D. Cappio ainda acredita que obra de transposição do São Francisco não sai

As obras já começaram, com a participação até do Exército. Mas D. Luiz Flávio Cappio, o As obras já começaram, com a participação até do Exército. Mas D. Luiz Flávio Cappio, o bispo de Barras (BA) que já realizou duas greves de fome, em 2005 e 2007, contra a transposição do rio São Francisco, ainda tem a convicção - ou fé - que a obra não sai. Ou, pelo menos, não termina.

São muitas ilegalidades, há pelo menos 14 processos em andamento no Supremo Tribunal Federal, o povo continua mobilizado e o investimento é muito grande, apenas para beneficiar grandes indústrias e o agronegócio, argumenta.

Ele foi o palestrante do encerramento do Simpósio Internacional de Teologia realizado pela Faculdade de Teologia da PUC e a Escola Superior de Teologia Franciscana (Estef), sexta-feira à noite (24/11), em Porto Alegre.

Um público católico e fervoroso bebeu cada sílaba de cada palavra de D. Cappio, como se ouvisse o próprio S. Francisco, o santo padroeiro do meio ambiente e dos animais, o jovem de família abastada que escolheu viver entre os pobres e trabalhar por eles.

Na direção do rio


Como o santo que lhe dá nome, o rio S. Francisco nasce na rica Minas Gerais, no mesmo berço da Bacia do Paraná, ruma para o Sudeste e Sul, mas então, de repente, faz uma curva e sobe para o Nordeste, onde vai assegurar a vida do povo pobre do sertão, observou D. Cappio. E como o santo, e como o rio, D. Cappio seguiu a mesma direção. Nasceu em Guaratinguetá (SP), militou na Pastoral Operária no auge da ditadura, onde teve o seu batismo de sangue, e vendo em São Paulo tantos nordestinos fugindo da miséria, foi para o nordeste.

No sertão baiano vive há mais de 30 anos, entre os pobres e junto ao rio pelo qual luta com unhas e dentes. E uma fé inabalável. Para justificar suas duas greves de fome, aparentemente um atentado contra a vida que o cristianismo defende, D. Cappio diz que quando a razão não resolve a loucura é a saída, emendando que seguiu a recomendação de Jesus: "Quando o inimigo for muito poderoso, o único meio de se fazer frente é através da oração e do jejum".

Acrescentou que não pretende fazê-lo de novo, porque "o grito já foi dado, já foi ouvido, não precisamos mais gritar, todos já estão sabendo, agora a gente precisa lutar, precisamos nos unir em defesa da biodiversidade, da vida, do futuro dos que vêm depois de nós".

O projeto prevê a transferência das águas a partir das barragens de Sobradinho e Itaparica, em Pernambuco, num total de 700 quilômetros de canais, pelos Eixos Norte (400 quilômetros) e Eixo Leste (220 quilômetros), através dos territórios de Pernambuco, Ceará, Rio Grande do Norte e Paraíba.

O bispo denunciou que a mídia só deu atenção ao assunto quando começou a haver repercussão e pressão internacional ao seu protesto e devido ao apoio de mídias alternativas, principalmente pela internet. "Vivemos no Brasil uma ditadura mais dura que nos tempos dos militares, existe apenas um poder no Brasil, o Executivo, diante do qual o o Poder Legislativo, o STF e a mídia, o quarto poder, se curvam".

Propaganda enganosa

Segundo ele, a propaganda de que a obra vai levar água para quem tem sede no semi-árido é enganosa, pois apenas 4% de toda a água que será desviada transferida do S. Francisco vai abastecer a população difusa do semi-árido, cerca de 12 milhões de pessoas. O próprio Estudo de Impacto Ambiental (EIA/Rima) do projeto aponta que 70% será usada para grandes projetos de irrigação – o agronegócio - e 26% para projetos industriais.

"Se o projeto fosse para realizar a propaganda, levar água para quem não tem, água para matar a sede dos sedentos, garantir o acesso das comunidades que não têm água, seríamos os primeiros a defender e apoiar o projeto para que fosse implementado; mas quando vimos que a aprioridade não é a dessedentação humana e animal, mas sim o consumo econômico da água, o incremento do grande capital, a criação de infra-estrutura hídrica para implementação de grandes empreendimentos do agronegócio e do hidronegócio, nos rebelamos, isso não pode acontecer".

Disse que serão gastos R$ 20 bilhões e que com muito menos projetos alternativos da Associação do Semi-Árido e da Agência Nacional de Águas, como um milhão de cisternas que poderiam abastecer toda a população do semi-árido. Entre as irregularidades, citou o fato de não terem sido ouvidas as várias comunidades indígenas e quilombolas por onde passa o rio, como prevê a Constituição, ou a legislação das águas (Lei 9433/97) que só permitiria, segundo ele, uma obra dessa natureza para abastecimento humano, em caso de comprovada escassez. Por tudo isso, ele não acredita na continuidade do empreendimento.

"Acreditem no que estou dizendo: o projeto não vai acontecer, a demanda de recursos é tão grande e as irregularidades são tão grandes que (a transposição) não vai chegar ao seu final, com certeza será mais uma de tantas outras obras que não chegaram ao fim no país", profetizou D. Cappio, respondendo a uma questão da EcoAgência.

Na fila do SUS

Acrescentou que qualquer intervenção no rio terá um impacto ambiental sobre o manancial, já bastante comprometido. Sobre isto, ele narrou que, percebendo a vitalidade do S. Francisco diminuir, nos anos de 92 e 93 fez uma viagem de 6 mil quilômetros, à pé, com uma religiosa, um sociólogo e um sindicalista, de ida e volta por toda a sua extensão, visitando cada comunidade. Já então sentiu que o rio sofria com a poluição, o desmatamento, projetos de irrigação e de energia sem qualquer controle.

De lá para cá, a situação só piorou: "Dizem que o S. Francisco está na UTI, que bom que estivesse, estaria sendo atendido por equipamentos, equipes especializadas, para ser socorrido e ser salvo. Mas não, o S. Francisco está na fila do SUS, e não sabe se vai ser atendido", alertou o franciscano, que dia 18 de outubro recebeu, em Sobradinho (BA), o Prêmio da Paz 2008, conferido pela Pax Christi Internacional, uma instituição de 50 países, sob a vigilância do Exército, que isolou a barragem da cidade. "Como somos perigosos, a paz é perigosa", ironizou.

Sua alegria, o reconhecimento internacional, sua tristeza, "a indiferença do governo e dos que deveriam pensar em soluções reais para o povo, mas estão cegos, surdos e mudos".
Ao final, conclamou que cada um faça sua parte, de forma pacífica, unindo espiritualidade, política e ecologia, num enfrentamento não violento mas de grande força política.

Próximas gerações


"Precisamos lutar para que os nosso filhos e os nosso pósteros possam ter vida, vida com qualidade, e pode ser que um dia eles digam 'muito obrigado a vocês que fizeram sua parte'; mas pode ser que nos apontem o dedo em riste e digam: 'vocês são os culpados, os criminosos que criaram esse inferno em que nós vivemos hoje'. Nós seremos julgados pelo mundo que estamos deixando para eles, por isso se cada um fizer a sua parte, levar a sério o respeito à vida no planeta, terá dado um grande contribuição".

No debate, muitos da platéia fizeram associação com o que está acontecendo no Rio Grande do Sul, onde rios como o Gravataí, Sinos, Uruguai e também o Pampa dão sinais de esgotamento, ameaçados por projetos econômicos, o descontrole e a conivência das políticas públicas. Também foi lembrado que muitos gaúchos estão fazendo investimentos no norte e nordeste provocando grande destruição nos rios e florestas – inclusive na Amazônia e no Cerrado.

Ao final, D. Cappio autografou o livro "Uma Vida Pela Vida", que narra sua greve de fome, ou jejum e oração, pelo São Francisco, o rio com quem ele convive há 33 anos; onde as mulheres se benzem quando buscam água em latas; cujas bênçãos os humildes pescadores agradecem todos os dias antes de partir para o trabalho, numa relação de respeito e devoção que lembra a dos indianos pelo Ganges. "O rio é o eixo, o centro, a artéria da vida do povo. Passei a me sentir visceralmente integrado a esse povo e a esse rio, numa franciscana, espiritual ecologia", professa o bispo, na apresentação do livro.

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