Na tarde de 30 de agosto, dois trens se chocaram em Nova Iguaçu, Baixada Fluminense, deixando oito trabalhadores mortos e mais de cem feridos. A SuperVia, baseada em um laudo preliminar, realizado por ela mesma, demitiu dois funcionários por justa causa, como se fossem culpados pelo acidente, assim como pelos atrasos, superlotação, falta de manutenção nos trens e linhas, etc. Os ferroviários desmascaram a farsa desses elementos com “operação padrão” e ameaça de greve.
A empregada doméstica Marly Machado Rocha tem 43 anos e é de Nova Iguaçu. Vai e volta para o trabalho, na Tijuca, de trem. A maior parte do trajeto é o percorrido pela composição UP171, que naquela tarde colidiu com o vagão WP908, deixando oito trabalhadores mortos e mais de cem feridos. Marly descreve a difícil rotina de agressões e desrespeito vivida pelos trabalhadores que precisam desse transporte diariamente:
— Esses trens não têm conforto, a gente viaja em pé. Para mim, que viajo todos os dias há seis anos, raramente da pra ir numa boa no trem. Só anda cheio, lotado, atrasa! Às vezes fico até meia hora esperando o trem na estação. Às vezes chega, mas pára no meio do caminho e a gente tem que passar para outro, ou ir andando pra plataforma. Isso ai é constrangedor! As estações daqui (mais próximas da Central do Brasil) são muito diferentes das da Baixada. Por exemplo, a de Austin, coitada! É horrível. Tudo quebrado, não tem estrutura nenhuma, escada quebrada, banco quebrado! Já do Méier pra cá é tudo bonitinho, arrumadinho, têm escada rolante, essas coisas. Então eu acho que tinha que ser tudo igual, Baixada Fluminense e chegando aqui mais perto da zona Sul e da zona Norte. Porque diferenciar? Tem que ser igual pra todo mundo, não é? Ainda mais no trem, que a maioria é pobre. Quem usa trem é quem tem que ir trabalhar e não tem dinheiro pra pagar passagem de van ou de ônibus.
O transporte público no Rio de Janeiro — e de qualquer grande cidade — é de péssima qualidade e cobra tarifas exorbitantes. Os ônibus estão nas mãos de monopólios; o metrô apoderado por capital estrangeiro conhece dias de crescente superlotação; as linhas de trem foram entregues à empresa Supervia, de capital espanhol. Esta empresa, operando a partir de Dom Pedro II, na antiga sede da Central do Brasil, explora o transporte de milhões de proletários (450 mil por dia) de toda região metropolitana do Rio de Janeiro, que utilizam o trem para chegar ao trabalho diariamente, por ser mais barato.
A filosofia do lucro máximo também se faz presente, porém, nos transportes. Em 17 de setembro, a empresa anunciou reajuste nas tarifas para R$ 2,10, apesar do acidente que matou 8 trabalhadores, feriu uma centena e evidenciou a gerência criminosa do transporte ferroviário, que negligencia a segurança, conforto e pontualidade dos serviços prestados.
E apesar dos aumentos que levaram a passagem a um reajuste de 110% em quatro anos — em 2003 custava R$ 1,00 tendo subido R$ 2,10 até hoje, numa média de 27,2% ao ano— um relatório da Agetransp (Agência Reguladora de Serviços Públicos Concedidos do Rio de Janeiro) revela que em 2006 foram anotadas 198 irregularidades contra a SuperVia, que é a segunda empresa mais advertida no estado, perdendo apenas para a Opportrans, do metrô. Ou seja, mesmo com a privatização e os constantes reajustes, as ferrovias fluminenses não receberam suporte algum e estão cada vez mais desamparadas.
Condições precárias
O presidente do Sindicato dos Ferroviários, Valmir de Lemos Índio, tem muito a contar sobre a situação das ferrovias do Rio e o massacre dos ferroviários. Morador de Magé, tem 49 anos, e trabalha como ferroviário há 27. Foi responsável pela manutenção de trens, trabalhando 8 horas por dia ao longo de quase três décadas, sem contar com as viagens de ida e volta para o trabalho; muito longas por sinal, visto que o município de Magé fica a 86 km da capital. Ele conhece bem a árdua rotina desses trabalhadores:
AND - Quais são as principais denúncias que os trabalhadores fazem às condições de trabalho e de segurança no serviço administrado pela SuperVia?
Valmir - Não tem ferramentas de trabalho, peças de reposição e a segurança dos passageiros e trabalhadores não existe. Problemas muito graves de sinalização, a queda de energia é constante e até a própria violência em torno da via, que é um grande risco para os passageiros e trabalhadores, como companheiros nossos, que têm que parar serviço diariamente por causa de tiro e violência.
AND - Existem diferenças entre as estações da Baixada Fluminense e as mais próximas da região metropolitana do Rio?
Valmir - As diferenças são grandes! Mesmo estações como a do Méier, que todos pensam ser boa, tem muito problema! Por exemplo, a passarela não tem sinalização à noite, escada rolante não funciona, mas quem vê de fora acha que está tudo certo. Você tem a estação de Engenho de Dentro, que por causa do PAN e do Engenhão, está recebendo outro tratamento e para quem passa por ali, fica a impressão de que está tudo bem. E essas obras são construídas com recurso do estado, do povo, nosso dinheiro, não da SuperVia. Mesmo assim, partindo da Central do Brasil, as coisas funcionam no máximo até Deodoro. Quando você pega um ramal da Zona Oeste — que vai pra Santa Cruz — Japeri e Paracambi, ou o ramal de Caxias, Belford Roxo, todos eles são muito precários. O tratamento é muito desumano com esse povo que mora distante e chega a viajar duas horas de trem pra chegar no trabalho. Com salário baixo, a maioria dessas pessoas não pode pegar ônibus. O que eles fazem é uma maquiagem entre as estações de Deodoro e da Central do Brasil e quem sofre com tudo isso é o povo pobre que precisa do transporte no dia-a-dia, além dos ferroviários.
A verdadeira culpa
Mesmo não possuindo respaldo legal, a comissão criada pela SuperVia para apurar superficialmente as causas do acidente decidiu demitir, por justa causa, o maquinista Norival Ribeiro do Nascimento, que tem 27 anos de experiência, e o operador de tráfego Édson Assunção Filho.
A pressa em atribuir culpa aos ferroviários não respeitou nem a licença médica dos funcionários — a legislação trabalhista proíbe que alguém seja demitido em período de afastamento por problemas de saúde. Além disso, como é que um laudo da própria empresa pode servir de prova para demitir alguém?
Os trabalhadores foram apontados como únicos culpados pela colisão e o anúncio foi feito no dia seguinte à conclusão do laudo, antes até dos ferroviários demitidos darem explicações à polícia, que também investiga o caso. As investigações policiais, no entanto, estão se norteando pelo laudo da SuperVia e apenas dois dias após a conclusão dele, os policiais responsáveis pela perícia já se pronunciaram atribuindo parcialmente a culpa aos trabalhadores e isentando completamente a empresa.
Como se pode afirmar de pronto que um acidente dessas proporções tenha sido causado por falha dos trabalhadores? Trata-se, evidentemente, de arbitrariedade dos administradores da SuperVia contra os trabalhadores ferroviários e outros que utilizam todos os dias esse serviço que abrange 11 municípios da região metropolitana do Rio de Janeiro.
Revoltados com a decisão tomada pela empresa, os trabalhadores se organizaram e na assembléia do Sindicato dos Ferroviários do dia 12 de setembro, aprovaram uma Operação Padrão por tempo indeterminado e ameaça de paralisação dos serviços, em solidariedade ao operador e ao maquinista demitidos.
Valmir contou ainda que é enorme a pressão sobre os ferroviários para o cumprimento dos prazos de viagem impostos pela SuperVia. A empresa pune rigorosamente aqueles que não cumprem suas “normas de segurança”, que são incompatíveis com o tempo fixado para as viagens. Dessa forma, qualquer acidente terá os ferroviários como culpados, e nunca a empresa.
Essa pressão faz os maquinistas trafegarem acima da velocidade permitida. Isto, de acordo com Marly, que viaja todos os dias, é muito comum:
— O trem sempre anda muito acima de 60km/h, porque já chega no mínimo 20 minutos atrasado, se for andar devagar então! Aí a gente não chega no serviço nunca. Tem pouco trem pra muita gente!
As pressões feitas pelos ferroviários obrigaram a SuperVia a readmitir o operador e o maquinista. Mesmo assim, os ferroviários continuam mobilizados contra qualquer outra injustiça que venha a ser cometida.
A privatização destruidora
Para chegar ao seu destino, além das tarifas exageradas que os trabalhadores são obrigados a pagar, é eminente o risco de acidentes nas linhas férreas do Grande Rio, assim como são precárias as condições de trabalho dos ferroviários. No início de 1999, quando a SuperVia começava a administrar o serviço, dois trens se chocaram no bairro de Piedade, na Zona Norte do Rio, matando 4 pessoas e deixando 34 feridas.
Em 2000, dois trens colidiram em São Cristóvão ferindo 58 pessoas. No ano seguinte um trem invadiu a plataforma de embarque da estação Leopoldina, uma das maiores do Rio, derrubou duas pilastras e feriu 12 trabalhadores. Em agosto de 2004, no ramal de Japeri, Baixada Fluminense, 47 pessoas ficaram feridas no choque entre dois trens.
Além das outras 198 irregularidades das quais a SuperVia é acusada, a empresa é criticada ainda pela falta de segurança na linha férrea e pela má sinalização em passagens de nível, o que já causou muitas mortes.
Em 2004, pelo menos três trabalhadores morreram atropelados ao tentar atravessar a ferrovia por um buraco nos muros; o mesmo aconteceu com outras duas jovens em março desse ano. Todos esses crimes somados a outros totalizam um assustador número de 17 mortos e 326 feridos em nove anos.
Porém, a SuperVia afirma ter gasto, até 2006, R$ 400 milhões com a modernização da malha férrea, o que é contestável, se levarmos em consideração os constantes acidentes que culminaram no desastre do dia 30 de agosto de 2007, mostrando que a entrega do serviço para o imperialismo e o aumento injustificável das tarifas ao longo desses nove anos, só conseguiram provar que o único direito respeitado é o de “ir e vir” do capital financeiro.
Crime ou acidente?
Inúmeras têm sido, nos últimos anos, as violações imperialistas aos direitos do povo. Tudo é farsa da maior conveniência. Alegam que os trabalhadores ignoram o “direito de ir e vir” quando fazem greve, mas não o invocam no caso do abandono diário dos equipamentos e nos inexplicáveis aumentos de tarifas. Encontram a maior facilidade para culpar os trabalhadores que, sob péssimas condições de trabalho, expandem as linhas do metrô de São Paulo, ou conduzem aviões nos céus da Amazônia e nas pistas esburacadas dos aeroportos, guiados por controladores de vôo com instrumentos obsoletos ou formação incompleta.
As mortes chegam aos milhares, e a culpa sempre é atirada sobre os trabalhadores, que constituem o lado mais fraco, sempre facilitando o lucro máximo, como retrata a situação nos aeroportos.
No Rio de Janeiro os exploradores dos transportes (Fetranspor, SMTU, SuperVia e Opportrans) ditam as regras, aumentam constantemente as tarifas com justificativas sem sentido, reprimem o transporte popular e o direito ao trabalho, limitam o passe-livre dos estudantes, negando o direito de exercer atividades extracurriculares, como ir à biblioteca, fazer pesquisas ou praticar esportes aos fins de semana.