A iniciativa “abre um primeiro passo para resolver a crise de acesso, contaminação, concentração e superexploração da água no Chile, e a degradação das bacias”, segundo um grupo de organizações ambientalistas e de trabalhadores de empresas sanitárias privadas após o anúncio governamental. O projeto venceu o primeiro obstáculo no dia 13 deste mês, ao ser aprovado pela Comissão de Agricultura da Câmara de Deputados. O texto legal reconhece que a água doce, pouca no norte e mais abundante no sul do país, se transformou em um “bem escasso” e que sua disponibilidade é “um assunto de segurança nacional”, muito mais do que os hidrocarbonos, que podem ser importados de diferentes países.
Em todo o mundo, este recurso vital é ameaçado pelos efeitos do aquecimento global, que causa o derretimento das geleiras e desastres naturais, como secas. O Chile tem uma das principais reservas mundiais de água doce em forma de geleiras. Segundo a última contagem da Direção Geral de Águas (governamental), estas somam mais de 3.500, ocupando cerca de 20 mil quilômetros quadrados. A reforma constitucional busca dar às autoridades as ferramentas necessárias para que possam, “no caso de ser imprescindível”, limitar ou restringir o exercício dos direitos de titulares privados e reservar a água superficial ou subterrânea para garantir sua disponibilidade principalmente para consumo humano.
Desta forma o país seguiria o caminho de nações como Equador e Uruguai, que redefiniram constitucionalmente a água como bem público em 2008 e 2004, respectivamente. Diversos sindicatos empresariais, como a Sociedade Nacional de Agricultura (SNA) e o Conselho de Mineração, expressaram de imediato sua preocupação pela iniciativa. Para a SNA, o projeto significará expropriações sem indenizações para os agricultores e investimentos. Seu presidente, Luis Mayor, disse que no Chile não há escassez de água, mas apenas problemas de distribuição que podem ser resolvidos com adequações menores, por isso a oposição à reforma.
Para a diretora do não governamental Programa Chile Sustentável, Sara Larraín, os temores dos agricultores são injustificados, já que o projeto estabelece claramente que será conservado “em sua integridade o domínio que os titulares atuais têm sobre seus respectivos direitos reais de aproveitamento de águas”. Depois de aprovada a iniciativa, deve ser elaborada uma lei para regulamentar “o procedimento de constituição, reconhecimento, exercício e extinção dos direitos que sobre as águas forem reconhecidos aos particulares”.
“Nossa expectativa é que, antes do final deste governo, em 11 de março, a mudança constitucional seja realizada”, disse Larraín ao ser consultada pelo Terramérica, considerando que as autoridades dêem extrema urgência ao tema, o que significa que o projeto deve ser conhecido e analisado pelo Legislativo no prazo de dez dias.
Em março, o Programa Chile Sustentável publicará um livro sobre os conflitos pela água no país. Até agora, esta organização não governamental identificou centenas de disputas entre comunidades e empresas de mineração, hidrelétricas, florestais e agroindustriais. Hoje, as águas doces são reconhecidas como bens nacionais de uso público apenas no plano legal, não constitucional. Por outro lado, a atual Carta Magna outorga ao Estado controle sobre os recursos minerais, por exemplo.
Em 1981, “com a entrada em vigência do novo Código de Águas, houve um descompasso entre o bem comum e os interesses de uns poucos particulares, descompasso que precisa ser corrigido”, diz o governo no texto da iniciativa legal. “Essa normativa deu origem a uma concentração desproporcional de direitos de aproveitamento para fins hidrelétricos, concentrando, segundo o decidido pelo tribunal de Defesa de Livre Competição, 90% desses bens em apenas três empresas”, entre elas a multinacional Endesa, reconhece o Poder Executivo.
“Sempre consideramos que a água é um bem comum, que deveria estar nas mãos de todos os chilenos”, disse ao Terramérica Ana María Miranda, secretária-geral da Federação Nacional de Trabalhadores em Obras Sanitárias, que dizem viver uma “contradição” por participarem desse pujante setor privatizado. Por um lado, comemoram o fato de a cobertura de água potável e de esgoto em áreas urbanas chegar a 99,8% e 95,3% em 2008, mas, por outro, questionam se isso não foi alcançado com a cobrança pelo uso e de grandes lucros das empresas.
“Quando vamos a outros países expor nossa realidade, nos veem como privatizadores, mas nossa luta hoje é para recuperar os recursos hídricos (como bem público) e posteriormente devolver as empresas ao Estado, para que os usuários paguem o preço justo e o lucro seja reinvestido no Chile. No melhor dos casos será um processo longo”, afirmou Miranda.
Teresa Sarmiento, presidente da Associação de Comitês de Água Potável Rural da Região Metropolitana de Santiago, disse ao Terramérica que “a primeira prioridade do país deve ser o consumo humano”. A entidade agrupa diversas cooperativas que obtêm água por meio de convênios com o Ministério de Obras Públicas. Sarmiento saúda a reforma constitucional porque solucionaria uma série de problemas administrativos, originados no Código de Águas de 1981, que impedem a melhoria e ampliação destes sistemas, assegura Sarmiento.
Para Bernardo Zentilli, presidente do não governamental Comitê Nacional Pró-Defesa da Flora e da Fauna, é necessário maior compromisso da comunidade para impulsionar estas e outras iniciativas que buscam proteger o meio ambiente e melhorar a qualidade de vida das pessoas. “A responsabilidade está em cada um de nós, como cidadãos. A maioria dos chilenos não reconhece seus direitos nem mesmo em nível municipal, e menos ainda em níveis regional ou nacional”, disse ao Terramérica.
* A autora é correspondente da IPS.