Há 200
anos nasceu Charles Robert Darwin, um dos mais famosos cientistas do mundo. Há
150 anos foi publicado sua principal obra sobre a origem das espécies, a qual,
desde então, modificou decisivamente a concepção humana acerca da natureza. Em
On the Origin of Species Darwin criou a teoria da evolução e superou a, até
então dominante, teoria da teologia natural. Ao contrário da explicação
criacionista para o surgimento da vida, a teoria da evolução afirma a
mutabilidade das espécies, baseando-se na adaptação dos seres vivos ao ambiente,
através da variação e da seleção natural. Darwin considerava a seleção natural o
mais importante mecanismo da evolução e, com isso, esclareceu o desenvolvimento
de todos os organismos vivos e sua divisão em diversas espécies. De acordo com
essa concepção, do excesso de indivíduos sobreviveriam apenas aqueles que melhor
se adaptam às condições ambientais. Somente bem mais tarde, nos anos 1930, a
teoria da seleção natural desenvolvida por Darwin foi combinada com as regras da
hereditariedade de Mendel, originando a teoria sintética da evolução. A enorme
força dessa teoria se tornou um princípio organizativo central da Biologia
moderna e constitui a explicação mais atual para a diversidade da vida no
planeta. O que isso teria a ver com transgênicos?
A transgenia surgiu do
desenvolvimento de diversos conhecimentos nas Ciências Naturais. Após as teorias
de Darwin e Mendel, foi fundamental para a transgenia a descoberta do DNA (ácido
desoxirribonucléico) e a constatação de que nele estavam genes dispostos numa
determinada seqüência, sendo responsáveis pelas características hereditárias.
Até esse ponto há um consenso de que o desenvolvimento científico constitui um
enorme progresso, que desperta grandes esperanças para a criação de plantas e
animais. Mais tarde, se descobriu que o DNA é recombinante e que, com o auxílio
de enzimas (que assumem uma função similar a uma tesoura), é possível isolar e
recortar suas partes. Já essa intervenção em seres vivos está associada a muitos
riscos. O desenvolvimento da ciência, entretanto, foi muito mais longe, de forma
que se tornou possível introduzir em um ser vivo as partes recortadas do DNA de
outro. Isso é possível através de dois métodos: 1) a pistola de DNA, com a qual
células com partículas de metal são pressionadas, para que determinado gene
penetre o genoma de uma planta; 2) o uso de agrobactérias, que causam um tumor
na planta, permitindo uma transferência de genes que supera barreiras
reprodutivas existentes entre espécies.
Transgenia e melhoramento
genético
Muitas vezes se procura confundir melhoramento genético
com transgenia, utilizando conhecimentos da Biologia e da Genética. Embora os
conceitos não sejam idênticos, o principal argumento comparativo é o seguinte:
no decorrer da história, o DNA de plantas teria sido modificado mesmo sem o uso
da transgenia. Com base na concepção darwiniana da natureza é possível explicar
que, no decorrer da evolução, ocorreram mutações, responsáveis pela
transferência de genes entre as espécies.
Diferente do melhoramento
genético tradicional, entretanto, a transgenia é uma técnica de transferência de
genes entre espécies. Em uma planta, por exemplo, o milho, são introduzidos
genes da bactéria Bacillus Thuringiensis (que produz uma toxina nociva a
determinados insetos). Trata-se de um cruzamento entre espécies que na natureza
não se cruzam (o que poderia acontecer com a evolução destas em milhares ou
milhões de anos) e, portanto, de uma aceleração ou de um retardamento artificial
da evolução, ignorando a base necessária à adaptação e evolução das espécies. Se
parte do pressuposto de que a seqüência genética tenha sido constituída por
acaso e que a modificação transgência resultaria apenas em vantagens.
As
multinacionais da indústria química e seus defensores trabalham com dois dogmas
centrais, ou seja, que a transgenia seria objetiva (isto é, que os genes seriam
isoláveis e objetivamente transferíveis entre os seres vivos) e que, no caso dos
novos genes inseridos, seria verificável apenas o efeito intencionado. Essas
afirmações, no entanto, não são comprovadas cientificamente. Através dos métodos
atuais de transgenia os genes são inseridos espontaneamente, de forma que
permanece desconhecido o local exato da inserção no genoma do organismo
receptor, assim como a freqüência da integração. Por isso, é falso afirmar que a
vantagem da transgenia em relação ao melhoramento genético tradicional seria o
fato de poder incidir de forma mais objetiva sobre a reprodução das plantas. A
genética molecular está sendo simplificada pelo conceito da transgenia como
metodologia de cultivo de plantas, reduzindo-a a unidades aproveitáveis. Com
isso, subestima-se o fato de que uma planta não consiste, simplesmente, na soma
de genes, que a regulagem genética funciona em rede e que há uma diversidade de
interações de um organismo com o meio ambiente, como conseqüência de sua
capacidade histórica de adaptação[2].
Transgênicos e
imunodeficiência
Embora a maioria dos cientistas financiados
pela indústria química continue ignorando os dados disponíveis, a experiência
com o cultivo de transgênicos demonstra que essas plantas apresentam uma menor
produtividade e carecem de um maior uso de agrotóxicos em relação às plantas
convencionais. Como se explica isso?
A idéia de que um gene teria apenas
uma determinada função foi superada em 2001, quando se constatou que o ser
humano não possui 100 mil genes, como se estimava até então, mas apenas em torno
de 30 mil, os quais são responsáveis pela produção de cerca de 1 milhão de
proteínas. A partir dessa constatação, se parte do pressuposto de que, no
mínimo, 40% dos genes humanos sejam responsáveis por muitas e mais complexas
funções do que se supunha até então[3]. As consequências da interferência do
contexto em que um organismo vive em relação ao seu desenvolvimento aumenta as
dificuldades da ciência, pois não bastam os resultados de pesquisas em
laboratório, se a possibilidade de sua generalização para além desse ambiente é
muito reduzida. Mas, já sabemos que um gene não atua de forma isolada e que a
sua ação é condicionada pela base genética e pelo ambiente onde ele se
situa.
A indústria da transgenia tenta suprimir os riscos apresentados
pelos produtos transgênicos, tendo como fundamento razões econômicas. Na
avaliação dos riscos, parte-se de uma chamada “equivalência substancial” entre
organismos transgênicos e convencionais, sendo que são estudados, de forma
exclusiva, os genes, sem abordar os efeitos destes a partir do contexto em que
estão inseridos. Os genes de seres humanos e de macacos, por exemplo, coincidem
em 99%, o que deixa claro que a mera análise genética pouco esclarece sobre a
composição de um organismo. No que se refere à soja, entre seus 100 a 200 mil
gens, apenas 20 foram estudados, algo em torno de 0,01% a 0,02% do genoma dessa
planta[4]. Diante disso, fica claro que o princípio de uma “equivalência
substancial” entre a soja transgênica e a convencional é avaliado mais por um
desejo econômico do que pela seriedade científica.
A argumentação dos
defensores dos transgêncios geralmente ignora a principal tese de Darwin, de que
a evolução se desenvolveu de acordo com determinadas condições ambientais, que
conduziram a uma adaptação e seleção dos seres vivos. Com base nesse referencial
teórico, é possível argumentar que a estrutura de genes de um ser vivo é
resultado da sua capacidade de adaptação às condições ambientais. Através do
melhoramento genético se busca interferir artificialmente nesse processo de
adaptação, de forma que, através de cruzamentos, as características desejáveis à
agricultura possam ser obtidas de forma planejada.
Como a atividade de um
gene depende de sua posição exata, do ambiente celular e do meio ambiente, é
muito improvável que a integração de um novo gene tenha apenas uma função,
sendo, portanto, difícil excluir efeitos colaterais indesejados, como, por
exemplo, a produção de novas substâncias tóxicas. Ainda que se desenvolvam novos
métodos para garantir o controle de genes inseridos (até o momento muito
complicado, como, por exemplo, inserindo de uma só vez blocos de genes em uma
planta), os efeitos colaterais não serão menores. Pelo contrário: a
probabilidade só pode crescer na medida em que o metabolismo da planta aumentar
em complexidade.
Nós estamos diante de um fenômeno de alta complexidade.
É possível que a interferência transgênica no DNA de uma planta possa interferir
de tal forma na sua capacidade de adaptação ao ambiente, que o seu sistema
imunológico seja prejudicado. Seguindo a concepção de natureza de Darwin, essa
possibilidade existe. Se a seqüência genética não surgiu por acaso, sendo o
resultado de milhares ou até milhões de anos de adaptação e seleção natural,
podemos pressupor que uma alteração artificial do DNA de um ser vivo tenha
conseqüências sobre a sua capacidade de adaptação. Nós já sabemos que, na
natureza, as plantas mais fracas tendem a ser mais atacadas por pragas do que as
outras. Isso pode ser explicado pelo mecanismo de seleção natural. O que
aconteceria com plantas que foram modificadas artificialmente pela transgenia,
de tal forma que foram submetidas a um processo de evolução acelerada ou
retardada? Na melhor das hipóteses, essas plantas não estariam adaptadas às
atuais condições ambientais. Que efeitos poderiam ser esperados nesse caso? Se
essa hipótese for confirmada, podemos pressupor que as plantas transgênicas não
conseguirão se afirmar, porque, em relação às outras plantas, elas não estariam
em condições de se adaptarem ao meio ambiente.
Seria necessário adaptar a
natureza às plantas, pois, do contrário, elas não sobreviveriam. Essa era a
concepção da maioria dos cientistas protagonistas da fracassada “Revolução
Verde” na agricultura, quando entendiam que a modernização da agricultura se
daria da mesma forma que a industrialização. Os argumentos dos defensores dos
transgênicos (não por acaso) são os mesmos da época da “Revolução Verde”: maior
produtividade, menos custos de produção e combate à fome. Os resultados desse
processo, no entanto, hoje são evidentes: mesmo que, nos primeiros anos, a
produtividade tenha aumentado, ela foi diminuindo gradativamente, os problemas
técnicos, as aplicações de agrotóxicos e os custos de produção
aumentaram.
Embora através da técnica se tenha tentando diminuir a
influência de processos biológicos sobre a agricultura, os limites desse
processo continuam existindo, mesmo em variedades de plantas altamente
desenvolvidas. A natureza influencia e determina consideravelmente os processos
produtivos na agricultura (entre outros, as estações do ano, a temperatura, os
índices pluviométricos, a umidade e a fotossíntese). Alterações nesses fatores
(através de estufas, da irrigação, do isolamento, e do aquecimento contra
geadas, entre outros) apresentam limites econômicos e técnicos. Estas
tecnologias são viáveis somente no caso de determinados produtos e grupos de
produtos (legumes, determinadas frutas, viveiros de mudas, flores e outros), mas
os custos se elevam em áreas de cultivo intensivo e, a partir de um determinado
momento, se tornam economicamente inviáveis. A tecnologia agrícola, portanto,
carece, fundamentalmente, da adaptação ao meio ambiente, e não inversamente,
como no caso da indústria, onde o ambiente pode ser adaptado à produção e há
condições de separar o processo produtivo da natureza[5].
A transgenia
não funciona na agricultura, porque a sua lógica não considera os mecanismos da
natureza e seu método está invertido: se procura desenvolver soluções antes de
tentar entender as causas dos problemas. Por exemplo, há pouca pesquisa para
entender porque uma lagarta se torna praga no milho ou porque mais plantas se
tornam inços. As soluções desenvolvidas propõem matar, envenenar, exterminar,
como se a natureza não reagisse.
Atualmente, sabemos que sementes de
plantas mais robustas e resistentes não estão mais disponíveis no mercado,
porque isso não interessa às multinacionais da indústria química. Com a expansão
de monoculturas e a monopolização do mercado de sementes, perde-se, ao mesmo
tempo, conhecimento e diversidade biológica. Como, então, poderemos resolver
problemas técnicos da produção agrícola no futuro, se a base para a pesquisa
está sendo exterminada? Com a transgenia essa situação somente piora, pois foram
realizadas modificações artificiais na estrutura de reprodução das plantas, de
forma que as menos adaptadas competem contra as forças da natureza.
Essa
é a atual experiência com transgênicos propagada pela indústria química, pois,
em função das condições naturais, a coexistência entre cultivos transgênicos e
convencionais não é possível. Especialmente no caso do milho, a contaminação
genética pode ser constatada em todas as regiões do mundo em que as plantas
transgênicas começara a ser cultivadas. Querer evitar a contaminação pode ser um
desejo político em muitos países, mas é uma proposta distante da realidade. Se a
contaminação não fosse uma realidade, em função do pólen ser muito pesado, o
cruzamento depender do mesmo período de floração e não haver a possibilidade de
transferência genética, então tanto a teoria da evolução como a concepção de
natureza de Darwin estariam superadas. A coexistência não é possível e, se essa
é a realidade, então não adianta ter leis que estabelecem como ela deveria ser
garantida. Conseqüentemente, em função dos cultivos transgênicos, a liberdade de
escolha de agricultores e consumidores deixa de ser assegurada, pois ambos
passam a ser forçados a utilizar as plantas transgênicas.
E essa é,
provavelmente, uma responsabilidade ainda mais séria da política: enquanto não
estiverem disponíveis estudos científicos suficientes sobre os efeitos dos
transgênicos sobre a saúde e o meio ambiente (entre outros, por que a indústria
química não tem interesse nisso), não se pode afirmar que o cultivo de
transgênicos teria os mesmos riscos que os cultivos convencionais. Também isso
pode ser desejado, mas está longe da realidade, pois já estão disponíveis muitos
estudos demonstrando os perigos e os riscos dos transgênicos, como as plantas
contendo genes do Bacillus thuringiensis, nas quais em cada célula é produzida
uma toxina. Até agora, o fator decisivo para o cultivo do milho transgênico tem
sido a possibilidade de combater pragas de uma forma mais eficiente e barata. Em
poucos anos, no entanto, se desenvolvem pragas resistentes à toxina produzida,
porque se usa apenas um produto e em enormes quantidades. Assim, em pouco tempo,
a única vantagem dessa planta, o combate mais eficiente de determinadas pragas,
deixa de existir.
A experiência mundial com plantas transgênicas
demonstra que a transgenia é ineficiente a longo prazo (em função das crescentes
resistências de pragas e inços), onerosa (em decorrência do aumento do uso de
agrotóxicos), não desejada pelos consumidores e associada a muitos riscos. O
fato de muitas lideranças políticas estarem ignorando essa realidade, deveria
nos fazer refletir, pois a maioria da população deseja e cientistas
independentes aconselham que se evite o uso dessa técnica.
Darwin oferece
a base para o entendimento de muitos dos problemas da transgenia, que já estão
em curso. É claro que carecemos de muito mais pesquisa nessa área. Mas, não
qualquer tipo de pesquisa. São urgentes e necessários maiores investimentos em
pesquisa crítica, independente, sustentável e de comprovado uso social. Do
contrário, restará aos seres humanos acreditar nos cientistas. E, exatamente
contra essa tendência na ciência Darwin também lutou: não se trata de uma
questão de crença, é necessário entender como a natureza funciona. A teoria da
evolução continua sendo a melhor explicação para os fenômenos biológicos. Essa
perspectiva os cientistas naturais deveriam considerar, antes de transformarem a
técnica em religião e, em função da sua crença nas assim chamadas tecnologias do
futuro, ignorarem a realidade.
[1] FOSTER, John B. A ecologia de Marx:
materialismo e natureza. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira: 2005, p.
30
[2] ANDRIOLI, Antônio I. Biosoja versus Gensoja: Eine Studie über
Technik und Familienlandwirtschaft im nordwestlichen Grenzgebiet des Bundeslands
Rio Grande do Sul (Brasilien). Frankfurt am Main: Peter Lang, 2007,
p.166.
[3] Idem, p. 165.
[4] ANDRIOLI, Antônio I. & FUCHS,
Richard (Org.) Transgênicos: As sementes do mal. A silenciosa contaminação de
solos e alimentos. São Paulo: Expressão Popular, 200, p. 239.
[5]
ANDRIOLI, Antônio I. Biosoja versus Gensoja: Eine Studie über Technik und
Familienlandwirtschaft im nordwestlichen Grenzgebiet des Bundeslands Rio Grande
do Sul (Brasilien). Frankfurt am Main: Peter Lang, 2007, S.81.
*
Antônio Inácio Andrioli é professor do Mestrado em Educação nas
Ciências da UNIJUÍ - RS e da Universidade Johannes Kepler de Linz (Áustria).
Doutor em Ciências Econômicas e Sociais pela Universidade de Osnabrück
(Alemanha)
(Envolverde/Mercado Ético)