Constatações da equipe de advogados do NAP sobre a violência no Sul do Pará

Este relatório destina-se a dar publicidade às atividades da missão de investigação das violações aos direitos humanos no Sul do Pará, promovida em 6 e 7 de dezembro de 2007, em conjunto pelo Núcleo dos Advogados do Povo - NAP-Brasil, o Centro Brasileiro de Solidariedade aos Povos e outras organizações sociais que denunciam a violência desatada com a "Operação Paz no Campo", que levou, entre outras medidas, à ação policial no Complexo Forkilha, em Santa Maria das Barreiras-PA, provocando a prisão de centenas de trabalhadores e agressões e torturas sobre outros mais.

 

O presente relatório complementa e endossa o Relatório Preliminar, datado de 30/11/2007, o qual segue como anexo.

A Missão contou com uma equipe de advogados de Goiás, Minas Gerais e do Pará. Percorreu os municípios de Marabá, Redenção, e Conceição do Araguaia. Analisou processos judiciais, encontrou-se com autoridades públicas, os trabalhadores presos e demais vítimas da ação policial. Documentou as constatações com amplo material audiovisual. Pôde constatar e confirmar o que já havia sido denunciado através do relatório preliminar. Teve condições de constatar informações mais concretas, obtendo um panorama real do ocorrido.

A busca do material jurídico

Destacou-se a dificuldade da equipe para tomar conhecimento da real situação dos camponeses presos, ou seja: quem estava preso e por quê; se havia mandados de prisão preventiva, onde estavam os autos de prisão em flagrante; onde se encontravam as medidas para a soltura dos trabalhadores presos e a quem elas contemplavam; se já havia algum posicionamento do Ministério Público, bem como do Judiciário local, a respeito.

Percebemos que a situação estava totalmente “embolada” (tamanha a arbitrariedade e ilegalidade daquela operação, conforme será mais esclarecido à frente), tivemos de “desembaraçar novelos” para esclarecer qual é a situação jurídica dos presos, e continuamos tendo de fazê-lo.

Contamos com a ajuda inestimável de vários membros da Defensoria Pública na região, os quais deram importante contribuição para esclarecer a situação jurídica e para o sucesso da Missão.

Parte da explicação pelo fato de haverem vários processos dispersos relacionados à Operação Paz no Campo está no fracasso que a própria operação representou.

A Operação foi planejada em um Inquérito Policial iniciado na Delegacia de Polícia de Redenção, logo avocado pelo Delegado Alberone Afonso Miranda Lobato, da Delegacia de Conflitos Agrários (DECA) de Marabá. Quando se deu essa mudança para a DECA de Marabá, percebe-se que já se preparava uma ação policial de grande escala.

O Inquérito foi então submetido ao Judiciário da Comarca de Conceição do Araguaia (1ª Vara), com representação pela prisão preventiva de várias pessoas (todas com identificação incompleta, em vários casos apenas apelidos) supostamente envolvidas com ações de bandos armados e grilagem de terras. O juiz então expediu mandados de prisão preventiva e mandados de busca e apreensão de supostos instrumentos de crimes.

Com tais mandados judiciais, o corpo repressivo (Polícias Militar, Civil e Federal, Exército, etc.) partiu para a Fazenda Forkilha.

Porém, para estarrecimento geral, em vez de cumprir os mandados de prisão preventiva, a polícia prendeu mais de 200 camponeses, em todo o contexto de agressões, perseguições e torturas que será tratado mais à frente. Atribuíram, a uma parte desses camponeses, supostos portes ilegais de armas, e os manteve presos, iniciando processos chamados autos de prisão em flagrante. São estes os que estão presos até a presente data.

Alguns mandados de prisão preventiva foram cumpridos. Algumas dessas pessoas não estavam sequer na Fazenda Forkilha, foram “caçadas” em suas casas, na cidade. Desses presos por mandados de prisão preventiva no dia 19 de novembro, todos já foram soltos.

Portanto, enquanto algumas pessoas presas por mandados de prisão preventiva foram soltos, os que foram presos aleatoriamente em prisões em flagrante, ainda estão presos. Absurda contradição.

O primeiro pedido de relaxamento das prisões em flagrante foi ajuizado pela Defensoria Pública no dia 21/11/2007, abarcando a maioria dos presos, com exceção dos 3 camponeses que ficaram presos na Delegacia de Conceição do Araguaia. Esse pedido está até hoje sem apreciação nas mãos do juiz Dr. Deomar, da 1ª Vara de Conceição do Araguaia. O promotor local deu seu parecer desfavorável à liberdade dos presos.

No dia 07/12/2007, a Missão constatou presos por flagrante em três locais: Delegacia de Polícia de Redenção (15 pessoas), Presídio de Redenção (4 pessoas), Delegacia de Polícia de Conceição do Araguaia (3 pessoas). Fomos informados de que haveria um preso em Santa Maria das Barreiras, porém não podemos verificar in loco a informação.

Quanto aos 3 de Conceição do Araguaia, a Defensoria entrou com pedido de liberdade para dois deles, e o terceiro já havia contratado advogado do local e também entrado com seu pedido de liberdade.
 
Cinco pessoas consideradas suspeitas no curso da operação foram denunciadas pelo promotor  Daniel Henrique Queiroz de Azevedo, de Conceição do Araguaia, o que significa que deu-se início a processo criminal contra elas. São acusadas dos crimes de cárcere privado qualificado, extorsão majorada, esbulho possessório, estelionato e formação de quadrilha.

Os demais com mandados de prisão preventiva são abarcados por Habeas Corpus que o NAP deu entrada, para que sejam revogados os mandados de prisão preventiva.

O real sentido da Operação Paz no Campo

Neste passo, é importante frisar a completa ilegalidade das prisões em flagrante. A denominada operação “Paz no Campo” foi anunciada com objetivo de desarmamento de grupos armados na região. Entretanto, ao adentrar no complexo da Fazenda Forkilha, a ação repressiva, de maneira completamente truculenta, violenta, arbitrária e ilegal, passou a prender, torturar e interrogar os camponeses que se encontravam acampados, tentando criar uma situação que não existia. Ou seja, a polícia buscou criminalizar a luta pela terra, numa tentativa de enfraquecer e desencorajar aqueles que se dispõem a lutar por aquilo que é justo, tratando os trabalhadores rurais como bandos armados e criminosos, prendendo vários deles de maneira aleatória, mas sob o manto das acusações de porte ilegal de arma e formação de quadrilha. O interessante é que, se os trabalhadores rurais ali presentes fossem realmente bandidos, como teriam feito seu cadastramento junto ao INCRA, com o fornecimento de seus dados pessoais? O INCRA foi à Fazenda Forkilha tempos antes e cadastrou mais de 400 famílias para o programa de reforma agrária. Há, nisso tudo, no mínimo, falta de lógica e coerência. Também só reforça e desmascara o real objetivo da denominada operação “Paz no Campo”, endossado pela Revista Veja, jornal Folha de São Paulo, entre outros grupos de comunicação que de forma anti-ética, irresponsável, preconceituosa e premeditada ataca os movimentos sociais de luta  pela terra.

Nisto reside, essencialmente, a ilegalidade das prisões em flagrante efetuadas pela denominada operação “Paz no Campo”. Em primeiro lugar, não há indícios de nexo entre a conduta dos trabalhadores presos e os fatos narrados pelas autoridades policiais. Também não foi descrita a conduta de cada preso; as acusações são genéricas, limitando-se à afirmação de que os trabalhadores se encontravam no local no momento da chegada dos policiais. Fato é que a ação policial prendeu a todos indiscriminadamente, sem que houvesse o mínimo de investigação e averiguação dos tipos penais a eles imputados. Mesmo diante de tantas ilegalidades, é importante destacar que o parecer do Ministério Público não levou em consideração nenhum desses elementos.

A Missão foi informada pela população local que os Sindicatos Rurais de Redenção puseram em prática proposta do conhecido latifundiário Giovani Queiroz, de formação de um caixa especial em que cada associado deve pagar mensalmente R$ 2,00 (dois reais) por hectare por mês para financiar os órgãos de imprensa. Ressalte-se que os latifúndios da região normalmente não possuem menos de 15 mil hectares.

Para contextualizar, é bom esclarecer que a polícia fez uma apreensão de armas pesadas, poucos dias antes do dia 19 de novembro, na Fazenda “Estrela de Maceió”, armas estas que pertenciam às milícias formadas pelo latifúndio, o que é comum na região. O fato grave disso tudo é que a imprensa tentou apresentar tudo (a apreensão de armas pesadas na Estrela de Maceió e as incursões criminosas na Fazenda Forkilha) como um fato só. Através de manipulação de imagens (fotos de eventos diferentes na mesma página) e de texto, apresentou os camponeses como proprietários daquelas armas, visando tão-somente reforçar a acusação de que seriam bandidos.

A Usurpação da competência da Vara Agrária de Redenção

Fato gravíssimo a ser destacado se refere à usurpação da competência da Vara Agrária de Redenção. Isso porque a ação repressiva não se destinava a cumprir mandado de reintegração de posse, mas mandados de prisão preventiva e busca e apreensão expedidos pelo juiz de Conceição do Araguaia. Até porquê, o juiz de Conceição do Araguaia é incompetente para expedição de mandados de reintegração de posse. Entretanto, o que ocorreu, na prática, foi uma reintegração de posse, haja vista que a polícia, em sua ação violenta e ilegal, acabou por retirar violentamente todos os trabalhadores do local do acampamento.

Conforme a Código de Organização Judiciária do Estado do Pará, os conflitos agrários devem ser apreciados por juízes de Varas Agrárias espalhadas pelo Estado, sendo que na região da Fazenda Forkilha a Vara competente é a Vara Agrária de Redenção.

Em 2002, foi promulgada a Lei Estadual n. 6.437/2002, que criou a Ouvidoria Agrária do Poder Judiciário no Estado do Pará e deu outras providências, no sentido da abordagem judicial dos conflitos agrários.

Assim, a ação de reintegração de posse deve ser processada em vara especial, sob a referência do reconhecimento do conflito agrário coletivo como conflito social, e sob os princípios de Direito Agrário de combate ao trabalho escravo, à grilagem de terras, ao mau uso da terra, de modo que, para o proprietário ter direito à reintegração de posse, deve provar que usa a terra que exerce a função social da propriedade nos aspectos econômico, social e ambiental.

Com todos esses requisitos, uma vez expedido o mandado liminar de reintegração de posse, ainda deve ser precedido de vários procedimentos processuais e de mediação de conflitos

A delegação do NAP buscou uma audiência junto ao juiz da Vara de Conflitos Agrários para discutir a usurpação de sua competência no caso em questão. Infelizmente isso não foi possível, uma vez que o juiz, segundo informado pelos servidores daquela Vara, encontrava-se de licença médica. Mesmo assim, a delegação teve um encontro com a Diretora de Secretaria e oficiais de justiça daquela vara, para que fosse transmitida ao juiz a ilegalidade da ação policial, a usurpação de sua competência, os objetivos e tarefas do Núcleo dos Advogados do Povo na defesa de camponeses pobres.

Até mesmo porque a polícia, conforme relatado pelas vítimas, em outro ato ilegal, tomou dos trabalhadores dinheiro e diversos bens pessoais, havendo relatos inclusive de furtos e queimas de documentos. Oficiais de justiça da Vara Agrária levaram ao conhecimento da Missão que já estavam sendo providenciadas as medidas cabíveis para a retirada da Fazenda e entrega aos trabalhadores dos seus alimentos, posto que nem isso lhes foi permitido retirar quando da ação policial. Para estarrecimento geral, informaram ainda que haviam ido na Fazenda no dia 05/12/2007 “cumprir” mandado de reintegração de posse, ou seja, vários dias após a ação policial, quando as ilegalidades já estavam consumadas.

Relatos das vítimas

A Missão participou de reunião no Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Redenção, onde se encontram boa parte das vítimas da ação repressiva, em situação precária de subsistência, sem falar da questão psicológica, haja vista o trauma pela situação que passaram. Ali, pôde se perceber o significado do papel dos advogados do povo, informando a situação jurídica e dando perspectivas de luta por meio de esclarecimento de seus direitos. Foi possível ainda colher os depoimentos das vítimas, que confirmaram os atos de tortura e barbárie cometidos pela polícia. Esses depoimentos foram gravados e, além disso, foram captadas imagens das marcas da agressão policial, que ainda se mostravam presentes no corpo de alguns trabalhadores.

A Missão  buscou colher a relação dos bens usurpados pelas tropas de repressão, para que sejam tomadas as medidas cabíveis junto às autoridades competentes para indenização dos bens perdidos. Vale informar, também, que a polícia recusa-se a registrar Boletim de Ocorrência a respeito, o que tem fácil explicação: ninguém faz prova contra si mesmo.

A Missão também visitou todos os trabalhadores presos em flagrante acima relatados, tanto em Conceição do Araguaia quanto em Redenção. Todos em situação precária, o que não causa nenhuma surpresa em se tratando da situação carcerária do Brasil. De qualquer maneira, foi possível conversar com esses camponeses, informando-os que estavam sendo tomadas todas as medidas cabíveis para que fossem colocados em liberdade o mais rápido possível. Em todos os presos pudemos perceber uma postura de firmeza e altivez, de não ceder às humilhações que vêm sofrendo desde o dia 19 de novembro. E também indignados pelo fato de serem trabalhadores rurais tratados como bandidos.

Conclusão

A visita aos presos e toda a Missão do NAP em geral contribuiu para aumentar nossa indignação e nosso desejo de denunciar a situação e lutar, no campo jurídico, com todas as medidas possíveis.

O latifúndio, por sua vez, não perdeu a oportunidade de mandar fazer “out-doors” (afixados na saída da cidade de Redenção), em nome da população, “agradecendo” a governadora Ana Júlia pelo “sucesso” da Operação “Paz no Campo”.        

Trata-se, portanto, de uma ação conjunta: do governo, do latifúndio, da imprensa, tudo visando o enfraquecimento da luta através da sua criminalização. A Missão do NAP está tendo continuidade, através de procedimentos visando a libertação dos presos, a defesa daqueles que seguirão sendo acusados, ações demandando a responsabilidade do Estado por todas as barbaridades cometidas e que prosseguem.

Para prosseguir em seus objetivos, o NAP conta com o apoio de importantes entidades de defesa dos direitos humanos, bem como dos próprios trabalhadores organizados que seguem sua luta. Espera, com a divulgação do presente relatório, contribuir para aumentar as denúncias dos fatos relatados, uma vez que grande parte da imprensa ainda nos dias de hoje é censurada pelo poder econômico, omitindo fatos tão graves.

 

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