Povos tradicionais da Amazônia: os biozeladores da natureza

Desmatamento, biogrilagem, exploração madeireira ilegal, cultivo da soja e pecuária ex-tensiva representam alguns dos grandes problemas que assolam a Amazônia. Desde a chegada dos europeus, responsáveis pela dizimação de culturas, povos e riquezas naturais - passando pela explosão populacional durante o ciclo da borracha, período no qual milhares de nordestinos migraram para a região em busca do "ouro negro" até a atual fase "desenvolvimentista", que promove a devastação da floresta para a criação de gado e plantações de soja -a ação predatória do homem demonstra o descaso em relação ao meio ambiente, às fragilidades dos sistemas de monitoramento e à ineficiência das políticas públicas na Amazônia.

Nesse território de conflitos, encontram-se as populações tradicionais (indígenas, seringueiros, castanheiros, extrativistas, ribeirinhos, pescadores artesanais, quebradeiras de coco, pequenos agricultores, quilombolas, povos da floresta), comunidades que sofrem as conseqüências dos crimes ambientais contra o bioma amazônico. A Política Nacional de Desenvolvimento Sustentável dos Povos e Comunidades Tradicionais define-os como "grupos culturalmente diferenciados e que se reconhecem como tais, que possuem formas próprias de organização social, que ocupam e usam territórios e recursos naturais como condição para sua reprodução cultural, social, religiosa, ancestral e econômica, utilizando conhecimentos, inovações e práticas gerados e transmitidos pela tradição".

No Brasil, as comunidades tradicionais estão divididas em povos indígenas e populações tradicionais não indígenas. Cerca de 60% dessas populações vivem na Amazônia. Esses grupos preservam a cultura da floresta, vivem da agricultura de subsistência, da pesca e da caça e coletam produtos naturais para constituir renda. "A Amazônia é palco de comunidades tradicionais que utilizam os recursos provenientes da cobertura florestal e usam os recursos no presente sem comprometer o futuro. É símbolo de vida e patrimônio da humanidade", ressalta Anderson Costa, pesquisador assistente do Instituto do homem e Meio Ambiente da Amazônia (Imazon). Essa intrínseca relação de dependência entre os comunitários e a floresta torna as populações tradicionais mais vulneráveis às mudanças climáticas, transformando-as nas principais vítimas da destruição do meio ambiente, ocasionada pela cultura exploratória que impera na Amazônia.

Caetano Scannavino, coordenador do Projeto Saúde e Alegria, que atua junto às comunidades ribeirinhas da região oeste do Pará, assegura que as populações tradicionais sabem a importância de proteger a floresta. "Eles que conscientizam a gente em relação à questão ambiental. O que fazemos é levar informações sobre o que está acontecendo no mundo porque eles estão isolados. Precisamos falar, por exemplo, que a água que eles estão acostumados a beber está contaminada porque tem um esgoto sendo jogado no rio. Eles estão sentindo na pele as conseqüências das modificações climáticas".

Dentre as principais dificuldades enfrentadas pelas comunidades tradicionais, destacam-se: poluição dos rios e lagos, baixa renda, precariedade na área de saúde e educação, exploração das terras e dos saberes tradicionais desses povos. "Eles vivem de subsistência, mas já não conseguem mais garantir a caça, o peixe para poder alimentar as famílias, não há luz elétrica e a circulação de moeda é muito baixa. Eles vivem em dificuldade", relata Scannavino.

Apesar das constantes aparições na mídia, a realidade da Amazônia ainda é desconhecida pelo povo brasileiro. Caetano Scannavino lamenta a falta de informação e o desconhecimento sobre o que efetivamente acontece nessa região, "o que se acha e o que se pensa em relação à Amazônia é muito diferente do dia-a-dia de quem está aqui. Muitas pessoas imaginam bichos, florestas e esquecem que essa é uma região habitada, que tem um povo maravilhoso. Seja na cidade, seja no interior esse povo tem uma cultura própria. Ele é sabedor das coisas, é sabedor de soluções aqui para a região e se fosse mais ouvido, muitas das soluções em relação à Amazônia já poderiam estar encaminhadas".

Para ele, fortalecer as populações da floresta é uma das formas de salvaguardar a Amazônia, pois "essa população depende da natureza pra sobre-viver. Eles não cobram salário para poder cuidar da floresta. Eles cuidam voluntariamente", anota. O discurso de Raimundo Costa Pedrosa, uma das principais lideranças de Maguari, revela os anseios da comunidade: "o que a gente espera hoje é melhora não só nas cidades grandes, mas nas nossas comunidades também."

A participação das populações tradicionais - cerca de 30 mil - no combate à degradação ambiental ainda é incipiente. Para João Meireles Filho, escritor e ambientalista, é necessário haver incentivos para a conservação da floresta. Segundo ele, a pecuária teve investimentos de R$ 2 bilhões de bancos oficiais, o alumínio recebeu, em 20 anos, R$ 3,5 bilhões, enquanto as comunidades tradicionais continuam vivendo na linha da pobreza. Além da falta de investimentos, a escassa difusão de uma cultura ambiental que promova a valorização dos povos da floresta dificulta a ampliação de um modelo de desenvolvimento sustentável. "Se der uma motosserra, um trator de esteira e gado na mão da população tradicional também irá fazer o mesmo estrago do migrante. A questão é mudar a cultura para que avancem os projetos de sustentabilidade", explica João Meireles.
 
Populações tradicionais e os projetos de desenvolvimento sustentável

Fomentar o desenvolvimento de projetos sustentáveis é promover a geração de emprego e renda, a preservação do meio ambiente e o fortalecimento da cultura da floresta. O conceito de desenvolvimento sustentável definido pela Comissão Brudtland, da Organização das Nações Unidas (ONU), é "satisfazer as necessidades das atuais gerações sem comprometer a habilidade de futuras gerações em atender às suas próprias necessidades".

Na Amazônia, algumas comunidades tradicionais realizam atividades ambientalmente responsáveis em projetos apoiados pelo governo, instituições da sociedade civil e organizações não governamentais que investem em ações voltadas para a qualificação profissional e para o crescimento econômico das famílias amazônidas. Todos os projetos são direcionados para a capacitação das comunidades para que possam gerir e dar continuidade aos trabalhos.

Às margens do rio Arapiuns, populações tradicionais apostam na conservação da floresta investindo em artesanato e ecoturismo. Valcléia Lima, técnica do programa Economia da Floresta do Saúde e Alegria, explica que unir o turismo com a produção artesanal é a alternativa para as comunidades porque a renda vem "dos serviços que a comunidade oferece e dos produtos fabricados nas respectivas localidades".

Atualmente, 38 artesãs fabricam cestaria em palha da palmeira tucumã na comunidade de Urucureá. A experiência está sendo implementada em mais dez comunidades que detêm a técnica da cestaria. As atividades de ecoturiso de base comunitária na região englobam cinco comunidades da Floresta Nacional do Tapajós (Flona Tapajós), três da Reserva Extrativista (Resex) e mais seis na área do Lago Grande (Feagre). Além da geração de renda para as famílias, essas ações garantem o fortalecimento econômico das comunidades locais.

Os recursos advindos dos projetos são destinados a um fundo comunitário para o fortalecimento de três federações (Federação da Flona, Federação da Resex e Federação da Gleba Lago Grande), o percentual de 60% da verba é direcionado para o fortalecimento institucional das federações e 40% para as ações de formação e capacitação das comunidades que desenvolvem atividades de ecoturismo.

Segundo Valcléia Lima, já existe uma conscientização ambiental das comunidades ribeirinhas porque "eles sabem que a riqueza da soja é passageira. As comunidades estão preservando aquilo que ainda existe de floresta porque sabem que é isso que mais tarde vai trazer benefícios para as suas famílias".

Na comunidade de Maguari, a fabricação de bolsas e acessórios feitos de couro é a principal fonte de renda de 70 famílias, membros da Associação dos Mini e Pequenos Produtores Rurais da Margem Direita do Rio Tapajós. Alciney Feitosa, um dos integrantes do projeto Couro Ecológico, acentuar que a iniciativa transformou os hábitos culturais dos moradores. "A gente trabalhava na roça. Lá a gente estava degradando muito a floresta. Estava derrubando a floresta para fazer roçados imensos. Se fosse ficar todo tempo fazendo roçado não ia mais ter floresta. Com o couro a gente não está degradando o meio ambiente", disse. O ecoturismo e a venda de biojóias também promovem o crescimento econômico na localidade.

Se as populações tradicionais são beneficiadas com os produtos provenientes da floresta, as riquezas biológicas encontradas na Amazônia são preservadas por essas comunidades que atuam como guardiãs da natureza, reduzindo gradativamente a exploração dos recursos naturais pelos grileiros, sojeiros, pecuaristas e demais criminosos ambientais interessados em destruir a biossociodiversidade da maior floresta tropical do Planeta. A preservação dos valores e da cultura das populações tradicionais contribuirá para o avanço de um modelo de desenvolvimento sustentável na Amazônia, garantindo o fortalecimento da cidadania dos povos da floresta.

* Gerlene Rodrigues da Cruz é graduada em Comunicação Social – Jornalismo pela Universidade de Fortaleza (Unifor), em julho de 2008. Sua experiência profissional inclui, em especial, atuação no Instituto de Pesquisas Datafolha, no Grupo de Comunicação O Povo e na Caixa de Previdência dos Funcionários do BNB – Capef.

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