Santiago, 14 de setembro (Terramérica) - A água deve ser declarada “patrimônio comum” da humanidade, e a mineração e a agroindústria de exportação devem “retroceder”, disse ao Terramérica a canadense Maude Barlow, que há 20 anos pesquisa e denuncia a degradação e a privatização dos recursos hídricos. Barlow preside o Council of Canadians, a maior organização civil de seu país, e em 2005 recebeu o Right Livelihood Award, o prêmio Nobel alternativo. Com 16 livros escritos, hoje é assessora do presidente da Assembléia Geral da Organização das Nações Unidas (ONU), o nicaragüense Miguel d’Escoto.
O
Terramérica conversou com ela no Chile, onde apresentou sua última obra, “O
convênio azul: a crise global da água e a batalha futura pelo direito à
água”.
TERRAMÉRICA: Qual a situação dos direitos da água
no mundo?
MAUDE BARLOW: Esta é a questão mais
contenciosa na discussão mundial sobre a água: se será mantida como um
patrimônio da humanidade e um bem comum ou será convertida em uma mercadoria à
qual se terá acesso por meio das regras do mercado. Este debate ocorre porque o
mundo está ficando sem água. Caminhamos para um tempo onde dois terços da
humanidade não terão acesso a ela. Há empresas, investidores e alguns governos
que concordaram que o mercado decidirá sobre a disponibilidade de água. Isto
apresenta três grandes problemas. O primeiro é que a água iria apenas para quem
pudesse comprá-la, não necessariamente para quem necessitasse dela. O segundo é
que, obviamente, não haveria nenhuma proteção da água para a reprodução da
natureza. E o terceiro é que se criaria um desestímulo para proteger as fontes
hídricas, porque, quanto mais escassa for a água limpa, mais alto será seu
preço.
TERRAMÉRICA: Qual o grau de privatização da água
atualmente?
MB: Ainda é muito pequeno, entre 10% e 15%
dos sistemas mundiais de água potável e saneamento. Inclusive, existe um
retrocesso porque muitos municípios estão recuperando sistemas públicos depois
de tê-los privatizado. Nosso exemplo favorito é Paris, que esteve por quase dez
anos sob um sistema privado e agora recuperou a água para a gestão pública. A
outra forma de privatização é o engarrafamento. Essa é uma grande batalha em
muitas comunidades do mundo. A última tendência é a privatização por meio de
direitos: a água é considerada um direito de propriedade privada, vendida e
comprada inclusive por intermediários (que cobram comissões no processo de
comercialização). Também estão sendo criados bancos de água. O principal
problema é que é gerada mais quantidade de direitos do que a água que existe
fisicamente. Porém, felizmente, há pouquíssimos países que provaram este
sistema. O Chile é um deles, e o mais extremista. Outros países que estão apenas
começando são Espanha, Austrália e parte dos Estados Unidos e Canadá. Outro dos
últimos extremos nesta tendência de mercado é que países ricos que não possuem
muita água, como Japão, Arábia Saudita e alguns europeus, estão comprando terras
em nações pobres apenas para ter acesso aos seus recursos hídricos. Começaram na
África e agora se movem em direção à América
Latina.
TERRAMÉRICA: Como vê esta região na área
hídrica?
MB: Provavelmente possui a maior
disponibilidade de água por pessoa, porque tem muitos recursos hídricos. Porém,
na prática, conta com uma das menores disponibilidades. E há três razões para
isso: contaminação maciça de águas superficiais e também de algumas
subterrâneas, desigualdade no acesso e privatização.
TERRAMÉRICA:
Como assessora do presidente da Assembléia Geral da ONU, que
regulamentação mundial propõe?
MB: Que a Assembléia
Geral adote um programa e uma resolução reconhecendo a crise mundial da água. O
plano deveria basear-se em três princípios. O primeiro é a proteção das fontes
de água doce e sua restauração em todos os países. O segundo é que a água tem de
ser considerada um patrimônio comum. Deve-se garantir que todas as pessoas
tenham acesso equitativo a ela. Isto implica em priorizar seu uso para a
produção alimentar local, longe da monocultura para exportação. O terceiro
princípio é estabelecer o acesso à água como direito humano. Seria um erro que
qualquer um pudesse apropriar-se da água, quando há muita gente morrendo por sua
falta. Nós reclamamos que os países mudem suas constituições, como o Uruguai fez
há três anos, para adotar esta concepção que dá ao Estado a responsabilidade de
manter a água limpa e garantir o acesso a ela.
TERRAMÉRICA:
O que propõe para atividades industriais intensivas com relação ao uso
da água, como a mineração?
MB: A mineração precisa
retroceder. As companhias de mineração não podem continuar contaminando a água.
Há empresas que praticamente estão governando alguns países. E isso tem de mudar
porque os governos são para o povo e o povo deve formular as políticas. O uso
comercial da água, incluída na mineração, vem depois das prioridades anteriores.
Deve-se solicitar uma autorização e pagar por ela, e se destruírem as fontes ou
contaminarem a água, as permissões devem ser canceladas. Existem dois setores
que vão sofrer: as mineradoras (com muita tristeza tenho que dizer que grande
parte das companhias de mineração no Chile é canadense) e a grande agroindústria
de exportação.
TERRAMÉRICA: Que importância dá à
mobilização da sociedade civil?
MB: A mobilização é
tudo. As mudanças começam na base. Eu vi as pessoas mais pobres do mundo ficarem
de pé para lutar pela água, e isto porque sem água morremos. Lembro de um homem
idoso em Cochabamba, na Bolívia, que estava em um enfrentamento e eu lhe
perguntei por que lutava. Ele respondeu que preferia morrer por uma bala do que
seus filhos morrerem por causa da água suja.
* A autora é
correspondente da IPS.
Crédito da imagem: Gentileza
da entrevistada
Legenda: Maude Barlow, ativista
ambiental.