Santarém, 2 de março (Terramérica) - Mário Maranhão acredita que sempre teve alma de conservacionista. Quando precisava caçar para comer, “matava o necessário e nunca as fêmeas”, conta. Há cinco anos, começou a salvar quelônios que nascem perto de Alter do Chão, um paraíso natural na Amazônia oriental. O trabalho ecológico deste guia turístico de 52 anos se tornou sistemático e qualificado ao associar-se com pesquisadores acadêmicos. Nos três últimos anos, percorreu as praias dos arredores todas as noites, entre final de setembro e começo de dezembro, em busca de ninhos com ovos recém-enterrados pelos quelônios, animais que as pessoas conhecem pelo nome de um grupo de suas espécies, as tartarugas.
Os tracajás (Podocnemis unifilis) costumam desovar entre 18h e 22h e os pitiús (Podocnemis sextuberculata) entre 1h e 4h, obrigando Mário a prolongados e solitários passeios noturnos que quase lhe custaram o casamento, confessa. O acompanhamento dos ninhos acaba quase dois meses depois, quando nascem os animaizinhos. Seu protetor os leva para casa e cuida deles durante mais dois meses antes de soltá-los no Lago Verde, cujas belas praias atraem muitos turistas a Alter do Chão, uma localidade do município de Santarém, a 800 quilômetros do Oceano Atlântico pelo Rio Amazonas.
Todo esse cuidado é para evitar que as pessoas comam os ovos e
que os predadores naturais, como gaviões e peixes, deem conta das crias. A
intenção é recuperar a população de quelônios, uma ordem da classe dos répteis.
Estes animais são muito prolíficos. Uma tartaruga amazônica (Podocnemis
expansa), a maior espécie da região, pode pôr mais de cem ovos em cada ninho.
Porém, pouquíssimas crias chegam à idade adulta, devido à intensa depredação dos
ovos e dos filhotes quando sua carapaça ainda não endureceu.
Por essa
razão, o manejo praticado por populações ribeirinhas é uma boa solução para
conservar e multiplicar os quelônios, segundo Juarez Pezzuti, professor da
Universidade Federal do Pará, que coordena várias pesquisas sobre fauna aquática
amazônica. Em animais de alta fecundidade e mortalidade como estes, com pequenos
cuidados na reprodução se consegue uma eficácia multiplicadora,
assegura.
Um projeto governamental de criação, que devolveu, a vários
rios amazônicos, dezenas de milhões de animaizinhos e que protege 115 áreas de
reprodução desde a década de 80, conseguiu espantar o risco de extinção que
pairava sobre as tartarugas e recuperar a população dessa e de outras espécies.
Pezzuti aposta no manejo comunitário por razões ecológicas e sociais. A caça ou
pesca de quelônios é proibida no Brasil desde 1967, como a de outros animais
silvestres. Mas a população local continua comendo sua carne e seus ovos, em
muitos casos por necessidade. Quando as espécies maiores faltam, como a
tartaruga e o tracajá, também pescam as menores.
Evitar a captura de
fêmeas durante a desova, por exemplo, elimina o principal fator de redução de
algumas espécies. Dirigir a coleta de ovos a ninhos vulneráveis à destruição por
inundações, pelo pisoteio do gado ou por excesso de fêmeas desovando em um mesmo
lugar também favorece a abundância de animais, algo que interessa às populações
locais para garantirem alimentos. A tartaruga, antes muito abundante, teve
grande importância alimentar na Amazônia brasileira nos três últimos séculos. O
aumento da população local, e a transformação de sua carne em manjar de alto
valor comercial, além do uso de seu óleo na iluminação pública, levaram à
superexploração e à ameaça de extinção.
Pezzzuti, um etnoecologista que
pesquisou em sua tese de mestrado e doutorado a reprodução de quelônios na
Amazônia, valoriza o conhecimento da população local em seus estudos. Por isso,
fala de manejo conjunto e procura integrar conhecimentos tradicionais e
acadêmicos. A ciência “eurocentrista” geralmente ignora a experiência popular, o
que dificulta o avanço das pesquisas e, não em poucas ocasiões, conduziu a
conclusões equivocadas, segundo o professor. “Para mim, seria impossível
trabalhar sem recorrer à sabedoria das populações amazônicas, acumulada durante
séculos”, reconhece.
A pesquisa sobre os quelônios no Lago Verde que
Rachel Leite realiza, para sua tese de mestrado sob orientação de Pezzuti, conta
com a colaboração, além de Maranhão, de Paulo de Jesus, barqueiro e exímio
pescador de tartarugas. Em uma expedição junto com os pesquisadores e os
repórteres deste artigo, Jesus conseguiu pescar, agarrando-os com as mãos, cinco
exemplares de tartarugas, tracajás e pirangas (Chelonoidis carbonaria),
mergulhando a dois metros de profundidade em um igapó (floresta inundada) de
Lago Verde.
Sua acuidade visual, que lhe permite descobrir os quelônios
onde nada viam os dois pesquisadores e um repórter que se aventuraram na água
verde-terra, revela a capacidade que desenvolveu como caçador de sobrevivência e
em sua atual ocupação, de captura de peixes ornamentais. Hoje sua habilidade
está a serviço da ciência, talvez por isso evite responder se voltaria a comer
tartaruga.
Os quelônios encontrados são identificados, medidos, marcados
e devolvidos no mesmo lugar pela pesquisadora Rachel, que desde setembro os
busca regularmente em várias partes do Lago Verde. O começo foi “desesperador,
não víamos os bichos”, recorda. Mais tarde, os pescadores explicaram que os
animais estavam “enterrados no lodo”. Era a estiagem, quando o nível das águas
do Lago pode baixar até seis metros. Agora, com a cheia do Rio Tapajós, que
alimenta o Lago, é mais fácil encontrá-los tomando sol ou debaixo
d’água.
O estudo de Rachel Leite estimará a população das cinco espécies
encontradas no Lago Verde, sua distribuição geográfica e estacional. As medições
e marcações na carapaça de cada animal permitirão conhecer seu crescimento numa
captura posterior, explica a bióloga. Para pesquisar a reprodução ela conta com
apoio de Maranhão, outro especialista prático que consegue identificar ninhos
onde poucos vislumbram alterações na praia. Em seus passeios noturnos não
encontra apenas ninhos, mas também apaga as pegadas deixadas pelas fêmeas para
impedir que os caçadores descubram os ovos.
A vocação de Maranhão também
o converteu em educador ambiental: leva crianças para ver o nascimento das
tartarugas. A efetividade dessa experiência é comprovada por Roberto Santos, o
barqueiro que transporta a equipe de pesquisas e os repórteres para observar
cinco ninhos, em dois dos quais haviam nascido dez crias, levadas para o “berço”
de Maranhão. Santos se sente “emocionado” ao vê-las e a partir dessa experiência
se declara “defensor das tartarugas. Agora vejo a vida que nasce, antes não
tinha consciência disso”, afirmou.
* Os autores são correspondentes da
IPS. Este artigo é parte de uma série produzida pela IPS (Inter Press Service) e
pela IFEJ (Federação Internacional de Jornalistas Ambientais) para a Aliança de
Comunicadores para o Desenvolvimento Sustentável (www.complusalliance.org).
Crédito
da imagem: Alejandro Kirk/IPS