Universidades do Brasil e o Movimento Sem-Terra oferecem a jovens camponeses cursos de agronomia especializados nos grandes biomas do país.
São Paulo, 3 de março (Terramérica) - A independência de um povo
depende de sua soberania alimentar. Esta tese acompanha a história política da
humanidade e está presente em todas as doutrinas. José Martí, pai da pátria
latino-americana, dizia: "Um povo que não consegue produzir seus próprios
alimentos será sempre escravo de alguém". De fato, nenhum povo pode ser
soberano, caminhar com suas próprias pernas, desenvolver-se socialmente e
construir sua própria cultura e civilização sem produzir os alimentos
necessários para sua subsistência. Mas o conceito oposto também é
válido.
Na luta política entre os interesses econômicos e geopolíticos
das classes sociais e dos governos sempre se usou a arma dos alimentos para
criar a dependência de um povo, de um país e de seu governo. Nos últimos 50
anos, caracterizados pela hegemonia do capital norte-americano, Washington
utilizou sistematicamente a produção de alimentos como instrumento de dominação.
Com esse fim, primeiro oferece alimentos, seja mediante doação ou vendas a longo
prazo. Deste modo começa a modificar os hábitos alimentares e a gerar
dependência de dezenas de povos da Ásia, África e América Latina. É o antigo
sistema de dar o peixe para evitar que os povos pesquem.
Sucessivamente,
o capitalismo agroindustrial instrumenta a política de controle das técnicas de
produção, levando os agricultores a adotarem seus métodos de monocultura
homogênea em grande escala e o uso intensivo da mecanização e de venenos, também
chamados agrotóxicos. Quase todo o mundo ocidental ficou à mercê deste tipo de
exploração agrícola, que simpaticamente foi denominado de "revolução verde". Na
realidade, é uma contra-revolução que afundou na dependência de milhões de
agricultores, que se viram obrigados a comprar os insumos agroindustriais
fabricados por empresas multinacionais norte-americanas e
européias.
Trata-se de técnicas depredadoras. Não respeitam a natureza.
Produzem alimentos contaminados com altos índices tóxicos que inoculam doenças
nos consumidores. Além disso, como foi comprovado, causam alterações climáticas
e aquecimento global. Em numerosos países, como o Brasil, a exploração
agropecuária é a principal responsável, junto com o transporte automotivo, pela
contaminação que aumenta o aquecimento ambiental. Muitos países
latino-americanos, e a Venezuela em particular, são vítimas dessa
política.
Como os venezuelanos tinham abundantes recursos oriundos do
petróleo, aceitaram essa dependência agroindustrial. Hoje, passado meio século
de domínio norte-americano, o resultado está à vista: apesar de seu rico
potencial agrário, a Venezuela importa 85% de todos os alimentos que consome.
Consciente desta situação, o governo de Hugo Chávez está impulsionando, em
associação com a Via Camponesa Internacional, diversos acordos no sentido de
superar a dependência e cimentar um caminho para a soberania alimentar. O
primeiro passo foi reorganizar a Faculdade de Agronomia sobre novos parâmetros
para a produção de alimentos saudáveis, com técnicas agroecológicas que excluem
o emprego de agroquímicos.
Depois de um ano de experimentação com a
participação de mais de 200 jovens camponeses de todo o continente, Chávez
assinou o decreto que cria o Instituto Agroecológico Latino-Americano Paulo
Freire, que funcionará nas dependências de um latifúndio expropriado no Estado
de Barinas. Essa escola revolucionária terá como alunos filhos de camponeses de
todo o continente, que se converterão em agrônomos, com uma formação inspirada
na soberania alimentar. Além disso, está sendo organizada uma rede de
intercâmbio e associações com outras escolas de agronomia de outros países
latino-americanos, com experiências virtuosas no México, Nicarágua, Equador,
Bolívia, Paraguai e Chile.
E aqui, no Brasil, o Movimento dos
Trabalhadores Rurais Sem-Terra (MST), integrante da Via Camponesa, desenvolve
convênios com universidades federais que coincidem com nossos enfoques, com os
quais criamos quatro cursos especiais de agronomia para filhos de camponeses que
receberam terras na reforma agrária, um para cada um dos principais biomas
brasileiros, Amazônia, Cerrado, Mata Atlântica e Caatinga.
Além disso,
estamos proporcionando vários cursos de agroecologia de nível médio e um
superior junto com a Universidade Federal do Paraná, que funciona há dois anos e
está aberto a outros países do Cone Sul. No espírito da integração da América
Latina que orienta a Alternativa Bolivariana para as Américas (Alba) - surgida
em contraposição à Alca, que propunha uma área de livre comércio das Américas
sob a hegemonia de Washington -, estamos assentando as bases cientificas para a
busca da soberania alimentar de nossos povos.
Sabemos que somente a
aliança entre movimentos camponeses, ambientalistas e governos populares poderá
garantir a produção de todos os alimentos que cada povo necessita, o que implica
que sejam saudáveis e obtidos de forma sustentável. É a antítese de um
capitalismo agroindustrial, que persegue apenas o lucro a qualquer preço, usando
todo tipo de venenos em extensas monoculturas que geram dependência e danos
socioambientais. A luta será dura e longa, mas temos a certeza de que os povos
compreenderão o que está em jogo e que a natureza se vingará dos que pretendem
explorá-la por mero interesse econômico.
* O autor é membro do
Movimento de Trabalhadores Rurais Sem-Terra (MST) e da Via Camponesa
Internacional. Direitos exclusivos IPS.
Crédito de imagem: Fabrício
Vanden Broeck
Artigo produzido para o Terramérica, projeto de
comunicação dos Programas das Nações Unidas para o Meio Ambiente (Pnuma) e para
o Desenvolvimento (Pnud), realizado pela Inter Press Service (IPS) e distribuído
pela Agência Envolverde.
(Envolverde/Terramérica)