Rio de Janeiro, 14/01/2008 – No Brasil foram assassinados pelo menos 76 indígenas em 2007, 58% a mais do que no ano anterior. Esse aumento se concentrou no Estado de Mato Grosso do Sul, onde os guaranis vivem confinados em terras insuficientes para manterem suas tradições. O total de assassinatos no ano passado, divulgado quinta-feira pelo Conselho Indigenista Missionário (Cimi) ainda é preliminar e obterá dados definitivos em abril, quando esse órgão da Igreja Católica divulgar seu informe anual de violência sofridas pela população nativa do País, incluindo atentados, ameaças, suicídios e invasões de terras.
"Já soubemos de outros cinco assassinatos" não registrados
anteriormente, disse à IPS o vice-presidente do Cimi, Roberto Liebgott. Todos os
dados serão analisados nos próximos meses, mas já está claro que os problemas
mais graves estão no Mato Grosso do Sul, onde foram cometidos 48 dos 76 crimes,
destacou o especialista. Em 2006, nesse Estado foram cometidos 20 dos 48
assassinatos registrados. A causa principal é o "confinamento" em que vive o
grupo kaiowa dos guaranis, segundo os indigenistas. Na reserva de Dourados, onde
a violência é mais visível, "há 12.000 indígenas vivendo em pouco mais de três
mil hectares", disse Liebgott.
A vida nas reservas de extensão limitada é
particularmente grave para os guaranis, que por tradição são um povo peregrino,
que costuma cruzar as fronteiras com o Paraguai e a Argentina, onde também é
numeroso. Assim, os conflitos internos e com a sociedade ao redor surgem de
forma violenta. A Fundação Nacional do Índio (Funai), órgão do governo
encarregado da política para a população autóctone, se comprometeu a criar 35
novos territórios indígenas no Mato Grosso do Sul, mas não cumpriu e, em
conseqüência, as tensões prosseguem, afirmou Liebgott. "A Funai não se
manifestou sobre os números e as denúncias do Cimi, apesar de nossa insistência
em ouvir seus diretores", acrescentou.
No Mato Grosso do Sul vivem mais
de 60 mil indígenas, quase a metade do povo guarani-kaiowa, entre os quais
também são numerosos os suicídios de jovens, em geral atribuídos à falta de
perspectiva de vida pela escassez de terras. Mas, no mesmo Estado também vivem,
segundo dados do Cimi, cerca de 16 mil terenas que não apresentam uma incidência
anormal de assassinatos e suicídios, apesar de sofrer uma restrição de terras
semelhante. "Somos um povo com pouca terra, temos um aldeia de 400 pessoas em
quatro hectares", disse à IPS Marcos Terena, presidente do Comitê Intertribal e
diretor do Memorial dos Povos Indígenas, em Brasília.
É muito grande a
diferença entre o kaiowa, um povo que "sofre a síndrome de vítima" e que "não é
agricultor", e os terenas, que cultivam a terra de forma comunitária e se
adaptaram melhor à vida imposta pelos brancos colonizadores, explicou Terena.
Além disso, os kaiowas sofreram muita influência dos jesuítas, que se dedicaram
à evangelização desde que os portugueses chegaram a terras sul-americanas no
século XVI, com o mito da "terra prometida, que coincide com a morte",
acrescentou.
Para Egon Heck, coordenador do Cimi no Mato Grosso do Sul,
"o quadro é aterrador devido ao aumento absurdo da violência", agravada pela
combinação de vários fatores. No campo econômico, os grandes investimentos para
expandir a cana-de-açúcar, diante da euforia do etanol como substituto da
gasolina, fortalecem a presença de monoculturas e encarecem a terra,
convertendo-a em objeto de disputas mais intensas e agressivas. No campo
político, os governos locais estão completamente "alinhados com os interesses do
agronegócio", disse Heck. Essa situação na vizinhança deteriora as perspectivas
de vida futura para os indígenas, "desatando a violência interna nas aldeias",
acrescentou.
Além disso, muitos indígenas trabalham fora, no corte da
cana, por exemplo, por isso permanecem afastados de suas comunidades cerca de 70
dias, "e ao regressarem trazem problemas como o álcool e outras drogas, o que
contribui para tornar mais frágeis as relações sociais internas e com os
vizinhos", explicou o coordenador do Cimi. Há '' usinas açucareiras e
destilarias de álcool combustível operando no Estado e outras 30 em construção,
com perspectivas de chegarem a 60 no total, acrescentou Heck.
Em
novembro, uma empresa produtora de açúcar e álcool do Mato Grosso do Sul foi
fechada ficar comprovado que submetia mais de 800 trabalhadores indígenas a
condições de escravidão. A ação foi realizada pelo Grupo Móvel de Combate ao
Trabalho Escravo, composto por fiscais do Ministério do Trabalho, representantes
da Promotoria e policiais federais.
Outra fonte de violência procede dos
latifundiários locais, que ainda têm o espírito de coronéis e recorrem à força
para resolver conflitos gerados pela nota tática dos guaranis de ocupar terras
que consideram suas e nelas instalar acampamentos, seguindo o exemplo do
Movimento dos Sem-Terra que luta pela reforma agrária, disse Terena.
É
assim que velhos líderes dos guaranis foram brutalmente assassinados, à facadas
e golpes de pau, recordou Terena. Com a valorização da terra, diante da expansão
da soja e da cana-de-açúcar, "inclusive cem hectares são motivo de muita luta".
Acrescentou. As reservas dos kaiowas e dos terenas foram demarcadas há várias
décadas, quando eram poucos os indígenas locais e se previa sua integração à
sociedade "dominante" branca. Mas, suas populações se multiplicaram, sem que
houvesse essa assimilação, disse Terena.
Diante do consenso de que a
escassez de terras é a principal origem dos assassinatos, a solução seria o
Estado adquirir terras próximas para assentar os guaranis. Porém, há
dificuldades territoriais, já que os caiowas vivem em áreas muito povoadas onde
o valor da terra é muito alto, e também há dificuldades políticas. Concretizar
essa solução estabeleceria um precedente diante do qual seriam disparadas
reclamações de indígenas que vivem em condições semelhantes em outras partes do
país, do Sul ao Nordeste, sem abundância de terras como na Amazônia, explicou
Terena, mas, acrescentando que "é necessária".
Um exemplo dessas
dificuldades pode ser vista na ampliação do território da aldeia Taunay, dos
terenas, que passou de 600 para três mil hectares reconhecidos como terras às
quais os indígenas têm direito. Os latifundiários locais, diante da ameaça de
perder áreas que ocupam sem amparo legal, as estão desmatando a toda velocidade,
inclusive para obter maiores indenizações por benfeitorias, disse Terena.
(IPS/Envolverde)
Crédito de imagem: Jefferson
Rudy/MMA
(Envolverde/ IPS)