A última testemunha: cem anos de
resistência
Seu Vicentinho não sabe nem a perna do "a", mas os
100 anos de vida completados dia 1.º de março lhe deram outros conhecimentos que
não se aprende em banco de escola. Ele domina os segredos da longevidade, sabe o
tempo certo de colher e de plantar, conhece o poder curativo das plantas, mas
não consegue compreender a gana do homem em desafiar a natureza. Nunca se
importou muito com isso, até o problema bater à sua porta. E o problema é dos
grandes. Seu Vicentinho é uma pedra no caminho da gigante empresarial
Votorantim, que há 18 anos tenta erguer uma usina hidrelétrica no rio vizinho, o
Ribeira de Iguape.
Vicente Ribeiro de Lima e a Votorantim estão em lados
opostos de uma batalha prestes a eclodir no coração da Mata Atlântica. Numa
ponta deste cabo-de-guerra estão ambientalistas, índios, caiçaras, religiosos,
quilombolas; na outra despontam prefeitos, deputados, vereadores, comerciantes e
outros simpatizantes da obra. Cada grupo tenta, a seu modo, influenciar o
parecer definitivo que o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos
Naturais Renováveis (Ibama) está na iminência de emitir sobre a construção da
usina, que causará impactos diretos em três municípios do Paraná e em dois de
São Paulo.
Metido no grupo dos contra, Vicentinho não quer o mesmo fim de
vida de tantos ribeirinhos desalojados que agora vivem em favelas de Cerro Azul
e da região metropolitana de Curitiba. Ele nasceu num povoado do Vale do Ribeira
e fincou raízes em outro, a Ilha Rasa. Ali casou, enviuvou, casou de novo, teve
quatro filhos com a primeira mulher, mais dois com a segunda, além de um nascido
"no dia curto", morto 8 dias após o parto. Mora na tapera erguida em 1979 com
ajuda do filho Darci, de 54 anos. O chão é de terra batida, o teto de telha de
barro sustentado por troncos de madeira, as paredes de gravetos revestidos com
barro vermelho.
Nunca teve luxo, só o bastante para chegar aos 100. "Em
que outro lugar ele viveria tanto?", indaga Darci. Porém, o peso da idade
chegou, a audição começa a falhar, a voz quase inaudível. As decisões agora
cabem a Darci, que nunca faltou ao pai. "A gente sempre pareceu dois piá junto",
compara. O velho concorda, sentado no banquinho, joelho com joelho, mãos
acomodadas dentro da touca de lã azul e vermelha. Isso faz tempo. Hoje está
magro, barba branca e rala, orelhas salientes na cabeça miúda de cabelos
brancos, escassos no cocuruto e desgrenhados nos lados. Vicentinho já fez sua
parte, agora é com o filho. A voz tropeça, mas ainda opina.
"Cumé qui
pode trancá um rio se isso é coisa da natureza? É até pecado." Vicentinho está
no grupo de moradores a serem atingidos pelo reservatório que ainda não venderam
as terras à Companhia Brasileira de Alumínio (CBA), subsidiária da Votorantim. O
maquinário comprado há sete anos não conseguiu lançar um metro cúbico sequer de
concreto na usina. À espera da licença ambiental, a CBA foi comprando as terras
para adiantar o expediente. O centenário resistente mora a mil metros da futura
barragem, 10 quilômetros acima das cidades de Ribeira (SP) e Adrianópolis (PR) e
a 300 quilômetros da foz do Ribeira de Iguape.
Com os recursos de quem
estudou até os 15 anos, Darci descreve os métodos empregados no início das
investidas: "Chegou uns três ou quatro advogado e eles têm o costume de assustá
as pessoa, de dizê ansim: a hora que construí a barrage aqui vem bandido, vem
ladrão, e um pai de família não pode vivê num lugar ansim". O tempo deixou os
argumentos mais sutis. As novas propostas até agradaram, mas nunca se
concretizaram. Até houve um reunião na Ilha Rasa em que representantes da CBA
prometeram sete hectares em troca dos dois de Vicentinho, mais uma casa de R$ 20
mil e subsídio para o plantio durante um ano.
Darci teria aceitado na
hora, mesmo a contragosto do pai, mas os advogados nunca apareceram para fechar
o negócio. "Quem vai combatê contra uma firma? Só outra firma, né?", justifica.
Este papel de opositor tem sido desempenhado por ambientalistas e por parte das
populações a serem atingidas. Para eles, o simples anúncio da construção da
barragem já deixou o Vale do Ribeira em stand by, cada vez mais empobrecido. A
população deixou de investir nas propriedades e o governo deixou de investir em
estradas, em educação e moradia. Eis a justificativa da inércia: "Não adianta
fazer nada, a barragem vai cobrir tudo mesmo."
"A CBA se aproveita da
falta de regularização fundiária das terras, ocupadas há anos por posseiros,
para se apropriar delas", acusa a coordenadora do Centro de Estudos, Defesa e
Educação Ambiental (Cedea), Laura Jesus de Moura e Costa. As pessoas foram
vendendo as propriedades nos anos todos em que se cogitou sobre a barragem. Quem
ficou vive do rio, da água e da terra. "Muitos que venderam as terras hoje
passam fome, acabaram se tornando favelados em Cerro Azul, bóias-frias ou
operários da CBA na região metropolitana de Curitiba", diz. Para ela, não houve
compensações que garantissem as mesmas condições de vida de antes.
Antes
mesmo de construída, a usina já vem causando impactos sociais e econômicos. "A
compra de terras pela CBA e a expulsão de muita gente sem qualquer tipo de
indenização provocou a queda de renda, aumento do desemprego, êxodo rural, mexeu
com comunidades tradicionais, com a cultura e o modo de vida das pessoas",
observa o presidente da Associação Sindical dos Trabalhadores da Agricultura
Familiar do Vale do Ribeira, Adriano Briatori. Os municípios de Adrianópolis e
Cerro Azul, onde ficará a maior parte do reservatório, são quase totalmente
agrícolas e têm um sistema de produção baseado na agricultura
familiar.
Mais de 75% da população de Cerro Azul sobrevive da agricultura
de subsistência. "A maioria não sabe fazer outra coisa a não ser trabalhar a
terra, pois é descendente de colonos que se instalaram na região há mais de duas
gerações", lembra Briatori. As terras mais produtivas de Cerro Azul, diz ele,
estão exatamente nas regiões que serão alagadas, e produzem de tudo, desde
culturas de subsistência – arroz, feijão, mandioca, chuchu, milho – até culturas
comerciais, como a laranja, a poncã, a sidra. Uma das razões é que dificilmente
ocorre geada na época de inverno. Em breve, isso tudo pode ficar debaixo
d'água.
O Vale do Ribeira é uma síntese paradoxal. A maior área contínua
de Mata Atlântica, um dos mais ricos biomas do Planeta, está permeada por
histórias de desventura humana retratadas nos seus bolsões de miséria. Nem tanta
beleza natural consegue encobrir o cenário de carência na região que tem o pior
Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) da região sul-brasileira. Neste contraste
entre riqueza natural e miséria humana, o Ribeira de Iguape é a última
testemunha de um tempo em que os grandes rios corriam livres.
Este é o
principal rio de sua bacia hidrográfica. Dos 470 quilômetros de extensão, 350
correm em São Paulo e 120 no Paraná, banhando 23 cidades paulistas e sete
paranaenses, com um total de 450 mil habitantes. Caso raro de rio federal sem
barreiras, é o que se chama de rio testemunha. "Todos os outros acabaram e a
gente luta para mantê-lo para lembrar de como seriam os demais sem as
barragens", diz Raul Silva Telles do Valle, assessor jurídico do Instituto
Sócio-Ambiental, uma das ongs contrárias à usina de Tijuco Alto.
Valle
entende que cada bacia hidrográfica deveria ter pelo menos um rio livre,
preservado de forma a prestar os serviços ambientais que sempre prestaram. O
marco zero do Ribeira fica em Cerro Azul, onde se juntam o Açungui, vindo da
região metropolitana de Curitiba, e o Ribeirinha, nascido na região de Ponta
Grossa. Sua foz no estuário de Iguape-Cananéia é uma das cinco regiões lagunares
mais ricas em biodiversidade do Planeta, segundo a União Internacional de
Conservação da Natureza (UICN).
Os
expulsos
Norberto Paulista resistiu o quanto pôde, mas acabou
vencido pelo cansaço. Ele tinha um próspero comércio de secos e molhados numa
região remota, mas sem concorrência, em Cerro Azul, no Vale do Ribeira. Diversas
vezes a CBA botou preço na propriedade. Norberto recusou todas. Era preciso
evacuar a área para o reservatório da hidrelétrica Tijuco Alto, então a CBA foi
comprando as terras vizinhas. Sem freguesia, a mercearia morreu à míngua. No
sobrado às margens da estrada poeirenta hoje funciona a Drink's Boate Show, das
irmãs Carmenluci e Maricléia Prado Gonçalves.
Ali Norberto começou a vida
aos 20 anos, em 1970, ao sair da casa da mãe num povoado vizinho. O mercadinho
vingou até 1997, quando os fregueses sumiram de vez. Quem saía levava o que
podia das casas. "Ficou como o Iraque na época da guerra", compara Norberto. Ele
acabou vendendo meio alqueire de terra e o sobrado de 212 metros quadrados por
R$ 42 mil, em 2005. As dívidas obrigaram-no a vender também o seu xodó, uma
caminhonete D-10. Hoje, tenta se reerguer. Produz laranja em dois sítios e tem
umas 30 cabeças de gado. As novas donas do sobrado sabem que de uma hora para
outra podem ter de sair.
Quem toca o negócio é Maricléia, enquanto a irmã
trabalha numa boate na Espanha. Elas já haviam alugado o sobrado em 1999.
Gostaram tanto que juntaram o dinheiro de três temporadas na Espanha para
comprá-lo. Das oito garotas de programa da Drink's Boate Show, três moram ali e
as outras só trabalham nos fins de semana. O lugar é isolado, mas Maricléia diz
ter clientela fiel. "Era o sonho dela", conta a irmã. Investiram em reformas e
agora não saem do lugar por menos de R$ 200 mil de indenização. Elas têm o que
negociar, ao contrário dos ribeirinhos que saíram dali com uma mão na frente e
outra atrás.
Lucidório Meri, o Neno Meri, de 64 anos, não fazia outra
coisa senão trabalhar a terra. Há seis anos vendeu à CBA o alqueire de terra
onde tinha um bar e plantava laranja, feijão e milho. Hoje, tem um barraco num
terreno de 360 metros quadrados, 66 vezes menor do que sua antiga área, às
margens do Rio Ribeira, onde dois filhos ficaram para cultivar o retalho de
terra que restou. Agora Neno Meri vive do plantio de feijão e milho na
propriedade dos outros. "A vida piorou muito", lamenta. Recentemente, sofreu um
acidente vascular cerebral (AVC) e ficou com uma das mãos amortecidas. "Sorte
que é a esquerda, porque a direita é para pegar a enxada."
Menos sorte
tiveram Antonio Paliano, 48 anos, e Sidinei Paes, de 25. Perderam o emprego
quando as terras que cultivavam no povoado de Mato Preto foram vendidas. Agora
vivem de bicos e moram numa favela que começa a se formar num dos morros de
Cerro Azul. Sidinei chegou há cinco anos e Antonio, há três. O primeiro tem dois
filhos e o segundo, seis. Ali há mais quatro famílias vindas da mesma região que
não figuram na pesquisa encomendada pela CBA para contrapor as afirmações de
ambientalistas de que existiriam muitas famílias de não-proprietários vivendo em
favelas por causa do processo de compra de terras.
Dois levantamentos
feitos pela CNEC Engenharia descobriram sete famílias em bairros populares de
Ribeira, Cerro Azul e Adrianópolis. A intenção é identificar os posseiros,
meeiros ou arrendatários para incluir todos os atingidos pelo projeto no
programa de compensações da CBA. Saindo a licença da usina, as famílias das
áreas a serem alagadas terão três opções: 1) a venda direta, incluindo as
benfeitorias e indenizações sobre a atividade econômica desenvolvida; 2) troca
por outro terreno com benfeitorias; 3) vender parte do terreno e continuar nas
áreas onde se encontram, dependendo da localização e da parte a ser
alagada.
A CBA assegura que também serão beneficiados aqueles que eram ou
são arrendatários, meeiros, posseiros, ou que moravam de favor nas terras
adquiridas pela CBA. "Eles vão receber terras e o título de propriedade, com
todas as benfeitorias, tornando-se finalmente proprietários", informa a empresa.
Contudo, a subsidiária do grupo Votorantim não fala nada sobre as pessoas que já
saíram da área de abrangência da usina de Tijuco Alto. Segundo estimativa do
Centro de Estudos, Defesa e Educação Ambiental (Cedea), mais de 200 famílias
desalojadas pela CBA vivem em más condições de vida na região metropolitana de
Curitiba, em cidades como Colombo, Almirante Tamandaré e Tijucas do
Sul.
Privatização das águas
A construção da
barragem de Tijuco Alto suscita a discussão em torno do uso e da finalidade do
rio e da energia elétrica produzida no Brasil. "Quando você represa o rio, há um
gestor do espaço e da água, e isso é privatização", diz a coordenadora Centro de
Estudos, Defesa e Educação Ambiental (Cedea), Laura Jesus de Moura e Costa.
"Esta hidrelétrica não é uma necessidade do Paraná ou de São Paulo, é uma
necessidade da CBA (Companhia Brasileira de Alumínio)", enfatiza.
Para o
assessor jurídico do Instituto Socioambiental, Raul Silva Telles do Valle, a
água é um bem público e seu uso deve ser universalizado. "Tijuco Alto é exemplo
de um modelo energético que beneficia determinados grupos e traz poucos
benefícios à região", diz. Ele teme que o licenciamento abra precedente para
outras três hidrelétricas previstas pela Companhia Energética do Estado de São
Paulo (Cesp) no Ribeira: Itaoca, Funil e Batatais.
A coordenadora do
Cedea teme ainda pelos riscos ao Aqüífero Karst, rio subterrâneo de 5.740
quilômetros quadrados que abrange os municípios de Campo Magro, Campo Largo,
Almirante Tamandaré, Itaperuçu, Rio Branco do Sul, Colombo, Bocaiúva do Sul,
Cerro Azul, Tunas do Paraná, Doutor Ulisses e Adrianópolis, Castro e Ponta
Grossa. Esta é a grande fonte para o futuro abastecimento da região
metropolitana de Curitiba.
"Não sabemos se o solo (de rochas calcárias)
resistirá ao peso de tanta água represada, causando um efeito dominó sobre as
cavernas da região", diz Laura. Segundo o Relatório de Impacto Ambiental (Rima)
da CBA, as cavernas que serão alagadas são buracos de pequena expressão. "É
descartável a tese de que poderá haver vazamentos de água no entorno do
reservatório", assegura a empresa.
O Rima descarta, ainda, interferências
no modo de vida das comunidades ribeirinhas porque o fluxo de água não será
alterado. O vertedouro foi projetado para dar vazão a cheias que podem acontecer
a cada dez mil anos. As vazões do Ribeira são medidas desde 1931 e o volume de
água nunca será maior do que o volume natural da cheia.
O estudo indica
também que a área do futuro reservatório não possui vegetação primária, é uma
das mais degradadas do Vale do Ribeira com predomínio de pastagens e cultura de
pínus, que já vem descaracterizando a geografia regional. Inconformada com os
argumentos, Laura lança uma pergunta: "O que são 50 ou 70 anos de vida útil de
um reservatório se comparados com recursos naturais e espécies que dão benefício
sustentável ao país há séculos e que se não forem destruídos podem servir por
muito mais tempo ainda?"
Um presente para a maioridade (Segunda
Parte da reportagem)
Há 18 anos, o Grupo Votorantim tenta erguer
uma usina hidrelétrica no Vale do Ribeira, na divisa do Paraná com São Paulo. O
projeto completou a maioridade em maio e pode finalmente ser presenteado: o
Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama)
está prestes a anunciar o parecer definitivo sobre a construção da obra. Pesa em
favor da Companhia Brasileira do Alumínio (CBA), subsidiária da holding
Votorantim, as metas de aumento da oferta de energia elétrica estabelecidas pelo
Programa de Aceleração do Crescimento (PAC) do presidente Luiz Inácio Lula da
Silva.
Se aprovada, Tijuco Alto será a décima nona hidrelétrica do Grupo
Votorantim. Prevista para ser erguida dez quilômetros acima das cidades de
Ribeira (SP) e Adrianópolis (PR), ela foi planejada para aumentar a oferta de
energia elétrica do complexo metalúrgico da CBA na cidade de Alumínio (SP). Terá
potência de 129,7 megawatts, reservatório de 56,5 quilômetros quadrados,
barragem com 142 metros de altura e extensão de 539 metros de lado a lado do
rio. A energia será transmitida pelo linhão de Furnas.
A CBA pretende
iniciar a obra até 2009 e concluí-la em quatro anos, pondo fim à longa espera. O
primeiro pedido de licenciamento foi em maio de 1989. As licenças prévias foram
concedidas em junho de 1994 pela Secretaria de Meio Ambiente de São Paulo e em
fevereiro do ano seguinte pelo Instituto Ambiental do Paraná (IAP). Contudo, o
licenciamento foi anulado por uma ação civil pública amparada por uma
mobilização de deputados, entidades ambientalistas e lideranças de comunidades
do Vale do Ribeira.
Em despacho de dezembro de 1999, o Ministério Público
julga que o licenciamento não poderia ser estadual, definindo a competência para
o âmbito federal, ou seja, o Ibama. Antes disso, porém, em 1997 a CBA já
apresentara ao Ibama um pedido de licenciamento. O pedido é negado em 2003 por
insuficiências no Estudo de Impacto Ambiental (EIA). Em agosto de 2004, a CBA
contrata o Consórcio Nacional de Engenheiros Consultores (CNEC) e ganha do Ibama
autorização para reiniciar os estudos. Em fevereiro de 2005 é aberto novo
processo de licenciamento e em outubro são apresentados os Estudos de Impacto
Ambiental e o Relatório de Impacto Ambiental (EIA/Rima). Enquanto aguardava a
licença ambiental, cujo parecer do Ibama pode sair a qualquer momento, a CBA
começou a adquirir as terras dos ribeirinhos.
Dos R$ 500 milhões de
custos da usina, R$ 100 milhões irão para programas socioambientais, que incluem
reassentamento e compensação das mais de 500 famílias que ainda vivem nas áreas
a serem alagadas pelo reservatório. Em reuniões para angariar adesões à
instalação da hidrelétrica, a CBA conseguiu cinco mil assinaturas em Cerro Azul,
Doutor Ulisses e Adrianópolis, no Paraná, e Ribeira e Itapirapuã Paulista, em
São Paulo. Não só isso, está recolhendo declarações de apoio dos prefeitos e
vereadores da região.
Em abril, os prefeitos e os presidentes das câmaras
municipais dos municípios afetados pela usina estiveram na sede do Ibama, em
Brasília, para reivindicar a licença ambiental. "Nossa economia está paralisada
e poderá se desenvolver com Tijuco Alto por causa dos empregos que irá gerar e
do desenvolvimento dos serviços, do turismo e da agricultura familiar", diz o
prefeito de Adrianópolis, Osmar Maia. "O Vale do Ribeira está esquecido e pobre,
a barragem é uma oportunidade de desenvolvimento", enfatiza o prefeito de Doutor
Ulisses, Pedro Anselmo. "Precisamos de empregos, e os royalties poderão ser
investidos em educação e saúde", complementa o prefeito de Cerro Azul, Dalton
Luiz de Moura e Costa.
Quando em operação, Tijuco Alto vai gerar 60
empregos diretos. Durante a construção, no pico das obras serão abertas 1.750
vagas de trabalho e mais 400 empregos indiretos. A CBA diz que pelo menos dois
terços da mão-de-obra serão contratados na região. O problema, segundo o
presidente da Associação Sindical dos Trabalhadores da Agricultura Familiar do
Vale do Ribeira, Adriano Briatori, é que estas pessoas são agricultores e não
barrageiros. "O que elas querem é continuar cultivando a terra, não fazendo
massa de concreto."
À frente da luta contra a hidrelétrica, o Centro de
Estudos, Defesa e Educação Ambiental (Cedea) denuncia o abuso do poder
econômico. No relatório de suas audiências públicas, faz ao Ibama a seguinte
recomendação: "Que seja investigada a existência de corrupção no sentido de a
CBA estar negociando o apoio das prefeituras nos municípios a serem atingidos
pela barragem, dando em troca cimento e outros materiais de construção
civil."
Tem gente, tem plantas, tem bichos...
Não
só gente, mas também plantas e bichos estão no caminho da usina hidrelétrica de
Tijuco Alto. Do nascedouro do Rio Ribeira ao seu estuário – percurso de 470
quilômetros – moram 2.456 famílias de caiçaras, 60 comunidades de quilombolas
(presentes na região desde o século 18) e os milenares habitantes de 12 aldeias
guarani.
Ali vivem ainda 68 espécies ameaçadas de extinção, como o
primata mono-carvoeiro, a onça-pintada, o veado campeiro e o
papagaio-de-cara-roxa, além de 42 espécies endêmicas (só encontradas na região),
como o beija-flor rajado e o mico-leão-da-cara-preta.
Ecologistas
atribuem ao patrimônio cultural e ao conhecimento tradicional um valor igual à
riqueza ambiental. Os povos ribeirinhos têm um modo de vida responsável com a
natureza, diz Nilto Ignácio Tatto, coordenador do Instituto Socioambiental
(ISA), organização não-governamental que faz programas de geração de renda,
educação e cultura no Vale do Ribeira.
É graças a essas comunidades, diz
Tatto, que este é um dos trechos mais preservados de toda a região costeira do
Brasil, abrigando 21% de vegetação contínua do que ainda resta da Mata
Atlântica, declarada patrimônio natural da humanidade pela Unesco em
1999.
O vale tem dois milhões hectares de floresta, 150 mil de restinga,
17 mil de manguezais e mais de 270 cavernas cadastradas. A região tem um
complexo de 24 unidades de conservação, com mais de 1,4 milhão de hectares. Ali
está a maior quantidade de sítios tombados do estado de São Paulo (158), entre
eles 75 sítios líticos (de pedra), 82 sítios cerâmicos, 12 sambaquis, 12 em
abrigos/grutas e três cemitérios indígenas.
A opção pela energia
que vem das barragens
Desde que aprendeu a domar águas revoltas,
o Brasil não pára de estancar os rios para gerar energia. São 587 hidrelétricas
em operação, média de uma nova usina a cada três meses desde que a primeira foi
erguida em 1883 no Ribeirão do Inferno, afluente do Rio Jequitinhonha (MG). O
setor ganhou importância e hoje 82,8% de toda energia consumida no país vêm de
fontes hidráulicas, segundo a Agência Nacional de Energia Elétrica
(Aneel).
Até os anos 1990, o método "sai da frente" sedimentou as
barragens com o argumento do progresso e do interesse público. Nasceram, então,
gigantes como Itaipu e Tucuruí, numa época em que o governo militar exibia
cartazes no exterior dizendo-se de braços abertos aos dólares e à poluição
primeiro-mundista. Assim, os reservatórios engoliram 34 mil quilômetros
quadrados, ou 0,4% do território brasileiro. Não parece muito, mas é como se um
país inteiro igual à Bélgica, ou Taiwan, tivesse submergido para que pudéssemos
tirar das águas nossa energia.
A Constituição de 1988 trouxe a exigência
de estudos de impactos ambientais para as hidrelétricas. Não só isso, a
democracia descortinou o horizonte holístico e sua visão integrada do homem com
a natureza, pondo desenvolvimentistas e ambientalistas em campos opostos. Estes
conseguiram barrar muitas barragens, mas os adversários ganharam mais fôlego com
o Programa de Aceleração do Crescimento (PAC), lançado em março pelo presidente
Luiz Inácio Lula da Silva. A meta é aumentar a oferta de energia elétrica em
12.300 megawatts até 2012.
Na fila do PAC estão 41 projetos de 24,6 mil
megawatts, 20 deles na carteira do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e
Social (BNDES), com custos de R$ 20,3 bilhões. A capacidade instalada das 587
usinas em operação chega a 74 mil megawatts, segundo a Aneel. Isso representa
28,4% do potencial hidrelétrico no país, estimado pela Eletrobrás em 260,1 mil
megawatts. Metade dessa possibilidade energética fica na região amazônica,
sobretudo nos rios Tocantins, Araguaia, Xingu e Tapajós. Outros 29% correm nas
bacias dos rios Paraná e Uruguai.
* Mauri König é repórter do jornal
Gazeta do Povo, de Curitiba. Com esta reportagem ele foi vencedor do Prêmio de
Reportagem sobre a Biodiversidade da Mata Atlântica 2008, da Aliança para a
Conservação da Mata Atlântica (parceria entre as ONGs Conservação Internacional
e Fundação SOS Mata Atlântica) e do Prêmio Brasil Ambiental 2008, promovido pela
Câmara de Comércio Americana (Amcham).
(Envolverde/Gazeta do Povo (PR))