A atual produção mundial de alimentos é superior à capacidade de consumo dos seres humanos. Assim, podemos constatar que a fome não resulta de uma baixa produtividade ou de pouca produção de alimentos no mundo. A questão, entretanto, é a seguinte: como os 860 milhões de seres humanos que passam fome podem ter acesso aos alimentos? Alternativas técnicas, como a transgenia, poderiam contribuir para combater a fome?
As questões políticas fundamentais que se colocam no debate sobre a produção de alimentos giram em torno do que, porque, como, por quem e para quem algo é produzido. Nos últimos anos, se vislumbrou, de forma crescente, a possibilidade de lucrar com a produção de alimentos. Uma das formas é disponibilizar alimentos baratos sob tais condições que a produção local em outros países seja destruída e se gere uma dependência na importação. Por exemplo, o Brasil exporta frangos para a Europa, os europeus consomem as partes mais nobres e as que não desejam consumir são exportadas gratuitamente para a África, com o suposto propósito de combate à fome. Assim, o frango exportado para os países africanos destrói a produção local, pois estes não têm condições de competir com as doações de alimentos. Essa é uma forma de dependência acompanhada de um “espírito de solidariedade” e assistencialismo, pois os europeus argumentam que, assim, estariam ajudando os países pobres.
Mas, quais alimentos são produzidos? No caso do Brasil, é
evidente que o país produz demasiadamente soja, que, em sua maior parte, se
destina à alimentação de bovinos, suínos e aves dos europeus, estadunidenses e
chineses. E, atualmente, também passa a contribuir para abastecer veículos na
forma de agrodiesel. A monocultura da soja destrói o meio ambiente e a produção
local de alimentos para servir de combustível para os países ricos.
O
Brasil produz excessivamente soja, café, algodão, cacau, laranja, enfim, as
monoculturas destinadas à exportação, produtos que, em sua maioria, não são
consumidos pelos brasileiros. Por outro lado, o país produz pouco arroz, feijão
e mandioca, produtos que constituem a base alimentar dos brasileiros e passaram
a ser importados com dinheiro das assim chamadas divisas do superávit da balança
comercial, resultante das exportações agrícolas. Essa é uma das formas de
desigualdade que contribui para a concentração de renda nos países ricos e
pobres e para o aumento da fome. Por exemplo, o Brasil é o maior produtor de
café em grão do mundo. A Alemanha, país mais rico da Europa, é o maior
exportador de café refinado do mundo sem produzir um único grão do produto. Isso
não ocorre somente com o café. Trata-se de uma política de geração de
dependência, que há mais de 500 anos vigora no Brasil. Por isso, a fome e a
produção de alimentos constituem uma questão política e não técnica. Trata-se da
soberania alimentar de uma população. Além disso, determinadas tecnologias, como
a transgenia, proporcionam a algumas empresas o poder de se apropriarem de
recursos naturais, que deveriam estar à disposição de todos, para o aumento de
seus lucros. Essas mesmas empresas são beneficiadas com a fome (a assim chamada
crise alimentar), que é muito mais resultado de uma especulação com alimentos do
que da sua falta de disponibilidade ou do aumento do consumo em algumas regiões
do mundo. Os chineses, por exemplo, estão consumindo mais alimentos importados
exatamente em função do forçado processo de industrialização e urbanização em
curso naquele país, diminuindo a produção de alimentos, aumentando o êxodo rural
e, por consequência, o número de pessoas que deixam de produzir para consumo
próprio.
Além dos fatores anteriormente citados, é principalmente a
concentração no sistema alimentar mundial que tem contribuído para o aumento da
fome. No Brasil, isso não significa apenas afirmar que determinadas empresas
monopolizam diretamente a produção de alimentos, pois elas estão controlando o
uso da terra. A terra continua concentrada como propriedade de empresas que
passam a produzir soja, etanol, agrodiesel e celulose. É esse o futuro projetado
para a agricultura brasileira pelo “agronegócio” e, com isso, se produz mais
fome, pois estão sendo excluídos do acesso à alimentação aqueles que poderiam
produzir para alimentarem a si mesmos e que estariam em condições de produzir um
excedente para abastecer o mercado local e regional. Esse tipo de agricultura
está sendo destruído, o qual é responsável pela alimentação da maior parte das
pessoas no planeta: a agricultura familiar.
A agricultura familiar não
recebe apoio público na forma como deveria receber, considerando sua importância
para a soberania alimentar das nações. O debate sobre os subsídios agrícolas
também é fundamental no que se refere à alimentação. Na Europa, por exemplo, é
subsidiada a agricultura que não precisa do subsídio (os grandes produtores
rurais e corporações agrícolas), em função da pressão política das suas
organizações. O governo apoia, prioritariamente, quem expande sua capacidade
produtiva, o que gera um problema de superprodução. Em seguida, para compensar
os baixos preços decorrentes do excesso produzido, os governos subsidiam a
exportação desses produtos, que entram no mercado internacional, destruindo a
produção em outros países e gerando uma nova dependência.
Com referência
aos transgênicos, que foram anunciados com a promessa de contribuir para o
aumento da produção de alimentos, é evidente que empresas como a Monsanto, a
Syngenta, a Bayer e a Basf não estão interessadas em combater a fome. Seu
objetivo é aumentar o poder de controle sobre a produção de alimentos desde a
gênese do alimento: a semente. Nunca na história da humanidade se obteve um
domínio tão grande sobre a produção de alimentos, porque nunca era possível
determinar a partir de uma técnica a apropriação dos resultados econômicos dessa
tecnologia. Atualmente isso é possível. A transgenia e algumas outras
biotecnologias que ainda estão por vir permitem que algumas empresas possam
controlar onde e qual planta será cultivada, que tipo de insumos se vai utilizar
(os insumos que essas empresas tem a oferecer) e para quem essa comida será
produzida.
Há diversos problemas éticos envolvidos nesse debate. Existem
pesquisadores (intelectuais liberais) que não conseguem entender porque as
pessoas pobres não querem consumir o que os ricos rejeitam: os alimentos
transgênicos, com altos riscos à saúde, enormes conseqüências ao meio ambiente e
problemas sociais, que se tornaram conhecidos nos últimos dez anos, em que
apenas duas formas de transgenia foram liberadas para cultivo. Trata-se de uma
planta resistente a um herbicida e uma planta resistente a determinados insetos.
Após 5 anos de cultivo essa tecnologia passa a perder a sua validade e precisam
ser acrescentadas novas características para que ela possa continuar sendo
eficiente, representando um alto custo econômico, ecológico e
social.
Está comprovado que a transgenia é uma tecnologia que não deu
certo, com a constatação de resistência de inços ao glifosato, no caso da planta
resistente a herbicida, e a resistência dos insetos contra a toxina produzida
pela bactéria bacilus turinguiensis, introduzida nas plantas Bt. Mas, apesar
disso, existe um lobby enorme sobre parlamentos e governos, uma forte pressão da
mídia e um aparato de propaganda para forçar a sociedade a consumir o que ela
não está disposta a consumir e os agricultores estão sendo forçados a produzir
de uma só forma. Se o agricultor não consegue mais produzir de outra forma, o
consumidor não terá mais a possibilidade de escolher o tipo de alimento.
Portanto, de uma só vez, estão sendo restringidos dois direitos históricos dos
seres humanos: a) a liberdade dos agricultores de definirem sua forma de
produzir; b) a liberdade dos consumidores em sua opção de consumirem alimentos
melhores, mais saudáveis e que não contenham toxinas ou resíduos de
agrotóxicos.
Com os transgênicos estão sendo produzidos alimentos de pior
qualidade, com menor produtividade e com mais custos econômicos, ecológicos e
sociais. Por detrás dessa temática está o debate sobre o tipo de agricultura
que um país pretende priorizar, o acesso aos recursos naturais, a Reforma
Agrária, enfim, a possibilidade de um povo se alimentar de uma forma mais
saudável e de viver com mais qualidade. A silenciosa contaminação de solos e
alimentos[1], através dos cultivos transgênicos, integra uma estratégia de
dominação associada a uma perspectiva de aumento dos preços dos alimentos.
Assim, é possível controlar populações inteiras que ficam subordinadas aos
interesses de algumas corporações multinacionais, fazendo da produção de
alimentos uma forma de enriquecimento privado e um poder político sem
precedentes na história da humanidade.
[1] Cfe. Andrioli, A./Fuchs, R.
(2008): Transgênicos: as sementes do mal. A silenciosa contaminação de solos e
alimentos. São Paulo: Expressão Popular. http://www.andrioli.com.br/livros/livro_as_sementes.htm
*
Antônio Inácio Andrioli é professor do Mestrado em Educação nas
Ciências da UNIJUÍ - RS e da Universidade Johannes Kepler de Linz (Áustria).
Doutor em Ciências Econômicas e Sociais pela Universidade de Osnabrück
(Alemanha)
(Artigo publicado originalmente na revista Espaço
Acadêmico)
(Envolverde/Mercado Ético)