas, gays, bissexuais e transgêneros) são protagonistas, ganham visibilidade e convivem com muitos heterossexuais, com efeitos socializadores, explicou.

Rompendo amarras

“O carnaval é para a mulher o que o futebol é para os homens”, diz Maria Balé, psicóloga de São Paulo que preferiu se dedicar a fazer fotos e bolos, porque rejeita “construir novos egos para quem apenas quer comprá-los falsificados”.

Trata-se de “um meio para se livrar das amarras” que as sociedades foram acumulando em suas histórias, ao “adestrar” os seres humanos para sua própria sobrevivência, com regras, limitações e repressões que se rompem em certos momentos para restabelecer a natureza humana profunda, “animal, no bom sentido”, explicou.

“É um retorno fugaz da natureza irreprimível, da potência criadora, do exercício de liberdade” humana, importante para ampliar o espaço da vida sem repressão, acrescentou. Esse é também o papel das artes, de outras expressões culturais e dos esportes.

Para as mulheres o beneficio é mais evidente porque têm “mais amarras das quais se libertar”, e, por isso, as filhas são as que mais têm de lutar com suas famílias para poderem participar da festa, destacou.

O carnaval é uma “festa feminina, também por acolher todo o mundo, uterinamente”, disse à IPS.

Sobre a mercantilização do corpo, cada vez mais desnudo nos espetáculos do carnaval, disse que “mais obsceno são os desfiles de moda, que valorizam a roupa que se usa, em um exercício do poder material” no qual as mulheres são usadas “como cabides”.

Oliveira rechaça a crítica moralista à nudez, “uma tradição cultural brasileira”. O carnaval “desnuda a hipocrisia”, e sem esta festa anual “a mulher seria mais discriminada” na vida cotidiana, disse Balé.

Carnavais como os do Rio e São Paulo derivaram em um espetáculo comercial, com os desfiles das escolas de samba em locais próprios. Isso se justifica porque ganharam “status de ópera de rua, uma evolução que exige um local adequado”, argumentou.

Balé recorda que foi em um desfile do Rio, nos anos 80, onde pela primeira vez uma mulher negra, conhecida simplesmente pelo nome de Pinah, apareceu com uma exuberante fantasia feminina no alto de um carro alegórico, celebrando a beleza negra de forma inédita.

Agora, multiplicam-se as atrizes e modelos negras no mundo da televisão e da moda.


(IPS/Envolverde)

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