Araçuaí, Minas Gerais, 22/06/2009 – Maria Vieira dos Santos praticamente criou sozinha seus seis filhos. Por mais de uma década, seu marido esteve ausente cerca de oito meses por ano, para cortar cana-de-açúcar em São Paulo. A distante tarefa do camponês, 1.500 quilômetros ao sul, só terminou quando as penosas condições de trabalho prejudicaram sua coluna vertebral. Há oito anos foi sucedido pelo filho mais velho, de 27 anos, que trabalha na produção de açúcar e álcool. Este ano outro, filho, de 17 anos, se incorporou ao trabalho.
Cortar cana é uma atividade reconhecida com extenuante e
violadora de direitos trabalhistas. Mas, além disso, oculta um efeito perverso
que afeta as famílias dos cortadores.
São homens que para ganhar o
equivalente a US$ 500 mensais suportam uma migração temporária e um trabalho que
exige braços fortes e que sejam hábeis com a foice.
O envelhecimento
precoce é o sinal mais visível das múltiplas e extenuantes tarefas que realizam
as mulheres de Banco de Setúbal, uma comunidade rural do município de Araçuaí,
que fica no norte de Minas Gerais.
Quase todas suas 38 famílias fornecem
mão-de-obra para a poderosa e distante indústria da cana-de-açúcar de São
Paulo.
A agricultura local “só produz alguma colheita quando chove, há
três anos tudo foi perdido e no ano passado só foi possível plantar muito
pouco”, por isso os homens têm de ir ao encontro da cana, disse à IPS Maria dos
Santos.
Araçuaí faz parte do Vale do Jequitinhonha, já considerado parte
do semi-árido nordeste brasileiro, açoitado por freqüentes secas.
“Eu
cuidada de tudo, de plantar milho, feijão e arroz, sozinha”, contou Maria, um
exemplo das mulheres que criam os filhos sozinhas e substituem o marido no
cultivo, transporte e venda da colheita.
Como muitas outras, Maria foi
por longo tempo “solução de todos os problemas da casa”, acumulando as tarefas
tradicionalmente masculinas.
Muitas vezes teve de realizar, mesmo
grávida, esse monte de tarefas. É um problema a mais para as mulheres de Banco
de Setúbal e outras comunidades fornecedoras de cortadores de cana e onde a
maioria dos bebês nasce no final do ano.
Além do esforço físico, “o
coração fica apertado pela tristeza, pelo pranto, pela saudades”, lamentou a
mulher de 50 anos, que sempre viveu em Araçuaí e já tem dois filhos casados e
dois netos. Também sua mãe migrava para o interior de São Paulo para colher
banana, recordou.
Banco de Setúbal fica a 18 quilômetros da cidade de
Araçuaí, cuja população urbana também emigra para cortar
cana.
Vidas intermitentes
As cidade, de 36 mi
habitantes, é conhecida como a “terra das viúvas de maridos vivos”. Milhares de
homens abandonam suas famílias entre fevereiro e abril para ir cortar
cana.
“Retornam doentes, perdem a saúde por causa do pó, da fumaça e das
cinzas”, contou Maria. São os efeitos do incêndio provocados nos canaviais para
queimar a palha que atrapalha o corte, com graves consequências ambientais no
entorno da monocultura.
Em dezembro, as filas quilométricas de ônibus no
acesso a Araçuaí são o sinal de que os homens retornam, muitos com motocicletas
recém-compradas com o dinheiro ganho, que também serve para dinamizar o comércio
local.
“As motos são o sonho dos jovens, que as querem potentes, porque
aumentam sua chance de conquistar uma namorada”, contou Viviane Neiva,
coordenadora do Projeto Caminho das Águas, levado adiante pelo não-governamental
Centro Popular de Cultura e Desenvolvimento (CPCD) para proteger o ambiente
rural, especialmente os rios.
Muitas mulheres aprenderam a dirigir moto
diante da falta de outro transporte, sobretudo no campo, acrescentou.
A
migração definitiva não é comum em Araçuaí, apesar da carência de empregos.
“Aqui é muito bom, melhor só o céu”, justificou Ornelino de Souza, que provocou
risos por sua ênfase em uma reunião comunitária da qual a IPS participou e onde
era um dos poucos homens.
Antonia Neusa dos Santos, de 52 anos, duas
filhas e um filho, migrou jovem para a cidade de São Paulo, onde sobreviveu com
domestica e se casou, paradoxalmente, com outro morador de Araçuaí.
Há 12
anos decidiram “voltar para sempre” à sua terra. “Não me sentia parte de São
Paulo, onde tudo é bonito, cômodo, mas não me agrada”, contou à IPS. Além disso,
“estou muito ligada à natureza, me sinto melhor aqui”, afirmou.
Mas o
marido e o filho não escaparam do distante trabalho temporário. “Temos pouca
terra, apenas uns quatro hectares”, justificou Antonia.
A consola saber
que agora a cana é cortada com mais segurança e equipamentos de proteção que
permitem aos dois “voltarem bem de saúde”. O marido, que “não sei como agüenta
fumando tanto”, só teve problemas menores.
Afirmou que a “única solução”
para reter as pessoas em Banco de Setúbal séria uma fabrica de roupa, porque
geraria muitos empregos, especialmente femininos. “Cada camisa precisa de várias
mulheres para costurar suas partes”, disse.
Ornelino de Souza buscou
outro caminho. Aos 50 anos e quatro filhos, teve de deixar a cana porque “fiquei
doente da coluna”.
Então, decidiu colher banana em suas terras, graças à
“benção de Deus” de contar com água em um riacho próximo. Uma praga quase
destruiu a primeira plantação, mas o banco perdoou a dívida e pode manter-se com
a “baixa produção”.
Seus filhos estão em busca de cana e o mais velho já
foi cortador. Mas neste ano não repetiu o trabalho, porque “quando o sol
esquenta o nariz sangra, e em primeiro lugar está a saúde”,
afirmou.
Uma cooperativa para ficar
Na vizinha
comunidade de Alfredo Graça, suas 21 famílias criaram uma cooperativa para
produzir milho, feijão, mandioca e hortaliças, que vendem na feira de
Araçuaí.
Como resultado, a maioria dos homens do lugar deixou de migrar.
Apenas cortam a cana que produzem pra fazer rapadura.
José Cláudio
Francisco, porém, se preparava para tomar o ônibus para Campos, norte do Rio de
Janeiro, para cortar cana “durante seis ou sete meses”. As terras em Banco de
Setúbal não produzem nada sem regar, disse. Mas a água escasseia,
acrescentou.
Com cinco filhos pequenos, o maior de 7 anos, José teme a
mecanização. No Estado de São Paulo, maior produtor de cana do Brasil, a
indústria do açúcar e do álcool assumiu o compromisso de mecanizar a colheita
até 2017, para eliminar o incêndios nos canaviais. A pressão ambientalista tenta
reduzir o prazo.
“Estaremos mal” se cumprirem a meta, disse José, sem
perspectiva de outro tipo de emprego no futuro.
O setor da cana
representa 7,5% do produto interno bruto do Brasil, cerca de US$ 68 bilhões, e
27% do PIB agrícola. Ao mesmo tempo, gera 800 mil empregos diretos, boa parte
cortadores recrutados nas áreas mais pobres do País.
As crianças sofrem à
sua maneira a ausência paterna. Perdem a referencia dos pais, “não os reconhecem
quando voltam para casa, os rejeitam e choram” diante das tentativas de
aproximação, disse Edilucia Borges, coordenadora de atenção pré-escolar do CPCD
que atua em educação, meio ambiente e desenvolvimento e Araçuaí e outras cidades
de Minas Gerais.
Para amenizar o distanciamento dos pais e manter seus
laços afetivos com os filhos, o CPCD desenvolveu o Projeto das Cartas, que
promove a troca de cartas, fotos e fitas de áudio. Assim, o país “não parecerá
tão estranho para as crianças ao regressar”, explicou.
Apesar do afastamento
durante a maior parte do ano, as famílias de Banco de Setúbal são estáveis, não
há casos de separação, nem quando se conhece o adultério por parte dos
cortadores, assegurou Lina Barreto, cujo marido foi muitas vezes cortar cana,
mas ficava fora “apenas três ou quatro meses” por ano.
Há três anos a
família não se separa, porque conseguiu outras fontes de renda. Uma moenda que
produz farinha de mandioca, a construção de cisternas para coletar água de
chuva, uma horta orgânica e plantação de arroz e feijão produzem dinheiro
suficiente. Além disso, três dos cinco filhos já são independentes.
IPS/Envolverde
(Envolverde/IPS)