É assim que se conquista a terra

Publicado originalmente no jornal A Nova Democracia

Uma grande festa reúne camponeses no município de Campina Verde, Minas Gerais. Eles comemoram a conclusão do corte popular. É isso mesmo: popular. Os próprios camponeses, cansados da enrolação do Incra, dividiram seus lotes, colocando em prática a consigna adotada de Conquistar a terra, destruir o latifúndio!

Brigada de camponeses e estudantes se prepara para medir e demarcar os lotes

Há três anos, todos trabalhavam exclusivamente para o latifúndio. Mas veio a Liga dos Camponeses Pobres do Centro-Oeste e trouxe a causa cristalizada na luta. Os explorados da terra, empenhados em conquistar um pedaço de chão, não descansaram até chegar este momento que tanto ansiavam: o de cortar a terra e dividi-la entre todas as famílias.

São camponeses oriundos da luta pela Fazenda Salitre, em Patrocínio (MG), libertada pela primeira vez em 8 de novembro de 2003, quando resistiram por duas vezes ao aparato repressor do Estado. Também vieram camponeses de outras batalhas, como os da Fazenda Fortaleza (Patrocínio, MG).

Ali já não existem mais relações de produção baseadas na exploração do homem pelo homem. Existem sim, propriedades individuais, familiares que, todavia, têm necessidade de se juntar em determinadas situações para estabelecerem relações de colaboração. Ou seja, estabelecem um tipo de relações de produção baseadas na ajuda mútua, sendo comum aquelas famílias formarem brigadas. (ver em AND 31, o artigo Quando homens livres produzem).

O corte popular foi realizado nas áreas Conquista dos Palmares e Cachoeirinha, que foram negociadas pela Liga dos Camponeses Pobres com o Incra para solucionar os conflitos do latifúndio denominado Fazenda Salitre (em Patrocínio, MG).

Há quase dois anos os camponeses foram transferidos para estas áreas e em todo este período procuraram produzir seus alimentos e os do povo ao redor. Já produziram rapaduras, plantaram arroz, mandioca, abóbora e outros alimentos, fizeram suas hortas e criaram animais.

Cortar todas as terras

A brigada em ação

Para a Liga dos Camponeses Pobres, o período de acampamento, pela sua própria natureza, impõe muitas restrições. Por isso, deve ter a menor duração possível. O objetivo não é o de manter acampamentos, mas o de conquistar a terra e libertá-la.

Uma Assembléia Popular realizada na área Conquista dos Palmares lançou a proposta do corte popular. A sugestão foi a de propor às famílias de todas as áreas que — nessas condições e dirigidas pela LCP — se unissem para adquirir a aparelhagem necessária à execução do corte. Essa medida drástica e corajosa por parte dos camponeses, já que eles dispõem de pouco dinheiro para o sustento de suas famílias, é uma resposta à demora do Incra em realizar o parcelamento da terra.

— O corte é muito importante. Estamos há muito tempo esperando. Nesse ambiente de mentiras mantido pelo latifúndio, com seu Estado, suas leis e polícias. Até agora eles não resolveram nada. Então, para resolver o nosso problema, nós nos unimos e fizemos um trabalho mútuo, juntando vários acampamentos e compramos alguns instrumentos de trabalho. Com eles, nós vamos cortar as terras que o Estado e o Incra não querem cortar. Agora mostramos a verdade. Se o Estado não quer, o povo faz — diz Hélio Batista, um dos dirigentes da área Cachoeirinha.

Sebastiana Maria dos Santos, também do Cachoeirinha, completa:

— A gente não pode depender do Incra. Por exemplo, se você pega um fomento — dinheiro emprestado—, quanto tempo você vai ficar pagando? Ninguém consegue pagar. É melhor nós nos organizamos em grupos de ajuda mútua do que esperar pelo Incra e esse Estado. Prefiro enfrentar as maiores dificuldades, mas libertar a nossa capacidade de trabalho. O corte popular é um impulso na nossa vida, na nossa luta. Lutar e depois esperar pelo governo é jogar fora a nossa luta. Não funciona nada. Só vamos ser escravos dos latifundiários a vida inteira.

O corte popular é o parcelamento da terra em lotes individuais, que serão repassados a cada família. Geralmente, em áreas destinadas à “reforma agrária”, o Incra é responsável por fazer a divisão dos lotes. Mas como o Incra sempre tenta adiar ao máximo a entrega da terra aos camponeses, a LCP incentiva a organizar o corte popular.

— A diferença é do corte mais rápido e que também satisfaz melhor a gente. Então a diferença é grande. A gente não precisa esperar pelo Estado e é o povo mesmo quem faz. Imagine esperar 10, 20 anos pelo Incra. Muitas vezes eles não fazem corte algum. Eles cortam uma fazenda a cada cinco anos para falar que estão fazendo a “reforma agrária” e, no final, não estão fazendo nada. Que reforma agrária é essa? Só precisa, então, o povo se organizar e resolver o problema com o seu próprio cérebro e mãos. Vamos provar que o povo não está disposto mais a esperar. Mais do que provar, vamos governar a nossa vida — afirma Hélio Batista.

— Eu achava que o corte da terra era algo diferente, uma coisa de outro mundo, porque o Incra demora muito para fazer. Mas o corte popular é feito através da organização, da força do povo. E o mais importante: é uma decisão dos camponeses mesmo — explica José Carlos Gonçalves de Souza, também da área Cachoeirinha.

As assembléias do povo

Em todo o processo desse tipo de distribuição da terra, a Assembléia Popular é o órgão máximo de deliberação, além de ser o centro de discussão de todas as etapas. A propósito, é a organização suprema dos camponeses na área, aquela que julga, legisla e executa segundo os seus interesses e os do povo de uma maneira geral.

Elisabete Moreira dos Santos, do acampamento Cachoeirinha, completa:

— Eu não participei diretamente do corte, mas todos nós participamos através da Assembléia e entre as famílias, onde o corte era discutido com todos. A Assembléia, com seu método de discussão e aprovação, tudo decidia. Desde a discussão sobre a compra dos aparelhos, foi tudo muito democrático. Aprendemos a pensar juntos tendo opiniões diferentes, mas os mesmos interesses. Então, a mesma política e uma mesma direção. Dessa forma se torna possível ouvir todo mundo, como nunca se ouviu.

O processo da divisão da terra, segundo o método do corte popular, é organizado por etapas: Primeiro, se adquire a aparelhagem necessária para medir a terra. Em segundo lugar, se instrui sobre o manuseio dos aparelhos. Faz-se o trabalho de campo e, depois, em escritório, se promovem correções e se confeccionam os mapas. Por último, dá-se o sorteio dos lotes que todos conhecem.

Os camponeses conseguiram adquirir um teodolito — aparelho usado em agrimensura —, um aparelho GPS — que dá a posição e distâncias de um ponto através de satélite —, um computador e uma impressora. Essa estrutura quase profissional proporciona uma demarcação mais precisa — mas igualmente justa — que o método artesanal, através de cordas, feito também pelos camponeses em uma área da cidade de Manga, Norte de Minas (ver em AND 33, A terra se conquista agora).

O trabalho de campo é um trabalho de topografia, de reconhecimento bem detalhado do terreno. Consiste em definir e localizar os acidentes geográficos da área. Através desta definição é possível determinar as medidas da área e o perímetro para representá-las através de uma planta ou carta topográfica.

Hoje, há condições de, imediatamente após o detalhamento da área, confeccionar pelo menos dois mapas, com a localização e delimitação de cada lote. São mapas distintos para que os camponeses possam escolher o modelo que melhor atende às suas necessidades imediatas e futuras.

Estudantes do povo

Nessa etapa do trabalho foi importante o apoio que os camponeses receberam de um topógrafo da cidade de Uberlândia e dos estudantes que servem ao povo, um contingente de militantes do Movimento Estudantil Popular Revolucionário. Eles estiveram presentes nas atividades de escritório, e também participaram do próprio trabalho de campo.

A grande maioria dos camponeses nunca havia manuseado os instrumentos de topografia. Bastou aprender, já que a força de vontade e a capacidade das massas são infinitas.

— Um companheiro ensinou a gente a utilizar os instrumentos, o que não foi difícil aprender, e até rápido — explica Edmar dos Santos, da Conquista dos Palmares.

Apesar da animação dos camponeses agora que o corte já está concluído em uma área e em andamento em outra, eles não escondem as dificuldades que enfrentaram e as preocupações que os atormentam.

— As dificuldades que tivemos até agora foram comprar os instrumentos e manuseá-los. Conseguir o dinheiro para comprar foi difícil e muita gente teve que trabalhar fora para pagar sua parte. Um companheiro conseguiu tirar da própria terra o dinheiro para pagar a sua parte, através da produção de tijolos — lembra Hélio Batista.

— Eu acho que no meio disso tudo teve alguma coisa que deixou o povo tenso. O INCRA andou fazendo ameaças, dizendo que não se podia dividir a terra. A verdade é que estas áreas sempre pertenceram ao povo e só faltava ir para cima e tomá-las. Agora, o INCRA vem dizer que não têm condição de resolver, que isso é com o Tesouro Nacional. Mas nós sabemos que é o corte popular que resolve. Por isso, vamos partir para cima mesmo — acrescenta José Bernardo.

Uma festa, duas...

17 de fevereiro de 2007. Primeira festa de comemoração da divisão da terra. A área revolucionária Conquista dos Palmares acordou alegre.

— No dia do sorteio ficou todo mundo ansioso, esperando chegar a hora. Eu mesma fiquei muito nervosa. Não consegui dormir antes da festa e nem depois. Quem pegou o papel do lote foi o meu marido. Eu estava ansiosa demais, não conseguia nem me levantar — relata Ozilândia Pereira dos Santos.

Esta festa foi mais do que uma comemoração do final dos trabalhos. Porque foi também o grande momento de entregar aquilo que, há gerações, pertencia aos camponeses.

Elizabeth Moreira explica:

— O sorteio foi parecido com o bingo. Primeiro sorteava os nomes, depois cada um tirava uma pedra. O número que saísse correspondia ao lote da pessoa. No final, todo mundo ficou muito satisfeito. Mas o principal do sorteio é que não havia lote ruim, já que o corte de toda a área foi bem pensado e trabalhado, de maneira a não prejudicar ninguém, nem lançar a culpa na sorte dos outros.

Portanto, não houve sorte, mas centralismo democrático, trabalho, Poder popular instituído. O “sorteio” não passou de um jogo, de uma brincadeira com o mito da felicidade ao acaso. Nenhum terreno ou vizinho era ruim, mas significava conforto, segurança, boas-vindas, afeto. E ela conclui:

— A festa foi muito animada, com carne assada e guaraná. Vieram muitos convidados de fora dos acampamentos vizinhos, até de outros movimentos. O corte popular foi a coroação da nossa vitória. A gente sabe que realmente está acontecendo, que não é um sonho, que é realidade. O nome do nosso sítio é Alcides Bezerra, uma homenagem ao pai do meu marido, falecido no decorrer desta luta.

No primeiro dia após o sorteio, o inevitável: todas as famílias queriam ver, tocar, sentir a terra que era sua. A pé, as famílias foram aos seus lotes, uns mais pertos e outros mais distantes de onde viviam provisoriamente.

Mesmo com pouco tempo decorrido desde o corte da terra, os camponeses fazem questão de explicar como suas vidas já mudaram.

— A gente sabe que está no que é seu, reconhecido pelo povo. Meu plano é trabalhar dentro da minha terra, direto; nunca mais sair para trabalhar para outros que nos explorem — afirma Edmar dos Santos.

As vitórias não guardam apenas o sabor das angústias derrotadas e da superação de uma vida de opressão sob as botas dos latifundiários, dos juízes e da polícia. Há algo muito maior: um mundo novo que se descortina, a estratégia e a tática do povo postas em prática, e os direitos do povo transformados em Poder se espalhando pela terra brasileira.

Maria Helena explica:

— O corte está fortalecendo muito a nossa luta. A gente distribui panfletos na cidade contando, provando o que fizemos e o que deve ser feito de uma vez por todas. Aí o povo pensa “Ah, vamos entrar nessa Liga porque o povo é forte”. Isso só tem fortalecido ainda mais a nossa causa.

Maria Helena Saraiva, conclui com um recado para todos os brasileiros iguais a ela:

— Quero falar para todos que quiserem vir ser donos de seu chão, na sua terra chamada Brasil, construírem sua verdadeira pátria. Para mim, lutar nas fileiras da Liga é muito bom. Enquanto eu estiver viva lutarei sempre.

É Hélio Batista quem deixa o recado para os governantes da vez:

— Através do corte popular, vamos mostrar para o sistema de Estado e de governo o que fazemos com as nossas mãos. Nós, de agora para frente, não vamos esperar mais por governo mentiroso nenhum, que só quer nos empurrar para a miséria. Vamos fazer tudo com o nosso próprio cérebro e próprias mãos. Até mudar esse nosso país, até o povo mandar, de norte a sul.

Os camponeses preparam mais comemorações. No dia 02 de junho, Conquista dos Palmares realizou a mudança para os lotes liberados pelos camponeses e se inaugurou uma associação das famílias. A área Cachoeirinha, no dia 03 de junho, no mesmo estilo distribuiu os lotes. Enquanto fechávamos esta edição de A Nova Democracia, nossa equipe de reportagem participou das comemorações em Campina Verde, MG, e todos os detalhes serão descritos na próxima edição.

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