A Amazônia dos últimos 40 anos, desde o golpe militar de 1964, é a Amazônia do tudo pode, do carnaval – pode matar índio, pode expulsar caboclo e quilombola, pode grilar terra, pode roubar madeira, pode abrir pasto pra boi, pode garimpar ouro, pode plantar soja, pode transformar castanhal em pasto. Tudo pode.
Para que? Para gerar pífios 0,4% do PIB do Brasil, menos de
R$ 10 bilhões, uma renda insignificante, seja pela enorme evasão fiscal, seja
por uma atividade de baixa lucratividade e que nem aos pecuaristas vale a pena,
que gera pouco menos de 200 mil empregos e não agrega valor à Amazônia. Mesmo a
Amazônia nada significa à economia do Brasil: a renda anual é de R$ 71,8
bilhões, 3,4% do PIB do país.
Para a Amazônia só ficam os troféus -
campeã mundial de desmatamentos e queimadas, campeã de escravização de mão de
obra, campeã de desrespeito aos direitos humanos, campeã de exclusão digital, de
doenças tropicais, de localidades sem bibliotecas.
Ao mesmo tempo, em
quatro décadas, o Brasil transferiu 1/3 de sua boiada para a Amazônia e, nós,
calados, assistimos a tudo sem nos indignarmos.
Hoje discutimos assuntos
de segunda importância: se a Amazônia deve ter agricultura como soja ou
cana-de-açúcar, que, juntas, não ocupam 5 milhões de hectares. Enquanto isto
não tratamos do grande problema da Amazônia, e do Brasil: a pecuária bovina, que
ocupa 200 milhões de hectares do país e 70 milhões de hectares na
Amazônia.
O boi é o carrapato do Brasil. Suga nossa seiva, nossa selva. O
boi suga nossa inteligência, nossa capacidade de pensar, nossa capacidade de nos
expressarmos enquanto Nação, nos encouraça – o Brasil é um pasto cercado de
arame farpado por todos os lados.
A população da Amazônia, como sempre,
nem de carne de qualidade e a baixo preço se beneficia – a carne é mais cara que
no Sudeste, de qualidade duvidosa e origem incerta (boa parte é oriunda de abate
clandestino, o boi-mato). De toda carne da Amazônia só 15% fica na região. O
restante é enviado aos outros retiros do Brasil: São Paulo e o Sudeste devoram a
Amazônia. De cada três bifinhos mastigados no Brasil, pelo menos um vem da
Amazônia. Você já comeu a Amazônia hoje?
São mais de 75 milhões de
cabeças de gado bovino na Amazônia. Em 1964 eram pouco mais de 3 milhões. Em
2020, se nada for feito, serão 200 milhões de cabeças.
Destas 75 milhões,
pelo menos 10 milhões são de bois piratas – bois sem registro, sem vacina, sem
controle, boi que não paga imposto, boi dentro de terra indígena e parque, que
os donos escondem no fundo das invernadas, comercializados sem ninguém saber. A
Secretaria da Receita Federal ao não revisar o Imposto Territorial Rural e o
anexo 6 do imposto de renda – o formulário da atividade rural –perpetua esta
situação.
Para piorar, a pecuária da Amazônia gera desmatamento e
queimadas, que tornam o Brasil um dos campeões do aquecimento global. Setenta e
cinco por cento da contribuição brasileira ao efeito estufa vem do churrasco
pirotécnico amazônico. Você cidadão gasta mais carbono ao comer seu bifinho que
com o uso de veículos automotivos ou passagens aéreas.
O governo insiste
nesta conversa de controlar desmatamentos e queimadas e se comove no teatro de
anunciar as cifras do ano. No entanto, esta medição é como verificar a febre do
doente. A causa, mesmo, ninguém discute, especialmente em currais eleitorais de
um Congresso Nacional, Assembléias Estaduais e Câmaras Municipais eminentemente
pró-pecuaristas.
A verdadeira causa da destruição da Amazônia é o forte
crescimento do consumo de carne no último meio século. E o Brasil oferece a
Amazônia para ser o grande curral do planeta. Além do sambódromo do Rio e do
bumbódromo de Parintins, agora a Amazônia é o bifódromo do Planeta.
A
Amazônia tem água barata, tem terra barata, tem mão-de-obra barata e tem pouca
fiscalização. Tanto faz se a produtividade é baixa (0,7 cabeças/hectare e menos
de 100 kg de proteína animal/ha/ano), se é preciso usar agrotóxico no lombo dos
bois, se a biodiversidade e a sociodiversidade são ignoradas, ou se o boi
destrói as micro-bacias e polui o maior manancial de água doce do Planeta. Não
há, em toda a Amazônia uma única propriedade de pecuária que cumpra 100% da lei
brasileira.
Provavelmente, o que se queima de madeira, o que se desvia na
festa da evasão fiscal, o que se perde por não se contabilizar e cobrar pelos
serviços ambientais, e o que se desperdiça de recursos naturais, seja muitas
vezes superior aos ridículos R$ 10 bilhões gerados pela pecuária bovina na
Amazônia (comparem com os números da crise financeira global).
Além do
mais, como somos um países de generosos, nossos bancos oficiais, o BNDES e o
Banco da Amazônia à frente, com o dinheiro suado do contribuinte, são pródigos
em ceder créditos vantajosos aos pecuaristas e frigoríficos (são mais de R$ 2
bilhões) e nosso governo apóia o IFC – International Finance Corporation (do
Banco Mundial), quando empresta dinheiro (US$ 90 milhões) ao grupo Bertin para
transformar a Amazônia em bife. Este grupo é tão sofisticado que, recentemente,
foi multado por não conseguir sequer controlar seus efluentes das modernas
instalações industriais do matadouro de Marabá, Pará.
As próximas
gerações não nos perdoarão por tamanho desprezo pela Amazônia e seus habitantes.
Seremos aquela geração que preferiu trocar a Amazônia por mais um bifinho e um
saco de carvão. Quando a próxima geração chegar teremos perdido metade, ou mais,
da Amazônia porque temos preguiça de tratar o assunto com seriedade.
O
que devem pensar de nós o restante do mundo quando nos vêem, pacientemente,
transformar a maior floresta tropical do Planeta em picadinho? Será que não
pensam assim: como podem os brasileiros, tão alegres no Carnaval, tão
simpáticos, tão bonzinhos e inteligentes, aceitar entregar a Amazônia por tão
pouco?
Como compreender que emprestamos imensas terras para zelosos
fazendeiros, que deveriam servir como imensos castanhais e fontes eternas de
madeira, e no fim do dia, há só currais e bois marcados a ferro com seus
nomes.
Como entender a política de reforma agrária que transforma mais de
10 milhões de hectares de 3,6 mil projetos de assentamentos da Amazônia em
pastos para boi, serrarias ilegais e carvoarias, e mantém na miséria a imensa
maioria dos assentados?
Aceitemos nossa reles condição: somos os escravos
da pecuária. A pecuária é o principal motor de destruição do Brasil. Foi ela que
destruiu a Mata Atlântica, o Cerrado, a Caatinga e agora devora a Amazônia. O
estado de São Paulo, famoso por seus canaviais, ainda tem mais terra com boi que
para cana. Toda a agricultura do Brasil não ocupa mais que 58,1 milhões de
hectares (49 milhões de hectares em grãos (culturas anuais), 6,7 milhões em
cana, 2,4 milhões ha em café (IBGE, jan. 2008), outros 5 milhões de hectares são
com outras culturas (mandioca, algodão etc.) e há 7 milhões de hectares em
florestas plantadas. Conclusão: o Brasil ocupa menos de 70 milhões de hectares
com agricultura (8,2% do território nacional), enquanto o carrapato da pecuária
se refestela na sua incompetência e já engole 25% do seu e do meu Brasil e agora
quer avançar sobre a Amazônia e tomar 50% do Brasil.
Em termos mundiais a
situação é ainda mais grave. A pecuária (e a área necessária para produzir
comida pra boi) ocupa 40% das terras aráveis do Planeta (FAO, 2007). Isto porque
a humanidade escolheu o boi como uma de suas principais fontes de proteína
animal. O boi, o pior conversor de energia que existe, precisa comer 7 kg de
cereal para produzir 1 kg de carne. A comida que alimenta os boizinhos daria
para saciar a fome de todo o planeta e sobraria arroz para o dia
seguinte.
O problema é que o consumo de carne cresce de maneira
astronômica. Enquanto o argentino e o norte-americano comem mais de 60 kg de
carne bovina por ano, o brasileiro come mais de 36 kg e o chinês, magros 5
kg/ano. Se os chineses desejarem (e querem muito) dobrar seu consumo de carne,
não há boi no planeta para sacia-los e aí teremos que decidir: vamos alimentar
bois para os pratos chineses ou vamos tentar manter o angu do planeta Terra
funcionando?
E o Brasil, continuará a ser este grande curral, de fartas
churrascarias ou faremos algo mais inteligente e sustentável sobre nosso futuro?
É sobre esta Amazônia que precisamos discutir: a Amazônia sustentável, não a dos
pecuaristas, pistoleiros, grileiros e ladrões de madeira: até quando seremos
reféns desta porteira aberta /fronteira aberta? Até quando vamos ignorar o que
se passa dentro das milhares de fazendas, onde tudo pode?
Será que não
somos mais competentes em gerar renda por meios mais sustentáveis, a partir de
sua biodiversidade, sociodiversidade e recursos naturais e produzir mais que R$
10 bilhões?
Se só a Vale, uma única empresa privada, pretende investir R$
20 bilhões na Amazônia em 5 anos, será que nós, brasileiros, não conseguimos
decidir o nosso futuro?
Será que não conseguimos uma combinação de
atividades sustentáveis a partir da floresta em pé, da recuperação das áreas
degradadas com culturas permanentes, de uma aqüicultura cabocla, de uma
mineração inteligente e de ecoturismo para valer?
O Brasil sairá da
adolescência quando perceber que o boi é o carrapato que suga todas as nossas
forças. O boi é o carrapato que faz um verdadeiro carnaval com a gente: tem mais
boi que gente neste Brasil.
Está na hora de reaprendermos a ser
brasileiros. Cidadania começa em nossos pequenos atos: o que decidimos comer,
por exemplo. Está na hora de pilotarmos o carrinho de supermercado cientes de
que cada escolha nossa constrói ou destrói a Amazônia. Se para o dono do
supermercado tanto faz de onde vem a carne, para você talvez seja diferente.
Pergunte, exerça seu direito de consumidor e cidadão.
Prepare a sua
fantasia para o próximo carnaval – de curupira, saci-pererê – xô boi feio, o
carnaval do ano inteiro - do açaí, do cupuaçú, do ecoturismo, da madeira
certificada, do turismo consciente, da Amazônia digna e respeitada. Adeus ao
carnaval do Brasil da boiada sem fim.
* João Meirelles Filho é Diretor Geral do Instituto Peabiru.
(Envolverde/Instituto Peabiru)