Mais de 80% dos fragmentos que ainda restam da Mata Atlântica estão nas mãos
de particulares. Depende deles a conservação desse bioma, um dos mais ameaçados
do planeta.
Quilômetro 214 da BR-101. Estamos em Silva Jardim, município
fluminense com 21 mil habitantes que começa a se destacar pela mobilização de
sua comunidade para conservar as florestas. Ao lado da rodovia, junto à base de
fiscalização da Reserva Biológica de Poço das Antas, fica a sede da Associação
Mico-Leão-Dourado, entidade reconhecida internacionalmente por seus esforços
para salvar da extinção o pequeno primata símbolo da Mata Atlântica. Silva
Jardim é o campeão nacional em número de reservas particulares do patrimônio
natural (RPPNs). São 16 propriedades com flora e fauna preservadas, destinadas a
integrar o sistema de unidades de conservação do país.
O título de
campeão das RPPNs não é por acaso. Justamente pelo fato de tantas pesquisas
terem sido desenvolvidas nos últimos 20 anos para evitar o desaparecimento do
mico-leão-dourado é que agora a associação investe em incentivos à criação
dessas propriedades. “A passagem do estudo do animal para um trabalho de
mobilização social visando a manutenção e ampliação do seu hábitat se deu
naturalmente”, explica a secretária-geral da ONG, Denise Rambaldi. Atualmente,
ela dedica boa parte do seu tempo a convencer os proprietários de terras da
região a conectar os fragmentos de florestas destinados aos
micos.
O papel dos proprietários
De acordo com a
Fundação SOS Mata Atlântica, 80,5% das áreas remanescentes do bioma estão fora
de unidades de conservação geridas pelo poder público – ou seja, dependem de
particulares. A entidade ambientalista foi uma das primeiras a reconhecer que
não é preciso esperar apenas do poder público ações para conservar os 15 milhões
de hectares que restaram da mata – 10,5% da área original, se forem considerados
também os pequenos fragmentos de menos de 100 hectares. “Se a sociedade quiser
realmente conservar a floresta, um dos cinco hotspots mais ameaçados do mundo,
deve convencer os proprietários a não destruir o que resta dela em suas terras”,
afirma Érika Guimarães, coordenadora do Programa de Incentivos às RPPNs da
Aliança para a Conservação da Mata Atlântica. Chamam-se hotspots as 25 áreas
ricas em vida vegetal e animal que correm maior risco de desaparecer.
É
isso que pessoas como Denise Rambaldi estão fazendo. A partir da identificação
das áreas prioritárias para serem conservadas e conectadas entre si no entorno
da reserva de Poço das Antas, os profissionais da associação passaram a sair a
campo para conseguir que os donos desses fragmentos de floresta concordem em
transformar suas propriedades em RPPNs. Ou que, pelo menos, mantenham os 20% de
reserva legal (trecho que, por lei, deve ser mantido com vegetação nativa) e as
áreas de preservação permanente ou APPs (nascentes, matas ciliares, encostas com
mais de 45% de declividade e topos de morros) obrigatórias em suas terras.
Foi assim a aproximação com o gestor em planejamento ambiental Luiz
Nelson Faia Cardoso, proprietário da reserva particular Bom Retiro. Acompanhamos
a visita que a bióloga Ana Maria de Godoy Teixeira e o engenheiro florestal
Carlos Alvarenga Pereira Júnior, da associação, fizeram à fazenda, a 30 minutos
da reserva, passando por estradas de terra que cruzam várias propriedades e
pequenos rios em que o gado sacia a sede.
Cardoso conta que se
interessou logo em preservar suas terras, mas teve de convencer a família a
aceitar a ideia de ceder parte da propriedade para a implantação de uma reserva
perpétua. “Eles tinham medo de que o governo viesse depois e fizesse uma
desapropriação”, afirma. Pelo visto foi convincente: 91% da fazenda de seu pai
foi transformada em reserva particular (494 hectares) e, mesmo enfrentando
dificuldades para manter a área, tomou gosto pela causa e já ajudou a convencer
seis proprietários rurais a conectar fragmentos de floresta de suas propriedades
com a área de Poço das Antas, o que totaliza 1.300 hectares de mata
conservada.
Mas o entusiasmo do fazendeiro não é regra comum, até porque
a criação de reservas é difícil e as restrições de uso são rigorosas (veja box
abaixo). As exigências feitas pelo Ministério do Meio Ambiente são muitas e a
que mais causa dor de cabeça é a regularização fundiária das propriedades.
“Muitas fazendas constam em cartório com uma área e, quando é feita a medição,
aparece alguma diferença”, explica Ana Maria, que coordena o Programa de
Conservação em Terras Privadas da associação. Todo o processo burocrático chega
a durar, em alguns casos, dois anos.
José Luciano de Souza, do Programa
de RPPNs do Instituto Chico Mendes, órgão do Ministério do Meio Ambiente
responsável pelas reservas, confirma este rigor na análise dos documentos.
Segundo explica, ele é necessário porque há muitos casos de interessados que, na
verdade, estão tentando garantir a titularidade do terreno com a criação da
reserva. “Quando não há problemas com a documentação o prazo médio é de quatro
meses”, afirma.
Dificuldades de
implantação
Segundo o presidente da Confederação Nacional de
RPPNs, Rodrigo Castro, o maior desafio das ONGs que fornecem apoio técnico e
financeiro para a criação das reservas particulares, como a Associação
Mico-Leão-Dourado, é identificar os proprietários que tenham espírito de
conservação. ”É muito mais fácil você trabalhar com quem já se predispõe a se
envolver com a causa ambiental do que sair tentando convencer todo mundo”,
explica. Para ele, o poder público não divulga adequadamente essa alternativa,
por isso os donos de terras são muito desconfiados quando se fala em reservas
particulares – problema que José Luciano admite ocorrer com frequência.
O
Brasil conta com 885 RPPNs, que protegem uma área de 634,3 mil hectares (um
pouco maior que o Distrito Federal). Desse total, 589 reservas estão em área de
Mata Atlântica. Apesar de o bioma contar com o maior número de RPPNs do país
(66,6%), representa apenas 19% da extensão protegida por esse tipo de unidade de
conservação. Essa aparente contradição ocorre porque essas reservas de floresta
são muito pequenas, tanto que a menor do país é uma RPPN de Alterosa, sul de
Minas Gerais, com apenas 0,5 hectare.
A manutenção de uma reserva
particular também é difícil. Após cinco anos da averbação em cartório, é
necessário que os proprietários tenham um “plano de manejo” para a reserva e
que, pela dificuldade técnica, acaba requerendo também o apoio das ONGs. “O
governo tem de dar incentivos fiscais de verdade para manter a floresta de pé.
Se transformo parte do terreno em reserva, não poderei mexer mais nela e vou ter
uma isenção de imposto (Imposto Territorial Rural) que não ajuda muito por ser
barato”, afirma o pecuarista Antonio da Costa Freire, proprietário de um trecho
de 113 hectares de mata, considerado fundamental para ligar dois fragmentos de
floresta próxima da reserva dos micos-leões. Freire acabou vendendo o terreno
para a associação. Ele será doado ao Instituto Chico Mendes para ser integrado à
Reserva Biológica União, unidade localizada em Casimiro de Abreu, município
vizinho a Silva Jardim.
A forma jurídica encontrada pelos proprietários
para conservar o que resta de Mata Atlântica em suas terras não tem tanta
importância para os ambientalistas. O importante é o efeito. No caso de Silva
Jardim e região, segundo a bióloga Ana Maria, o objetivo é chegar em 2025 com 2
mil micos habitando 25 mil hectares de fragmentos de floresta protegidos e
conectados – atualmente 1.500 indivíduos vivem livres na natureza, número que já
foi 200 no fim da década de 1960.
Veja mais no site da Horizonte
Geográfico (http://www.horizontegeografico.com.br)
Crédito
da imagem: André Pessoa/HG
Legenda: Serra Bonita,
sul da Bahia: uma das regiões mais ricas em biodiversidade da Mata Atlântica,
onde, já foram registradas 800 espécies de plantas.
(Envolverde/Revista Horizonte Geográfico)