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Rio de Janeiro, Brasil, 16/7/2013 – Como um dos supostos principais alvos do controle cibernético norte-americano, o Brasil tenta destrinchar uma trama de espionagem de tecnologia de última geração com recursos artesanais semelhantes aos descritos nas novelas do inglês John le Carré. O especialista brasileiro em assuntos internacionais Marcos Azambuja disse à IPS estar surpreso pelo alcance da operação de espionagem de Washington sobre o Brasil, revelada pelo jornal O Globo a partir de informações do ex-contratado de inteligência norte-americana Edward Snowden.
“Há violações à privacidade e intervenção em comunicações telefônicas, telegráficas, de emails, e são tão vastas e tão invasivas que é difícil encontrar algum paralelo no passado”, afirmou Azambuja, que, entre 1989 e 2003, chefiou a delegação brasileira para assuntos de desarmamento e direitos humanos junto à Organização das Nações Unidas (ONU), em Genebra, foi secretário-geral da Chancelaria e embaixador na Argentina e na França. “Antes, a espionagem tinha um alvo determinado. Era quase uma atividade artesanal e se agia diante de suspeitas”, recordou. “Agora, as novelas de le Carré parecem escritas na Idade Média. Estamos diante de uma mudança qualitativa e quantitativa da espionagem”, destacou.
Diante da extrema gravidade da descoberta, o governo brasileiro e dos demais países sul-americanos reagiram duramente. Brasília pediu explicações ao embaixador dos Estados Unidos, Thomas Shannon, e iniciou investigações para determinar a cumplicidade das empresas de telecomunicações em território brasileiro. Também informou que promoverá em nível internacional o aperfeiçoamento das regras multilaterais sobre a segurança das comunicações e que apresentará na ONU iniciativas “com o objetivo de proibir abusos e impedir a invasão da privacidade de usuários das redes virtuais” e da soberania.
Entretanto, tudo parece pouco, como admitiu o próprio ministro da Defesa, Celso Amorim, ao ser interpelado pelo parlamento. Em matéria de defesa cibernética, o Brasil ainda “está na infância”, afirmou. O orçamento para a área este ano é inferior a US$ 44 milhões, um quarto do que destina, por exemplo, a Grã-Bretanha. Os documentos divulgados pelo jornal O Globo indicam que, na última década, a Agência de Segurança Nacional dos Estados Unidos (NSA) e empresas estrangeiras instaladas no Brasil vigiaram pessoas residentes ou em trânsito.
Em janeiro, o Brasil ficou atrás apenas dos Estados Unidos, com 2,3 bilhões de telefonemas e emails vigiados por meio de pelo menos três programas de computação, situando-se, assim, com um dos alvos de espionagem preferidos de Washington, equiparável a China, Rússia, Irã e Paquistão, todos “mais problemáticos” para a potência do Norte. Além disso, e pelo menos até 2002, afirma-se que Brasília foi uma base de espionagem por satélite da NSA e da Agência Central de Inteligência (CIA), um “privilégio” de apenas outros 15 centros mundiais e a única na América do Sul, embora também os vizinhos do Brasil tenham sido rastreados.
“Estou surpreso com essa hierarquização do Brasil, que está à margem da luta antiterrorista”, afirmou Azambuja. Existe apenas a questão da Tríplice Fronteira, zona compartilhada por Brasil, Argentina e Paraguai que sempre preocupa Washington pela suposta presença de grupos islâmicos, negada sistematicamente pelos três países envolvidos. Mas o crime que os Estados Unidos cometem seria mais grave, segundo o diplomata, se a espionagem tiver objetivos ainda “menos justificáveis”.
O Brasil é a sexta economia mundial, descobriu grandes reservas de petróleo na camada pré-sal do Oceano Atlântico, desenvolve alta tecnologia nuclear para fins pacíficos, sua dinâmica indústria aeronáutica compete em licitações internacionais e tem outras empresas no exterior em áreas como hidrocarbonos, mineração e construção. Clóvis Brigagão, da Faculdade Cândido Mendes, aponta para o papel internacional do Brasil. O motivo pode ser a “postura independente de Brasília em política internacional”, disse à IPS.
Brigagão acrescentou que Washington pode ter “encontrado neste país outro inimigo fantasma”, por sua pretensão de obter um lugar permanente no Conselho de Segurança da ONU ou por sua postura diante de Turquia e Irã. Também há as matérias-primas, “que no Brasil envolvem recursos estratégicos”, e a “obsessão” de Washington por “manter sua hegemonia nessa área”. Por sua vez, Celso Pereira, da Universidade Federal do Rio de Janeiro, supõe que a espionagem seria pelo “peso internacional do Brasil e pelo tamanho de sua economia”.
O “governo brasileiro não é irresponsável, tem relações normais com o Irã e os países árabes”, ao mesmo tempo em que mantém “estreitas relações com Venezuela, Equador e Bolívia”, todos com “litígios importantes com os Estados Unidos”, pontuou Pereira à IPS. “Não é que seja diferente da época da Guerra Fria. A novidade é que estamos diante de um novo instrumento de espionagem pela internet, que facilita a invasão da soberania e da privacidade das pessoas, e não só dos Estados Unidos”, destacou.
“Quais são as regras deste novo jogo eu não sei”, disse Azambuja. “Antes, a espionagem era contra países rivais, de um caráter quase artesanal, mas agora vivemos um momento inédito das relações internacionais marcado pela capacidade de penetração do sistema mundial de comunicações, por intermédio de supercomputadores”, ponderou. É uma nova ordem ou “desordem” internacional, segundo o diplomata, que exige maior desenvolvimento tecnológico nacional, primeiro para determinar o alcance da espionagem.
Nesse sentido, o Brasil aposta em instrumentos como o lançamento de um satélite nacional, cabos submarinos ópticos e um centro de dados de informações por internet. Ainda assim há riscos de invasão cibernética. O embaixador norte-americano, que negou as denúncias, teria admitido que seu país tem registro de “metadados”, como os de horário, frequência e duração de chamadas, e até de tráfego de emails, embora supostamente sem aceder ao seu conteúdo.
“Por mais que tenhamos proteção de dados por criptografia, a simples detecção sobre este tipo de contato já é uma informação de valor analítico para um eventual adversário do país”, explicou o ministro Amorim. Concluindo, Brigagão acredita que a região está diante de um novo crime internacional de “ciberespionagem” que exige ser colocado na agenda mundial. Porém, Pereira se mostra pessimista a respeito. “Na América do Sul não temos as condições tecnológicas que possuem os Estados Unidos para espionar e contra-espionar. Isto vai continuar”, opinou. Envolverde/IPS