No dia 13 de julho, camponeses de Catende, na zona da mata pernambucana, deram mais um passo para conquistar a terra e desmascarar a farsa montada pela Contag, Fetape e governo petista em torno do chamado projeto harmonia, implantado na Usina Catende e divulgado como "modelo de cooperativismo e economia solidária".
Sede da Usina Catende
Na manhã daquele domingo, os camponeses do engenho Santa Luzia
ergueram bem alto a bandeira da Liga dos Camponeses Pobres, "quebrando
a cerca da impostura e da enganação", segundo o camponês José Maria de
Souza, morador do engenho.
A enganação da qual ele fala é o
famigerado assentamento agro-industrial governador Miguel Arraes, que o
governo petista apresenta como "modelo de reforma agrária". São 27 mil
hectares de terra e miséria, distribuídos em 70 propriedades e cinco
municípios da zona da mata sul: Catende, Água Preta, Jaqueira, Xexéu e
Palmares. No assentamento, os camponeses produzem apenas cana,
fornecida com gosto de suor e sangue para a Cooperativa de Produção
Agroindustrial Catende Harmonia, que administra a massa falida da Usina
Catende.
A usina foi fundada em 1890 e em 1929 era considerada a maior do Brasil
em produção e capacidade. Possuía 43 propriedades agrícolas e uma via
férrea de 140 quilômetros, capacidade para processar 1.500 toneladas de
cana e fabricar 4.000 litros de álcool em 22 horas. Na época da moagem
trabalhavam na fábrica cerca de 700 operários. Em 1950 já tinha
capacidade industrial para fabricação de 1 milhão de sacos de açúcar,
uma destilaria de álcool anidro (a primeira do país) e 36 mil hectares
de terra.
Já em 1993, com o fim do Instituto do Açúcar e do Álcool, a usina
declinou a ponto de demitir 2.300 trabalhadores que buscaram os
sindicatos rurais para tentar receber seus direitos trabalhistas,
ficando acordado que as rescisões seriam pagas em dinheiro e, outra
parte (60%), em posses de terra nos 48 engenhos da usina. Mas o acordo
entre a usina e os trabalhadores não foi cumprido. O governo do estado,
a Contag e a Fetape (Federação dos Trabalhadores na Agricultura),
juntamente com o Banco do Brasil, articularam a criação de uma empresa
para gerir a massa falida. Conseguiram que a justiça decretasse a
falência da usina e fundaram o Projeto Miguel Arraes, que perdoou o
débito dos usineiros e criou a Cooperativa Harmonia, para "tocar a
primeira usina de gestão coletiva do país", nas palavras dos seus
articuladores. Para respaldar a iniciativa com a presença de
trabalhadores, foi organizada uma assembléia na cidade, verdadeiro ato
público com muita gente vinda de ônibus de vários municípios do Estado,
para votar e aprovar o projeto em nome dos camponeses de Catende.
Operários fazem manutenção, na época em que Catende era autogerida
A partir daquele ano, os camponeses que já moravam desde que
nasceram nos engenhos da usina, passaram a produzir cana-de-açúcar no
chamado "sistema de economia solidária", definido assim por Severino
Ramos da Silva, conhecido como Dida:
— Esse sistema é
gerenciado por uma cambada de técnicos, um ex-juiz classista,
entidades, ONGs, advogados, funcionários do Banco do Brasil, políticos,
padres, usineiros, todo tipo de gente que se possa imaginar. Eles
diziam que seria um projeto renovador, que por cada saca de açúcar
produzida seria guardado R$1,00 para pagar os débitos trabalhistas dos
2.300 trabalhadores. Mas isso nunca foi cumprido. A situação dos
trabalhadores até hoje continua do mesmo jeito, em alguns aspectos até
pior, pois muita gente não aguentou e foi embora, quem trabalha na
usina não recebe salários em dia nem tem direitos respeitados, e os
camponeses que fornecem cana não recebem em dia, as quinzenas ficam se
acumulando e os donos da cooperativa pressionam, dizendo que quem não
aceitar pode ir embora. Tem muitos trabalhadores que dizem sentir
saudade do usineiro, porque naquela época pelo menos recebiam em dia.
Será esse o projeto renovador que eles tanto elogiam?
Dida diz ainda que:
— Onde antes havia 100 moradores, hoje tem somente 10 ou 20 famílias,
porque o descontentamento é geral. É essa a reforma agrária do Incra.
Em 2006 os dirigentes da cooperativa anunciaram que os camponeses
seriam beneficiados com a criação de um projeto de assentamento pelo
Incra, além de crédito, através do Pronaf, para construir moradias,
plantar e comprar alimentação. Os 23 imóveis desapropriados naquele
mesmo ano tem 23.931 hectares, e além de Catende, abrange também os
municípios de Água Preta, Jaqueira, Lagoa dos Gatos, Maraial e
Palmares. O Incra foi nos engenhos, prometeu dividir as terras e
prometeu emitir os títulos definitivos de posse dentro de próximos
trinta dias.
Dois anos depois, o que foi feito?
— Só promessas e enrolação. Eles dizem que isso aqui é um paraíso, que
os trabalhadores plantam agricultura de subsistência, que se produz 1
milhão de sacas de açúcar, até em agricultura orgânica, piscicultura e
floricultura eles falam. Mas a verdade é totalmente diferente, isso
tudo é mentira. O que eles promovem é a monocultura da cana e repetem o
mesmo modelo de gestão dos antigos usineiros, escravizando
trabalhadores e gerindo recursos de forma pouco transparente — responde
Dida e emenda:
— Em primeiro lugar a regra para obter os recursos prometidos exige que
a metade do empréstimo contraído pelos camponeses siga diretamente para
os cofres da cooperativa, que tem uma diretoria eleita ninguém sabe
como, nem por quem. Quem não aceitar esse sistema é afastado do
programa. Além disso, para receber o financiamento, precisa ser
plantador de cana, se não tiver cana plantada não recebe. É uma reforma
agrária que impõe a monocultura, já viu isso? Mas tem mais: os R$ 11
mil para reformar as casas dos moradores têm que ser administrados pela
co operativa, o camponês assina o empréstimo e eles administram.
Uma denúncia constante é que os financiamentos do Pronaf — Programa
Nacional de Agricultura Familiar são administrados pela cooperativa. A
reportagem soube de casos como a da merendeira, Dona Rute, moradora do
Engenho Borborema, que deve R$ 49 mil ao Banco do Brasil, sem jamais
ter contraído qualquer empréstimo, mas que teria sido utilizada como
"laranja" pelos administradores da cooperativa Harmonia. Outro
camponês, Nilson da Silva, do engenho Santana do Ó, recebeu uma carta
da Receita Federal cobrando dívida superior a R$ 2 mil de Imposto de
Renda em decorrência de empréstimo contraído também em favor da
cooperativa, do qual ele não viu um tostão. Outra trabalhadora, Joelma,
deve R$ 13 mil.
— Assinou o DAP — Declaração de Aptidão ao Pronaf — assumiu débito
junto ao banco, mas nunca recebeu um centavo, ficou tudo com a
cooperativa — informa um camponês.
Das 3.300 famílias moradoras nos 48 engenhos, cerca de 2.700 já
assinaram empréstimos do Pronaf e estão devendo ao banco, enquanto
outras 600 resistem contra os serviçais do latifúndio e da monocultura.
— Esse projeto Harmonia é uma ilusão e utopia. Sei de casos em que eles
demitem trabalhadores sem pagar nada, nenhum direito trabalhista.
Também descontam dos salários dos trabalhadores da usina e retêm
valores relativos ao IN SS, deixam de recolher o FGTS e não pagam
salários em dia. No dia do salário entregam cesta básica, e quem
reclamar ou criticar é tratado como inimigo. Mas a propaganda é outra,
as revistas e as emissoras de TV falam maravilhas da cooperativa
Harmonia, o que aliás, não podia ser diferente. É o camponês morrendo
de fome e vendo a televisão dizer que ele está no paraíso. Mas a
verdade é que aqui só se produz cana, fome e miséria. Eles falam que
plantam todo tipo de frutas e criam gado, peixes e abelhas. Mas não é
verdade. Produto orgânico em Catende é mentira, agricultura familiar é
mentira, aqui não se planta um pé de coentro, o que aparece além da
cana, vem de fora. Na verdade — conclui Pedro, — a cooperativa
Catende/Harmonia é uma fábrica de mentiras, de famintos e miseráveis.
Os trabalhadores são forçados a plantar e vender cana ao preço imposto
pela cooperativa e a uma única usina, que pertence à própria
cooperativa. E tem mais, ela não paga a cana que compra, a não ser em
prestações a perder de vista, ou através de cestas básicas — diz o
professor Pedro Joaquim da Silva, que acompanha de perto o que acontece
na sua cidade.
O camponês Antonio Isidoro do Nascimento lembra que em 2006 foi numa
caravana a Brasília e assistiu Luiz Inácio prometer muita coisa:
— Prometeu crédito e terra para os trabalhadores de Catende. Mas hoje o
que vemos é tudo ao contrário: os créditos são assinados pelos
camponeses e quem gasta tudo é a empresa que administra a usina, e
terra ninguém tem, é tudo dessa mesma empresa. Está tudo na mão deles,
até o escritório do Incra é na usina". Isidoro diz também que há
camponeses com "10 ou 15 quinzenas sem receber nada, fornece cana e não
recebe nada. Muitos só assinam um papel, porque estão devendo tudo.
Outros recebem cesta básica. E ainda existem as pressões para os
camponeses a assinarem empréstimos em favor da cooperativa. É uma
verdadeira tirania, só quem está perto sabe, já que a propaganda que
eles fazem é muito bem-feita, o lado oposto da realidade.
No engenho Santa Luiza, onde agora tremula a bandeira vermelha da LCP,
há 56 famílias morando em 780 hectares. Mas desde aquele domingo de
julho, outras tantas já se preparam para ocupar os novos lotes que
começaram a surgir. Com apoio da Liga os camponeses estão cortando a
terra, derrubando cercas e retomando as terras. Essa conquista será
comemorada na Festa da Revolução marcada para o dia 3 de agosto.
— A nossa meta é tomar os 48 engenhos e quebrar de vez a cerca desse governo e dessa indústria de mentiras — diz José Maria.