Grande João Cândido: O MESTRE SALA DOS MARES

O bandido apanhava uma corda mediana de linho, atravessava-a de pequenas agulhas de aço das mais resistentes e, para inchar a corda, punha-a de molho, com o fim de aparecerem apenas as pontas das agulhas. A guarnição formava e vinha, então, o marinheiro faltoso, algemado. O comandante, depois do toque de silêncio, lia a proclamação. Tiravam as algemas das mãos do infeliz e o suspendiam, nu da cintura para cima, no ferro que se prende à balaustrada do navio. E então Alípio começava a aplicar os golpes. O sangue escorria. O paciente gemia, suplicava, mas o facínora prosseguia. Os tambores, batidos com furor, sufocavam os gritos. Muitos oficiais voltavam o rosto para o lado. A marinhada, possuída de repulsa e de profunda indignação concentrada, murmurava: “Isso vai acabar.”

Quem eram os homens supliciados por Alípio? Negros, quase todos. Negros. Ex-escravos ou filhos de escravos que encontravam na Marinha sua única chance de sobrevivência. Muitos viam-se conscritos à força, arrebanhados nas localidades pobres quando tinham 10 ou 12 anos de idade. Depois de alistados, passavam 15 anos em serviço, recebendo soldos miseráveis e punições desumanas.
Negros eles eram. Eis porque os açoitavam com tanta crueldade. A lei brasileira só permitia 25 chibatadas, mas houve casos de faltas serem punidas com até 300. Ninguém reagia. Porque eles eram negros.
Conto isso para que se entenda a reação explosiva ocorrida no país devido ao caso Elicarlos versus Maxi López, dias atrás. Relembro: Maxi López teria chamado Elicarlos de “macaco” durante o jogo do Cruzeiro com o Grêmio. Não sei se é verdade, talvez não seja. Falo da reação. É positiva. Porque, agora, os negros reagem.
A primeira vez que reagiram, na história da República, foi justamente na época de Alípio. Na noite de 22 de novembro de 1910, um marinheiro havia sido condenado a levar 250 chibatadas no convés do Minas Gerais. Em meio ao martírio, ele desmaiou. Alípio continuou com o castigo. Entre os marinheiros que assistiam à tortura estava o gaúcho João Cândido. Negro, alto, filho de ex-escravos, João Cândido era analfabeto, mas as viagens internacionais tinham lhe emprestado certo lustro. Aos poucos, começou a cevar a rebelião entre os marinheiros. Devia ser deflagrada no fim do mês, mas o castigo brutal que Alípio impôs ao seu colega antecipou tudo.
Naquela noite, o mais delicado creme da sociedade estava reunido nos salões do Clube da Tijuca, no Rio, para os festejos da posse do presidente Hermes da Fonseca. Em meio à apresentação da ópera Tannhauser, de Richard Wagner, um estrondo arrancou guinchos das damas e calou os instrumentos – um tiro de canhão fora disparado contra a Capital. A bala partira do Minas Gerais.
Era a Revolta da Chibata.
Depois de alguns dias ameaçando bombardear o Rio, os amotinados venceram. A punição pela chibata foi abolida e eles receberam anistia. Mas a traição estava preparada. Nos dias seguintes, o governo brasileiro engendrou sua vingança. Os marinheiros passaram a ser perseguidos, demitidos e presos. Assustados, reuniram-se na Ilha das Cobras para tentar se arregimentar. A Marinha aproveitou para bombardeá-los. Mais de 500 morreram no ataque. Outras centenas viram-se enviadas ao degredo na Amazônia. João Cândido foi preso com outros 17 marinheiros. Na noite de Natal, os encarceraram numa cela minúscula com o chão coberto por água e cal. Ao amanhecer, 16 homens jaziam mortos. João Cândido sobreviveu para ser encerrado em um manicômio.
A mulher e a filha de João Cândido se suicidaram. Ele morreu em 1969. Em 24 de junho, completaria 129 anos. Na década de 70, João Bosco e Aldir Blanc teceram uma das mais belas composições da MPB em sua homenagem, O Mestre-Sala dos Mares. A ditadura militar não gostou da letra que tecia loas a um sublevado. Abaixo, a letra original, com as mudanças assinaladas:

Há muito tempo,
Nas águas da Guanabara,
O dragão do mar reapareceu,
Na figura de um bravo marinheiro,
A quem a História não esqueceu.
Conhecido como o Almirante Negro,
Tinha a dignidade de um mestre-sala,
E ao acenar pelo mar
Na alegria das regatas,
Foi saudado no porto
Pelas mocinhas francesas,
Jovens polacas
E por batalhões de mulatas!
Rubras cascatas
Jorravam das costas dos negros
Entre cantos e chibatas
Inundando o coração
Do pessoal do porão
Que a exemplo do marinheiro
Gritava: Não!
Glória aos piratas, às mulatas,
Às sereias!
Glória à farofa, à cachaça,
Às baleias!
Glória a todas as lutas inglórias
Que através da nossa História
Não esquecemos jamais!
Salve o Almirante Negro
Que tem por monumento
As pedras pisadas do cais

A censura pediu mudanças, e mudanças foram feitas. Só que os censores nunca se satisfaziam. Aldir Blanc tirava as referências ao sangue, à Marinha, e nada de os censores aprovarem. Até que ele perguntou:
      – Mas o que é que vocês querem exatamente?
      E a resposta do censor, direta e lacerante como um golpe de Alípio:
      – Sabe o que é? É essa história de negro, negro, negro...
      Como se vê, existe alguma razão para os negros acalentarem traumas no Brasil.

(texto colhido no blog do autor. David Coimbra é gaúcho, jornalista, editor executivo de Esportes e colunista de Zero Hora e também comentarista da TVCOM.)

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