KATIA MARIA DE ALMEIDA REBELLO DENUNCIA AGRESSÃO AO SEU MARIDO LEONARDO MIRANDA FILHO

Terça-feira, 2 de dezembro de 2008, 14 horas, Leonardo, meu marido, volta para casa entusiasmado por ter feito o que mais gosta, música. Vai caminhar por nossa pacata rua – essa, onde costumamos achar um privilégio morar. Na esquina, liga para o meu celular e conta entusiasmado sobre a gravação de que havia participado tocando flauta. Vai caminhando pela rua Humaitá e falando comigo. Na altura do ponto de ônibus, onde a calçada se estreita, vêm passando na direção oposta nossa vizinha, moradora da Rua Diógenes Sampaio, seu funcionário e seus dois pit bulls. Na passagem, Leonardo esbarra em um dos cachorros. Esbarra apenas, tão discretamente, que do outro lado da linha não percebo nada, e ele segue conversando, mas de repente, ouço ao fundo um vozerio. Leo se cala por um instante e, quando volta a falar, é para me dizer: "O cara está me ameaçando. Liga para a polícia agora". Eu não entendo. Ele desliga e torna a ligar repetindo que está sendo ameaçado e pedindo que eu ligue para a polícia. Não tem tempo de dizer quem o estava ameaçando nem do que. Eu não entendo e não sei o que dizer à polícia. Estou saindo de casa, a apenas um quarteirão do local, e decido ir até lá o mais depressa possível para entender o que há.

      Não entendo. Vejo, mas não entendo. Alguém está caído na rua, desacordado. É o meu marido. Pessoas aglomeradas em torno dele me contam que um rapaz com dois cães o esmurrou e chutou seu rosto várias vezes enquanto ele estava desacordado, estirado na calçada. Por quê?

     Quando Leo finalmente recupera os sentidos e consegue entreabrir um dos olhos, balbucia a explicação, se é que isso pode ser chamado de explicação: ele esbarrou num dos cães do rapaz. O rapaz, o auto-intitulado "adestrador de cães", chamou-o aos gritos dizendo "eu sei quem você é, foi você que me denunciou, vou quebrar a sua cara" e partiu para cima dele. Se eu ainda tivesse dúvidas quanto à identidade do agressor, elas teriam cessado alguns instantes depois, quando o próprio passou pela calçada, batendo no peito e gritando, para quem quisesse ouvir, que sim, tinha sido ele mesmo e que faria de novo, porque, afinal "o cara chutou o meu cachorro e me xingou". Meu marido estirado no chão, com o rosto deformado e carimbado com o solado do tênis do agressor: a sensação de impotência e desproteção, a indignação desamparada diante de uma força bruta sem freio nem muito menos resquício de respeito por qualquer consideração moral são indescritíveis, sentimentos que pessoas normais não desejam ao pior inimigo.

      Vou poupá-los dos detalhes, da absurda espera pela polícia e pelos bombeiros, do inferno da peregrinação por hospitais, delegacia e IML, para exame de corpo de delito; dramas brasileiros que dizem respeito a todos nós, mas não particularmente a nossa associação de moradores. Aqui, vou limitar-me a um perigo mais próximo dos moradores da Miguel Pereira do que do resto do Brasil.

     Leonardo sofreu uma série de fraturas cranianas, pneumo-encéfalo que o sujeita a um infecção cerebral, e um hematoma epidural potencialmente cirúrgico. Felizmente, o hematoma está se diluindo, e esse risco maior agora está reduzido, mas ainda é possível que tenha de submeter-se a uma cirurgia bucofacial, que, no mínimo, o afastará da flauta por bastante tempo, além do trabalho como médico, claro. Diga-se de passagem, não fazemos idéia, ainda, de quando Leo poderá voltar a trabalhar, e somos ambos médicos, profissionais liberais e, portanto, para nós, não trabalhar, seja pelo motivo que for, significa não receber. Isso, para não falar das conseqüências emocionais para ele, para meus filhos e para mim.

     Em circunstâncias como essa, alguém perguntará: mas terá sido assim mesmo, só por causa de um esbarrão? Não terá havido nada antes? E a denúncia? A que o agressor se referia quando disse "eu sei quem você é, foi você quem me denunciou"?

     Sim, houve um incidente anterior. Há três anos, um dos nossos cachorros (sim, temos três e também gostamos de animais, só não mais do que de gente) foi atacado na rua e ferido por um dos pit bulls da vizinha quando passeavam com o mesmo rapaz. A conversa sobre o incidente estendeu-se, e, de repente, o adestrador tornou-se agressivo e ofendeu um casal de amigos que nos visitava. Por conta desse episódio, chegamos a mover uma ação, que ao final não deu em nada, contra a proprietária do pit bull, que andava sem focinheira. Depois disso, absolutamente mais nada. Conto o episódio só para esclarecer todo o contexto, não porque isso mude coisa nenhuma.

     Conheço meu marido, uma pessoa particularmente gentil, e não só sei que não é um mentiroso como sei que chutar cachorros, de quem quer que sejam e em qualquer que seja a ocasião, não está entre os seus hábitos, e não seria quando estava especialmente feliz e bem-humorado, falando alegremente comigo ao telefone, que iria desenvolver o costume. Mesmo assim, imagine que alguém chutasse o seu cachorro, suponha até que essa pessoa o xingasse. Vá além e considere que essa mesma pessoa, tivesse, três anos antes, iniciado uma ação que o envolvia e que, embora não tivesse resultado em nada, fosse, na sua opinião, injusta. Você esmurraria e chutaria várias vezes a cabeça dessa criatura enquanto ela estivesse desacordada sobre a calçada? É admissível, concebível, tolerável que alguém aja dessa forma seja sob o pretexto que for? Fico me perguntando o que precisariam fazer para que eu ou qualquer pessoa minimamente equilibrada e civilizada, enfim apta a viver numa sociedade, reagisse de uma maneira parecida. E recordo: Leo simplesmente esbarrou no cachorro.

     O que a nossa associação tem com isso? Bem, se depois desse relato alguém ainda se fizer essa pergunta, explico: a Justiça poderá penalizar esse cidadão por lesão corporal e afastá-lo do nosso convívio por meses ou alguns anos, mas até lá, todos nós e nossos filhos continuaremos a conviver com uma criatura que, contrariada, é capaz de chutar a cabeça de qualquer um e obviamente será capaz de mais enquanto a barbaridade de agora não tiver conseqüência para ele.

     O que exatamente podemos fazer? Sinceramente, não sei. Nesse momento, tenho que lidar com problemas que só eu posso enfrentar: cuidar do meu marido; ajudá-lo a recuperar-se; explicar isso tudo aos meus filhos da maneira menos traumatizante possível, observar suas reações a esse episódio; levar o processo na Justiça adiante; e continuar trabalhando para arcar com as despesas do tratamento e driblar a queda na nossa receita. No meio de tudo isso, francamente, não me sinto capaz de encontrar sozinha o caminho para a solução de um problema que não é só meu, mas de todos nós.

     O que eu sei é que não é possível achar-se civilizado quando se tolera a barbaridade, nem sentir-se seguro quando se aceita a lei da selva e assiste passivamente o mundo cão desfilar à nossa porta. O que eu sei é que se os crimes do tráfico de drogas, as chacinas, os seqüestros, as crianças abandonadas, os crimes passionais televisivos e todas as tragédias espetaculares a que assistimos nos anestesiarem para a violência que está debaixo do nosso nariz, ela se tornará tão trágica quanto qualquer dessas tragédias. O que eu sei é que, se não podemos, do dia para a noite, resolver os problemas de segurança do país, temos ao menos que impor um mínimo de civilidade ao nosso quarteirão. Se não formos capazes disso, do que seremos?


     "Nenhum homem é uma ilha, inteira em si; todo homem é uma parte do continente, um pedaço do território todo. Se um torrão de terra for levado pelo mar, a Europa fica menor como se fosse um promontório, como se fosse a casa de teu amigo ou a tua própria. A morte de qualquer homem me diminui um pouco, pois estou envolvido com toda a humanidade e, portanto, não mandes perguntar por quem os sinos dobram; eles dobram por ti." John Donne


     Katia Rebello

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