Quando se pretende falar sobre “o impacto da primeira infância na compreensão do mundo” temos que considerar o mundo adulto e o mundo da criança, a desumanidade do primeiro e a humanidade do segundo. O adulto de hoje foi criança um dia e a criança de hoje será o adulto do futuro. De onde provêm, então, a crueldade e a desumanidade da sociedade contemporânea?
A idéia de que a primeira infância é um período decisivo na formação da personalidade, do caráter e no modo de agir do adolescente e do adulto encontra sustentação em dados recolhidos nos últimos 100 anos de pesquisas científicas. De fato, os primeiros seis anos são fundamentais para a constituição da pessoa. Achados recentes da Neurociência oferecem evidências de que acontecimentos precoces de natureza física, emocional, social e cultural permanecem inscritos por toda vida nas conexões sinápticas através de fenômenos de neuroplasticidade e biomoleculares. Todos nós construímos um mapa da realidade a partir das experiências vividas na infância. Assim, é possível, e muito mais eficiente, lançar os valores e fundamentos éticos da cidadania e da cultura de paz nesta primeira fase da vida, uma vez que a criança é dotada de uma capacidade absorvente, isto é, a criança é aquela que tudo recebe, julga com imaturidade, pouco recusa ou reage. Absorve e estrutura a personalidade do futuro adulto. É a criança que constrói seu conteúdo mental a partir do alimento social e assim acumula experiências que serão utilizadas para a construção de sua vida.
Sabemos há milênios que
um adulto é resultado de sua própria natureza, das suas relações com a família e
diferentes grupos sociais, com a cultura e com os valores, crenças, normas e
práticas. “Educai as crianças e não será necessário castigar os homens”, dizia
Pitágoras. Platão clamava pelos melhores “nutrientes” sociais e culturais a
serem transmitidos aos menores. Freud demonstrava que as interações precoces
envolvendo os aspectos cognitivos e, fundamentalmente, os afetivos são
pré-moldes das futuras relações do sujeito consigo, com os outros e com o
ambiente. Para Karl Jasper “o homem só pode chegar a seu verdadeiro ser
conduzido pelo outro”. Jean Jacques Rosseau definiu o homem como um ser “feliz e
bom”, determinando que os preconceitos culturais e as normas da vida social
produziriam “sua crueldade e infortúnio”. Locke assegurou: “a criança tem
tendência inata a desenvolver sua personalidade original sob a influência do
ambiente e da aprendizagem” e Maria Montessori definiu a preparação do ambiente
muito antes do ingresso da criança na escola como “chave da educação e da
cultura real da pessoa desde o seu nascimento”.
Esquecemos todos esses
ensinamentos? Dados práticos dizem que sim: Dos 22 milhões de crianças
brasileiras de zero a seis anos, mais de 14 milhões estão fora de qualquer
atendimento escolar da educação infantil ou de apoio institucional. O percentual
de não-atendidos chega à quase 70%, segundo dados do Instituto Brasileiro de
Geografia e Estatística. A agência Senado informa que 13 milhões de crianças
nessa mesma faixa etária, pertencentes a famílias carentes, estão fora de
creches. Somos também detentores do triste recorde de termos as crianças mais
estressadas do mundo. Infelizmente não temos, no Brasil, dados estatísticos
oficiais confiáveis com abrangência nacional sobre a violência contra a criança
e o adolescente exceto quando ocorre morte da vítima ou prisão do agressor.
Temos alguns dados locais, municipais, alguns estudos - frequentemente parciais
ou locais, algumas amostragens, muitas teses, mas nada de relevante com
abrangência nacional, além da taxa de mortalidade por “causas externas” que
inclui assassinatos, afogamentos, acidentes, inclusive a violência. Nosso
sistema de registro é falho, os profissionais que atendem a estas vítimas
geralmente não receberam o treinamento adequado, a notificação compulsória -
apesar de existir - não é aplicada devidamente. Viceja a guerra dos números com
equívocos, manipulações, uso e abuso político dos dados, enquanto ações efetivas
e preventivas não são praticadas, devido à costumeira justificativa da “falta de
recursos”, fatos abertamente denunciados no livro Midia & Violência. Sobre a
questão da violência e abusos perpetrados contra as crianças e adolescentes e
suas repercussões podemos citar indicadores indiretos como a evasão escolar,
adolescentes infratores ou em abrigos, e mesmo as taxas de morbidade (número de
crianças atendidas nos principais hospitais de emergência do país) são falhas.
Informações devem ser buscadas em sítios oficiais do sistema de saude ou das
taxas de mortalidade, via DATASUS (www.datasus.gov.br), IPEA (www.ipeadata.gov.br), IBGE (www.ibge.gov.br)
ou SENASP-MJ (www.mt.gov.br/senasp).
O fenômeno
da violência contra a criança no Brasil merece, por sua magnitude e ubiqüidade,
especial atenção: crianças abusadas e maltratadas em todas as classes sociais e
regiões, compreendendo abusos físicos, emocionais ou psicológicos, sexuais
(incluindo a exploração sexual comercial), diferentes formas de negligência
(omissão, abandono da familia e do Estado) e o trabalho infantil - considerados
crimes perante o Estatuto da Criança e do Adolescente - tornaram-se lugar comum
em nossa sociedade, banalizando a violência por meio da impunidade e da
corrupção que grassam nas várias esferas governamentais. Apesar de criminosos, a
maioria destes eventos não é sequer julgada ou punida. Muitas categorias de
transtornos mentais têm sido, há muito tempo, associadas ao abuso, negligência e
violência na infancia, principalmente os transtornos depressivos, de ansiedade,
dissociativos, de personalidade, ao uso abusivo de alcool e drogas, transtornos
de conduta com comportamentos transgressores, impulsivos, agressivos e
violentos. Muito se escreve e discute sobre a violência física, abuso sexual,
trabalho infantil e outros traumas perpetrados contra nossas crianças. Sem
reduzir-lhes a importância e gravidade, falemos também das formas mais
silenciosas e sutis de violência que acreditamos ser também um dos maiores
responsáveis pela transmissão transgeracional da violência em nossa sociedade.
Formas que todos nós poderíamos desestimular ou eliminar, se fôssemos um pouco
mais ousados. Há maior violência do que transmitirmos às nossas crianças e
adolescentes a cultura do consumismo atual, de proporções assustadoras e sem
disfarces, que destrói valores humanos e dilapida as reservas naturais do
planeta? Somos resultado de um período marcado pela concentração econômica, de
bens, de conhecimento e de cultura, que tem levado à exclusão progressiva de
parcela significativa da população. Adicionemos a esta receita econômica a
pressão consumista jamais vista na história humana e teremos pavimentado o
terreno para a explosão da violência cotidiana.
A violência leva ao
retrocesso, é multideterminada e tem seus fatores de risco e de proteção para a
sua emergência e prevenção sobejamente conhecidos na literatura médica. A
violência pouco falada começa no período pré-concepção com fetos indesejados,
mal-vindos ou rejeitados, decorrentes da insuficiência de um plano nacional
eficaz de planejamento familiar e controle da natalidade. Permanece nas
gestações mal cuidadas, tensas e desamparadas, de partos desnecessariamente
cirúrgicos, resultantes principalmente de interesses pecuniários aos quais nossa
sociedade fecha os olhos. Continua na primeira infância privada dos nutrientes
afetivos fundamentais para o desenvolvimento saudável do ponto de vista
psíquico, social e cultural resultando em modelos corruptos, consumistas,
predatórios, competitivos e de dominação que transmitimos às novas
gerações.
Exigimos e desenvolvemos no Brasil infra-estrutura física como,
por exemplo, pontes, viadutos, estradas, aeroportos e estádios de futebol, mas
poucos se debruçam sobre o que temos feito no desenvolvimento da infra-estrutura
humana que irá gerir estes primeiros recursos. Se a educação acadêmica fosse
suficiente para formar pessoas construtoras de um mundo menos violento - e não
vai aqui qualquer bravata contra investimentos nesta área, muito ao contrário -
não teríamos a bomba atômica, a indústria armamentista, os governos tirânicos e
corruptos, as “guerras cirúrgicas”, realizações de pessoas muito letradas e
“educadas”. Se argumentos científicos, filosóficos e pedagógicos não convencem,
mostremos então razões econômicas para investir na primeira infância. O Banco
Interamericano de Desenvolvimento mostra que um dólar investido nesta faixa
etária gera economia de sete dólares em assistência social, atendimento a
doenças mentais, manutenção de sistemas prisionais, repetência e em evasão
escolar e 15 dólares por pessoa em doenças que continuam a se manifestar na vida
adulta como depressões, suicídios, homicídios, abusos de drogas, sintomas
físicos entre outros. Nada teremos de diferente do cenário atual se não tomarmos
rumos econômicos mais humanitários conosco mesmos.
O novo cenário exige o
resgate de valores essenciais à vida em sociedade, tais como a ética, amor e
respeito às diferenças. Com isso será possível a promoção da convivência
societária e solidária fundamentada cientificamente na resiliência e na
salutogênese. A resiliência, interativa, refere-se à relativa resistência de um
individuo às experiências de risco em seu ambiente na superação dos estresses e
adversidades de maneira saudável. É utilizado para referir-se a pessoas de
performances psicológicas boas a despeito de vivências negativas das quais
esperaríamos seqüelas graves. A salutogênese designa as forças que geram saúde.
Criada pelo pesquisador Aaron Antonovsky, em 1979, é o oposto da patogênese, ou
seja, as influências que causam a doença. Antonovsky recomenda potencializar
forças que se opõem ao estímulo causador da doença para evitar que as pessoas
adoeçam. Propõe formas de estimular e preservar esta “força”, pela ciência, pela
chamada salutogênese, promovendo a saúde individual, coletiva e social. Eis aqui
os principais antídotos da violência que nos dispomos a
aplicar.
Organização não-governamental, apartidária e humanitária sem
fins lucrativos, o Instituto Zero a Seis (www.zeroaseis.org) nasceu para colaborar,
sempre em bases científicas, na construção de uma geração que tenha a cultura de
paz e não-violência como fundamento de seu estilo de vida reunindo e
disseminando conceitos e práticas para criar uma massa crítica de consciência
suficiente para cuidar melhor da primeira infância. No universo de seu
público-alvo estão jovens, adultos cuidadores de crianças, pais e mães,
educadores, cientistas, profissionais do Direito e da Saúde - especialmente da
área mental -, comunicadores, empresários, gestores públicos e privados,
artistas e formadores de opinião, além de empresas e
instituições.
Portanto, é preciso agir preventivamente contra esses
abusos físicos, sexuais e psíquicos oferecendo à criança ritmo, atenção, bons
modelos de identificação, ambiente familiar saudável e estável e constância de
vínculos, dentro de constelações sociais confiáveis que estimulem o
desenvolvimento, o aprendizado de valores relacionados à cultura de paz e não
exclusivamente à cultura de guerra que se embasa a história de nossa sociedade
direcionados ao consumo, à competição e à rivalidade. Interferir adequadamente
na infância é um desafio, e os achados científicos recentes podem contribuir
para a implantação de práticas e políticas relativas à primeira infância
voltadas à promoção da cidadania por meio do fomento da saúde mental e social
(salutogênese) e de formas de educação e cuidado da criança que contribuam para
que ela possa resolver, desde cedo, de forma pacífica e não-violenta os seus
conflitos e superar as adversidades da vida, lidando de maneira respeitosa e
generosa com o outro e com o ambiente, e confrontando-se com a realidade de
forma construtiva e inclusiva das diferenças (resiliência). De fato, os
conceitos de salutogênese e resiliência podem ser relevantes para explicar
porque os indivíduos conseguem triunfar mesmo em ambientes eminentemente hostis
e adversos.
Seria este o discurso delirante de um humanista nefelibata?
Paulo Freire em a “Pedagogia da Indignação” nos socorre e ensina que “o discurso
da impossibilidade da mudança para a melhora do mundo não é o discurso da
constatação da impossibilidade, mas o discurso ideológico da inviabilização do
possível”. Convirjamos então na construção desta “utopia possível”.
*
João Augusto Figueiró é médico e psicoterapeuta do Hospital das
Clinicas da FMUSP. Trabalhou ativamente na implantação das atividades da
Universidade da Paz - ONU (www.upeace.org) em São Paulo e na construção da
Rede Gandhi - uma parceria do Conselho Nacional de Secretários Municipais de
Saúde, Unesco e Associacao Palas Athena. É membro fundador, presidente e diretor
científico do Instituto Zero a Seis - Primeira Infância e Cultura de Paz (www.zeroaseis.org).
Referências:
1.
Mídia e Violência: Novas Tendências na Cobertura de Criminalidade e Segurança no
Brasil, Silvia Ramos e Anabela Paiva, Centro de Estudo de Segurança e Cidadania
da Universidade Candido Mendes (CESeC), Iuperj-Tec, Secretaria Especial de
Direitos Humanos e União Européia, 2007 . www.ucamcesec.com.br;
2. Prevenção
de abuso sexual infantil: Um enfoque interdisciplinar. Williams, L.C.A. &
Araújo, E.A.C. (ORGS.). (2009). Curitiba: Editora Juruá.
3. CD - Abusos,
maus tratos e proteção à Criança e ao Adolescente: CEIIAS/IESC/Laprev/ISPCAN
(orgs.), Rio de Janeiro, 2009. http://www.ufscar.br/laprev/ e www.ceiias.org.br
4. Violência e
saúde mental na infancia e adolescência - Revista Ciência e Saúde Coletiva, vol.
14, número 2, março/abril 2009, 343-688. www.cienciaesaudecoletiva.com.br;
5.
Child Victimization: Maltreatment, Bullying and Dating Violence, Prevention and
Intervention, Kathleen A Kendall-Tacket, Sarah M Giacomoni (Eds.), Civic
Research Institute, Kingston, NJ, 2005.
6. Adverse Childhood Experience:
Straus, MA: Child Abuse and Neglect 1998, 22: 249-270 - http://www.cdc.gov/nccdphp/ace
Agradecimentos:
Dra.
Lucia Williams, psicóloga e professora titular da UFSCar, LAPREV, São Carlos,
SP;
Dra. Evelyn Eisenstein, médica pediatra e clinica de adolescentes,
professora adjunta da FCM-UERJ/NESA e CEIIAS, Rio do Janeiro;
Antonia Sarah
Aziz - Educadora
Claudia Lazzarotto - Instituto Zero a Seis.(O
autor)
(Envolverde/Mercado Ético)