Na sexta-feira, dia 5 de outubro, estreou em 300 salas do país o filme Tropa de Elite, que supostamente conta a história da violência no Rio de Janeiro a partir do ponto de vista de um capitão do BOPE, o Batalhão de Operações Especiais da Polícia Militar. Só no primeiro final de semana, estima-se que 200 mil pessoas tenham assistido ao filme nos cinemas.
Arte: Elifas Andreato |
Na semana de lançamento do filme, policiais da Delegacia de Roubos e Furtos de Automóveis (DRFA), que contaram com o apoio de agentes da Coordenadoria de Recursos Especiais (CORE) e de um helicóptero da Polícia Civil, devidamente vestidos de preto, exibem para as câmeras um poderoso arsenal (duas metralhadoras ponto 30, uma arma antiaérea, oito fuzis, cinco espingardas calibre 12, oito pistolas e duas mil munições) apreendido no morro Dona Marta, em Botafogo, Zona Sul do Rio de Janeiro. A foto foi publicada nas primeiras páginas da maioria dos jornais da cidade e a notícia também foi destaque nos rádios e televisões do monopólio da imprensa.
Entretanto, muito antes de sua estréia, Tropa de Elite já causava polêmica. Centenas de milhares de cópias piratas "apareceram" nas ruas do Rio de Janeiro meses antes do lançamento oficial, vendidas por camelôs por preços que variavam entre R$ 5,00 e R$ 10,00. Num primeiro momento, os jornais começaram a publicar reportagens sobre as cópias piratas duas ou três vezes por semana. Depois, o "filme do BOPE" virou pauta certa e diariamente era alvo de matérias no monopólio da imprensa. O tema era naturalmente potencializado pelo noticiário sobre a violência, caracterizado por seu sensacionalismo e superficialidade. Segundo o diretor do filme, José Padilha, cerca de 10 milhões de cópias piratas foram vendidas, sendo que o número das cópias das cópias é incalculável.
Mas os "detalhes" sobre o filme brasileiro mais famoso do ano não param por aí. Tropa de Elite foi o longa-metragem mais caro já produzido no país (R$ 10,5 milhões) e teve um significativo investimento estrangeiro. Nada menos que a metade de seu custo foi financiado por dois obscuros cidadãos estadunidenses e pela empresa hollywoodiana Paramount Pictures, genuína representante do imperialismo ianque. Os irmãos Bob e Harvey Weinstein, ex-donos da Miramax, e o argentino Eduardo Constantini, dono do Museu de Arte Latino-Americana de Buenos Aires, investiram R$ 4 milhões em Tropa de Elite ainda no roteiro.
Sim, o filme é fascista
Os responsáveis pelo filme estão sendo acusados de terem produzido uma obra fascista. Isso porque Tropa de Elite glamouriza a tortura e os assassinatos cometidos contra os bandidos favelados, crimes justificados pela estrutura narrativa e pelo reforço da falsa idéia de que o Rio de Janeiro está em guerra.
O personagem principal, capitão Nascimento, tem uma esposa que o ama. O casal espera pelo nascimento do filho e praticamente todas as cenas em que os dois aparecem revelam uma família unida, que divide as alegrias e tenta resolver seus problemas juntos. Para completar, o ator que interpreta o protagonista do filme, Wagner Moura, encarnou um dos principais personagens da novela das oito, na TV Globo, o que contribui para forjar uma simpatia imediata do público.
O outro aspecto a ser analisado é o conceito de guerra, apresentado como fato normal, concreto e inquestionável em Tropa de Elite. Em diversos momentos do filme a narração avisa: "O fato é que o Rio de Janeiro está em guerra". Em diversos trechos ao longo do filme as mensagens nesse sentido retornam: "A guerra sempre cobra o seu preço", diz o narrador pensando no desgaste com a esposa. "Pra enfrentar a guerra contra o tráfico tem que aguentar tudo", explica o capitão ao justificar a pancadaria durante o curso para os candidatos a ingressar no BOPE.
Entretanto, para haver guerra é preciso existir equivalência de forças e disputa ideológica pelo poder. E o fato é que no Rio de Janeiro não há nem uma coisa, nem outra, muito embora o monopólio da imprensa trabalhe 24 horas por dia para dizer o contrário.
É preciso entender que o tráfico varejista se organiza muito mais como empresa capitalista do que como exército. Por exemplo: a invasão da polícia ao Complexo do Alemão, em 27 de junho, contou com 1.350 homens portando pelo menos duas armas cada um. Segundo a própria Secretaria de Segurança há 450 bandidos no Alemão, sendo que nem todos exercem funções armadas (como fogueteiros, vapores e falcões) e os que exercem raramente possuem mais de uma arma. Ou seja, eram 2.700 armas contra menos de 450. Não há equivalência de forças.
Em certos momentos, a construção da imagem heróica do BOPE vai ao extremoe. Logo no início do filme, o narrador afirma: "Se o Rio dependesse só da Polícia convencional, os traficantes já teriam tomado a cidade faz tempo. É por isso que existe o BOPE". Em outro momento, capitão Nascimento afirma que existem 700 favelas na cidade, "a maioria dominada por bandidos armados até os dentes". E num terceiro trecho, ele diz que o BOPE só tinha 100 homens. Se essa lógica fosse minimamente verdadeira, seria correto dizer que 100 homens garantem a paz numa cidade com 5 milhões de habitantes? Nem a Liga da Justiça e o Homem Aranha juntos fariam melhor...
No plano da suposta crítica aos estudantes ricos da universidade, mais uma vez o filme é falho e superficial. O espectador recebe a mensagem, verbalizada pelo narrador, que dá conta de uma "consciência social" absolutamente vulgar. Para o capitão Nascimento, só quem tem consciência social é estudante rico que gosta de ajudar criança pobre. Ainda nessa linha, apresenta-se em três oportunidades a seguinte (falsa) questão: "Quantas crianças a gente tem que perder pro tráfico só pra um playboy poder enrolar um baseado?". Como se a lógica do tráfico de drogas fosse assim tão rasa.
Onde entram os narco-capitalistas?
Neste universo estreito, não há espaço para supor, ao menos supor, que consciência social seja lutar contra o sistema capitalista, cujas mazelas mais terríveis atingem dezenas de milhões de pobres, responsável, em última análise, pela injustiça que aumenta a cada dia — como existe dentro das universidades cariocas. Também não há espaço para questionar o óbvio: quem lucra com o intenso comércio de drogas? Vivem na favela os narco-capitalistas?
Em vez de aprofundar o debate, o filme reforça estereótipos. Contribui, assim, para a alienação das massas. Toda a construção imagética de Tropa de Elite procura identificar a favela como lugar do mal, exatamente como faz o monopólio da imprensa. A sequência das cenas não deixa mentir. Plano aberto na favela, seguido de plano médio e plano fechado nos bandidos armados. É como se 99% da favela fosse isso, quando na realidade é justamente o oposto.
Trata-se de um eficaz reforço da idéia de que o mal reside na pobreza, como fica claro na fala absurda do professor universitário (aquele que supostamente detém o saber): "A polícia reprime aqueles que por sua condição são compelidos a cometer delitos". Ou seja, tudo no filme contribui para a construção da imagem do novo inimigo da sociedade, aquele que deve ser subalternizado e, quando preciso, torturado e assassinado em nome da pretensa tranquilidade de alguns — que, paradoxalmente, nunca estão tranquilos devido ao trabalho incessante do monopólio da imprensa que dissemina o medo constantemente.
Como explica o jurista argentino Raúl Zaffaroni, "a técnica popularesca consiste em alimentar e reforçar os piores preconceitos para estimular publicamente a identificação do inimigo da vez" (O inimigo no Direito Penal, Editora Revan, página 57). Quem completa este raciocínio é a socióloga Vera Malaguti, secretária-geral do Instituto Carioca de Criminologia: "O discurso que animaliza o mal recorre a duas figuras: extermínio ou limpeza, mas tanto uma quanto a outra têm o mesmo sentido, eliminação" (O medo no Rio de Janeiro, Editora Revan). Não bastassem essas análises, pode-se recorrer ao já famoso refrão do BOPE, entoado no filme para deleite de uma classe média imbecilizada ao longo dos anos pela propaganda ianque:
Homem de preto
Qual é sua missão
É invadir favela
E deixar corpo no chão.
De tanto ouvir seu filme ser acusado de fascista, o ator Wagner Moura disse o seguinte num dos muitos debates em que esteve: "O filme é feito pelos olhos do capitão Nascimento. Se as pessoas elegeram esses olhos como salvadores, não é responsabilidade nossa". O funcionário da TV Globo, que já havia publicado artigo em defesa do filme, agora diz não ser responsabilidade deles... o filme deles.
Mas antes de ser uma contradição em termos, tal declaração é o reflexo da alienação ou do cinismo que campeiam no monopólio da imprensa. Eximir-se de responsabilidade pelas consequências de um filme não é apenas desonestidade intelectual, é também uma agressão à inteligência do público, pelo menos aquele minimamente informado. Mesmo que grande parte da sociedade fosse fascista, como quer Wagner Moura (incluindo a empresa onde ele trabalha), não se pode justificar um filme que reforça os piores preconceitos e justifica as maiores atrocidades contra uma determinada parcela da população.
Polícia boa x polícia má
A idéia central de Tropa de Elite é a dicotomia entre uma polícia boa, a que serve aos anseios da sociedade, e uma polícia má, aquela que prejudica a sociedade. A polícia boa seria o Bope, onde se encontram os policiais honestos e incorruptíveis: cerca de 100 homens compõem o batalhão treinado para ser a melhor tropa de combate urbano do mundo. Já a polícia má seria o restante da corporação, 30 mil policiais chamados no filme de "convencionais" ou "pés-de-cão".
Segundo o narrador do filme, "se não fosse o Bope, os bandidos já teriam tomado conta do Rio de Janeiro". Analogia perfeita: uns cento e poucos soldados virtuosos para dezenas de milhares corruptos, assim como temos uma pequena elite portadora das verdades universais para um povão obscurecido por sua própria preguiça.
Essa lógica binária é questionada pelo delegado da Polícia Civil Orlando Zaccone, hoje titular da 52ª DP (Nova Iguaçu):
— Não existem duas bandas, existe uma única instituição que serve para a manutenção da ordem econômica, política e social. Seu objetivo é exercer o controle social.
Zaccone acredita que não é possível resolver os problemas sociais sem alterar a estrutura econômica do país. E completa:
— Refletir sobre as funções da polícia não é falar de muitos policiais ‘maus’ e alguns policiais ‘bons’, ou vice-versa, mas sim de uma instituição corrompida que permanentemente se coloca a serviço do poder político, sem que os políticos se importem se a atividade policial submissa aos interesses dos grupos dominantes é realizada pelos ‘puros/cursados’ ou ‘impuros/pés-de-cão’.
O delegado enfatiza o recado do jurista Hélio Bicudo em seu livro Meu depoimento sobre o esquadrão da morte: "A violência policial exacerbada sob o pretexto de restabelecer a lei e a ordem se constitui na ante-sala dos regimes autoritários". Nesse sentido, não parece casual que durante o enterro do policial morto o capitão Nascimento sobreponha à bandeira do Brasil aquela do BOPE. A caveira, símbolo da tortura e do assassinato ao arrepio da lei, encobre o verde-amarelo tradicional. Na sequência, as imagens concentram-se nas favelas, com os aspirantes já integrados à tropa. E o diretor capricha, sobretudo na cena final do assassinato do "dono do morro": o policial é filmado de baixo para cima e o bandido de cima para baixo, já rendido. A grande provação do oficial será disparar um tiro de escopeta calibre 12 no rosto do bandido, o que é feito sem muita hesitação. O tempo entre mirar, engatilhar e atirar é apenas o suficiente para permitir a exposição para o público do contraste do atirador com a luz do sol que conquista a cena na medida em que o disparo se concretiza. A idéia é muito clara: sai dali um policial iluminado, revigorado por esmagar seus últimos resquícios de humanidade e fuzilar a cabeça de um bandido imobilizado. Tudo sob uma aura virtuosa cuidadosamente construída ao longo do filme. Joseph Goebbels, ministro da propaganda de Hitler, não faria melhor.