A interdependência entre vastas florestas e clima não é facilmente percebida, mas ela existe e vem sendo comprovada pela Ciência. Agora essa interdependência precisa ser considerada na formulação de uma política de sustentabilidade para o país. Se assim não for feito, o colapso socioeconômico será uma consequência inevitável. A possibilidade de desenvolvimento brasileiro nas próximas décadas, portanto, depende da opção política “interdependência ou morte”. Não optar pela consideração da importância da floresta como nó central da teia da vida equivale a optar pela morte, não apenas no sentido metafórico. Vamos examinar porque.
Há muito tempo é sabido que a evaporação é um fenômeno muito mais intenso sobre os oceanos do que sobre os continentes. Da mesma forma, há mais formação de nuvens sobre os oceanos do que sobre os continentes. Descobertas recentes mostram que florestas extensas, por gerar áreas de baixa pressão atmosférica, têm a capacidade de atrair umidade acumulada sobre os oceanos, fazendo-as mover-se para o interior dos continentes. Por isso, a primeira interdependência da floresta amazônica com o clima é que ela, a floresta, é responsável por atrair grande quantidade de umidade para o continente sul-americano.
Outra interdependência é a formação de nuvens pela própria floresta amazônica, explicando sua importância na regulação climática. A esse respeito distinguem-se duas funções da floresta. Uma delas é a liberação de compostos orgânicos voláteis (VOCx) que têm a propriedade de aglutinar as moléculas de água no ar, formando gotículas no interior das nuvens e tornando-as mais densas. Isso favorece a precipitação sobre a Amazônia. A outra função da floresta é a própria formação das nuvens. Estudos efetuados pelo LBA (Experimento de Grande Escala da Biosfera-Atmosfera na Amazônia, projeto internacional de pesquisa liderado pelo Brasil) mostraram que em áreas onde ocorreram desmatamento e queimadas as nuvens têm conteúdo muito menor de vapor de água do que as nuvens formadas sobre florestas. Verificou-se, assim, que a floresta amazônica funciona como uma bomba – uma bomba biótica de umidade atmosférica – que leva água do solo para a atmosfera, do oceano em direção a oeste, até a cordilheira dos Andes. No interior dos continentes, em ambientes distantes da costa, a tendência é que o clima apresente alternância de estação chuvosa e estação seca, e a floresta tem um papel importante na interiorização da umidade que promove a estação chuvosa. Em síntese, a segunda interdependência entre a floresta amazônica e o clima é que a chuva sobre a floresta amazônica é resultado da existência da própria floresta.
A seguir examinaremos a interdependência entre a Amazônia e a distribuição de chuvas no país.
As nuvens formadas na Amazônia podem ser deslocadas por longas distâncias, em função das correntes atmosféricas, provocando abundantes precipitações sobre o Centro-oeste, o Sudeste e o Sul, viabilizando a produção agrícola em extensas áreas nessas regiões do Brasil. Portanto, a alta disponibilidade hídrica no Brasil, em grande parte, é fruto das nuvens produzidas e transportadas a partir da floresta amazônica. A umidade trazida pelas massas de ar tropical continental (oriundas da Amazônia) viabiliza, neste caso, o desenvolvimento social e econômico nas regiões Centro-oeste, Sudeste e Sul. Em outras palavras, a produção de energia elétrica, a produção industrial e o grande contingente de população urbana, todos altamente dependentes de água, são, em última análise, dependentes da floresta amazônica e também da floresta atlântica. Ou seja, tal é a interdependência entre a floresta e o clima nas regiões brasileiras, que para propiciar nosso desenvolvimento é imprescindível garantir a operação, no presente e no futuro, da bomba biótica de umidade atmosférica.
As chuvas e a umidade no Sul e Sudeste têm origem na massa de ar tropical continental (amazônica) e também na massa de ar tropical atlântica (oriundas do oceano atlântico). Próximo à costa atlântica do Sul e do Sudeste existem barreiras naturais - Serra do Mar e Serra Geral - para o deslocamento das massas de ar vindas do oceano no sentido oeste. Por isso, apenas parte da umidade é deslocada continente à dentro, graças à existência das florestas do bioma Mata Atlântica, por meio da bomba biótica de umidade atmosférica. O oeste dessas regiões, bem como a Argentina e o Paraguai, são mais dependentes do macroclima (das massas de ar úmido vindas da Amazônia), enquanto a distribuição temporal da precipitação dela decorrente (mesoclima) depende das florestas regionais, ou seja, da Mata Atlântica. Segundo estudos recentes para São Paulo, somente fragmentos de florestas com área superior a 1000 km2 são capazes de influenciar a distribuição temporal da precipitação, ou seja, a ocorrência de chuvas é interdependente do tamanho das áreas florestais.
Como na região central e oeste dos estados do Sul e do Sudeste do Brasil as extensas e densas florestas foram eliminadas em praticamente todo o território, remanescendo fragmentos isolados com extensão, em geral, inferior a 10 hectares, o efeito da bomba biótica de umidade atmosférica está enfraquecido, tanto para distribuir as chuvas temporalmente quanto para atrair a umidade vinda do oceano em direção ao interior do continente. Essa alteração potencializa a ocorrência de eventos hídricos extremos - longas estiagens e precipitações muito intensas - mesmo que a quantidade total de chuvas permaneça semelhante a antes do desmatamento, bem como favorece os vendavais, pela ausência de rugosidade da superfície do solo conferida pelas florestas.
O efeito desse fenômeno pode ser sentido através das estiagens prolongadas que vem se sucedendo no Rio Grande do Sul e em Santa Catarina, como por exemplo de 2003 a 2006 e agora em 2009. Os eventos dos últimos meses em Santa Catarina são emblemáticos das mudanças em curso: no desastre de novembro de 2008 catorze municípios decretaram estado de calamidade pública em consequência das chuvas e sessenta e três decretaram situação de emergência. Cinco meses depois, em maio de 2009, no Oeste de Santa Catarina, 108 municípios decretaram situação de emergência devido à falta de água, causada pela ausência prolongada de chuvas. Considerando a influência da floresta sobre a formação e a distribuição de nuvens, a ausência de extensos territórios florestados na região da Mata Atlântica e, com ela, a ineficiência da bomba biótica de umidade atmosférica, tem-se aí uma explicação convincente da má distribuição de chuvas na região. Eis, portanto, outra interdependência cujas consequências apontam no sentido do colapso.
Os efeitos dos eventos meteorológicos extremos sobre as populações humanas constituem problema distinto. Eles, os efeitos, tornar-se-ão mais graves na medida em que existe maior vulnerabilidade associada ao uso e à ocupação do solo, tanto nas áreas rurais quanto urbanas. E nesse caso não existe interdependência: os eventos climáticos não influenciam a vulnerabilidade. Ela é fruto de formas e políticas locais equivocadas de gestão rural e urbana.
O antídoto ou a reversão do quadro das mudanças climáticas regionais é dependente de uma política de sustentabilidade consistente, que considere o conhecimento científico sobre as interdependências entre floresta e clima, procurando evitar o colapso. Além de promover a conservação da floresta amazônica e a aplicação séria do Código Florestal brasileiro, é necessário e urgente criar e ampliar unidades de conservação, iguais ou superiores a 1000 km2, recuperando, inclusive, florestas onde já não existem. Precisamos destas áreas naturais protegidas, para reduzir a ocorrência de eventos extremos e para garantir água para as gerações atuais e futuras da sociedade brasileira. É disso que depende a produção agrícola, a produção energética, a produção industrial e o desenvolvimento urbano. Tudo que precisamos é o contrário do que defendem os ruralistas, cujos interesses foram astuciosamente expressos no código ambiental de Santa Catarina, que ignora tanto a interdependência entre floresta e clima e o consequente aumento de risco de eventos extremos e a disponibilidade ou não de água, quanto a necessária redução da vulnerabilidade dos assentamentos humanos.
Clamamos a favor da opção pela interdependência, ao contrário da opção pela morte!
* Beate Frank, doutora em Engenharia de Produção, é secretária executiva do Comitê de Gerenciamento da Bacia Hidrográfica do Rio Itajaí e coordenadora do Projeto Piava
* Lúcia Sevegnani, doutora em Ecologia, é professora da Universidade Regional de Blumenau
Leituras sugeridas:
DOBRAWA, SEVEGNANI, REFOSCO, PINHEIRO. Crise de falta de água e sua relação com os remanescentes florestais no oeste de Santa Catarina, Brasil. [Submetido]
MAKARIEVA e GORSHKOV. Biotic pump of atmospheric moisture as driver of the hydrological cycle on land. Hydrology and Earth System Sciences, 11, 2007. pp 1013-1033.
MAKARIEVA e GORSHKOV. Conservation of water cycle on land via restoration of natural closed-canopy forests: implications for regional landscape plannings. Ecological Research, 21, 2006. pp 897-906.
SHEIL e MURDIYARSO. How forests attract rain: examination of a new hypothesis. Bioscience, 59 (4) , 2009. pp 341-347
WEBB, WOODWARD, HANNAH e GASTON. Forest cover – rainfall relationships in a biodiversity hotspot: the atlantic forest of Brazil. Ecological applications, 15 (6), 2005. pp1968-1983.
(Envolverde/CarbonoBrasil)