Tragédia amazônica

Justiça falha mais uma vez e deixa mandante do assassinato da Missionaria Dorothy Stang livre.

Unica defesa da Missionaria barbarizada foi uma Biblia Sagrada com a qual tentou se proteger dos tiros de seus algozes.

O julgamento do fazendeiro Vitalmiro Bastos de Moura, o Bida, livre das acusações de mandar matar a religiosa Dorothy Stang, em 12 de fevereiro de 2005, é mais uma história amazônica. Ou apenas um capítulo da trajetória deste mundo de fronteira. História de impunidade e de fim de mundo.

Ninguém acredita na inocência de Bida, condenado a 30 anos de prisão em maio de 2007, agora absolvido olimpicamente. Com direito a sorrisos e quase festa dentro da sala do Tribunal do Júri, ele saiu para a liberdade com o anúncio de que haveria festa para recebê-lo em Altamira.
Fui o primeiro jornalista a chegar a Anapu naquele sábado caótico para o Pará-Amazônia-Brasil, depois que a notícia se espalhou pelo mundo. Cheguei em missão do governo do Estado, junto com a Polícia Civil. Havia uma multidão na praça central da cidade, cuja avenida principal é a própria Transamazônica, de onde derivam travessas. O aglomerado era mais por causa daquele gigantesco helicóptero militar pousado milagrosamente numa espécie de anfiteatro, no centro da praça, onde desembarcou Marina Silva.

A ministra estava na casa de Dorothy, não muito longe dali. A chegada da polícia causou mais alvoroço. Do meio do povo, uma voz me chama. Quem, ali naquele lugar até então desconhecido pra mim, poderia me conhecer? - pensei. Era o dono da farmácia em frente à praça. Um conterrâneo! Vigiense tem em todo lugar, até em palcos onde se desdobram histórias como essa. Ele tinha um telefone. Era o que mais eu precisava naquele momento para passar as primeiras informações à Coordenadoria de Comunicação do governo.

Infelizmente os afazeres em nome do governo impediram-me de chegar até no local do crime propriamente dito. Não podia me afastar da polícia e do único computador com internet na localidade, que requisitei ao Banpará, ao lado da delegacia improvisada num prédio comum, sem cadeia; o único telefone era tão-somente um orelhão na parte externa, por onde a imprensa do Brasil inteiro se comunicava comigo e com o delegado Waldir Freire, que assumiu ser o porta-voz - alguém com autoridade policial tinha que assumir aquele papel. Era pelo mesmo telefone que eu me comunicava com a equipe da comunicação do governo, de plantão em Belém, no Palácio dos Despachos.

O corpo de Dorothy chegou na noite do sábado. Ficou no necrotério do hospital local. Legistas fizeram as primeiras tomadas de dados ali mesmo. Constataram os seis tiros. Eu fiz uma lista dos papéis, anotações diversas, identidade civil, quase nenhum dinheiro, listas de telefones manuscritas de Dorothy. E a Bíblia - única arma que ela teria levantado para enfrentar os pistoleiros.

Tudo retirado de uma pastinha surrada de congresso, que ela usava e com ela foi recolhido pelos policiais. Havia telefone de políticos, líderes, religiosos. Pessoas das relações pessoais e de ativismo da líder religiosa. Devo ter essa lista em algum arquivo de computador. Deve ter sido um adereço no relatório do inquérito policial. Agora são informações mais emudecidas ainda com o resultado desse julgamento. Dorothy vestia uma bermuda branca (estava muito enlameada) e camiseta de um movimento popular; calçava tênis e meia de cano curto rósea.

Foi uma cena pesada. O corpo de Dorothy ali, cheio de furos. Uma imagem tensa pela história que encerrava; objeto de uma outra história que, infelizmente, continua com capítulos como esse do julgamento que absolveu Bida. O corpo de Dorothy chegou em Anapu no fim da noite. Não atraiu muita gente ao hospital.

Só na madrugada de domingo é que chegaram os primeiros jornalistas, os fotógrafos Paulo Santos e Raimundo Pacó, vindos por Altamira. Viajaram noite e madrugada pela Transamazônica. Ficaram me azucrinando para fazer a foto do cadáver. Acabamos brigando (no bom sentido) para que não se potencializasse a imagem negativa. Foto de cadáver é sempre ruim, muito embora a imprensa tenha banalizado. Como editor de Polícia de O Liberal, nunca publiquei foto de cadáver. Em Anapu, não se tratava de um assassinato comum. Paulo Santos fez a foto que varreu o noticiário, sob minha concordância como assessor de imprensa do governo.

Não comemos naquela noite os ovos fritos com pão e Coca-cola que encomendamos numa padaria porque ficaram prontos na hora que o corpo de Dorothy chegou. Foi difícil engolir o que seriam sanduíches, depois de tudo. Aquela imagem da religiosa sobre a pedra fria de marmorite, ensangüentada, sublimou a fome e agravou minha insônia naquela na madrugada de domingo. Não lembro ter deitado num colchão velho, azedo, coberto com um florão de chita literalmente rasgado e remendado como aquele. Eu e o delgado, na mesma cama (era a que restava, uma só), não dormimos.

Chovia torrencialmente. Ficamos elucubrando teorias jornalístico-policiais, ele registrando no laptop da polícia algumas informações e especulações. Às cinco da manhã pulamos da cama. Sob a chuva e a escuridão da madrugada, os policiais civis e militares tomaram uma pick-up rumo ao PDS onde Dorothy Stang foi morta. Fizeram 40 km de uma estrada de terra lamacenta em quatro horas.

Retornaram só no fim da tarde daquele domingo com muitas certezas e algumas pistas que levariam à prisão do pistoleiro e ao mandante do crime. Afinal, era crônica de morte anunciada. Mais amazônica do que colombiana.

Foi um domingo tenso. No decorrer da manhã chegaram as equipes de televisão de Belém. A imprensa toda no meu calcanhar. O Brasil inteiro tentando falar com Anapu por um único telefone público. O ambiente chuvoso agravou ainda mais aquele cenário transamazônico vermelho de laterita lamacenta. Em Anapu não há hotel que se possa chamar de hotel. O banheiro e a privada ocupavam um cubículo ferruginoso - resultado da água quase intragável para o banho.

Muito menos há restaurante que se possa comer como num restaurante. Comemos um apelido de churrasco em frente a um posto de gasolina. E de lá vi uma cena curiosa: frangos tomando banho - o motorista de um caminhão gaioleiro, cheio de frangos, molhava as aves com uma mangueira. Era para amainar o calor.

O ar de Anapu naquele fim de semana tinha o calor das tragédias amazônicas que conhecemos com começo (ameaça), meio (mais ameaças, denúncias, inquéritos policiais, cobranças, às vezes nenhuma providência) e fim (quer dizer, assassinato). Tragédias desde os tempos dos colonizadores portugueses que escravizavam índios e não raro os matavam. Só mudaram os personagens, mas os índios continuam na fita.

Agora, o palco se chama Raposa/Serra do Sol. Religiosos também continuam em cena. Nos episódios do século XVII, principalmente a presença de Antônio Vieira; neste começo do terceiro milênio, Dorothy foi a personagem principal mais badalada, mas outros coadjuvantes igualmente cristãos já foram massacrados e outros estão ameaçados. Passado e presente com um só viés: a ocupação e a exploração de riquezas; das terras, minérios e madeiras. E gentes.

Depois de passar mais releases (sim, Anapu já tinha pelo menos o Banco do Pará com internet, naquela época) para os jornais de Belém e para a Coordenadoria de Comunicação, que se encarregou de abastecer a imprensa do resto do país e as agências internacionais, enfrentamos a Transamazônica, por meio de chuva e muitos precipícios. Um roteiro de 100 quilômetros até Altamira. Os policiais dormiam, tão cansados quanto eu. Mantive-me acordado, junto com o motorista, é claro.

Histórias de assaltos na Transamazônica também são comuns, ouvi dizerem em Anapu. A certa altura, ladeira acima, luzes de carro parado. Acordei os policiais. Era o caminhão de frangos engatado num lamaçal. Só sairia na manhã seguinte, certamente com menos frango, como previra o motorista na sua parada para refrescar sua carga, antes de continuar a viagem para Altamira.

Tudo que a imprensa do mundo todo publicou nas primeiras horas da cobertura do caso Dorothy Stang, a partir de Anapu, teve como fonte os relatórios que enviei e que foram distribuídos pela Agência Pará, da Coordenadoria de Comunicação do Estado. Do domingo em diante, a imprensa nacional já estava entre Anapu e Altamira. Na manhã de segunda-feira, Altamira tinha lá sua comoção.

Mas, a pensar que Bida seria recebido, agora em liberdade, com festa, compreende-se porque a cidade inteira não parou para o segundo velório dos tantos que Dorothy teria. Houve comoção, é verdade principalmente de políticos, sindicalistas, autoridades que acorreram para lá. Não foram poucas. Dando assistência aos policiais, perdi de vista a ministra Marina.

Não me julgo mais capaz do que um juiz, advogados de defesa e membros do Júri para dizer que o fazendeiro Bida é ou não é culpado. Porém, qualquer mortal sabe que o último julgamento não parece justo à sensibilidade das pessoas comuns. As evidências são cristalinas no inquérito policial.

O pistoleiro Rayfran das Neves, o "Fogoió", escondeu-se, depois do crime, na fazenda de Amair Feijoli da Cunha, o "Tato" (condenado a 27 anos de prisão como intermediário do assassinato, e que teve a pena reduzida por colaborar com o processo) - apurou de imediato a polícia.

A história de que "Fogoió" agiu de moto-próprio, sem ser dono de um só palmo de terra, sem derrubar uma árvore, sem ter invadido assentamento - nada que justificasse a tese de eventual intriga com a vítima - mas apenas o currículo de pistoleiro, é diatribe advocatícia.

Os defensores do fazendeiro podem ser inteligentes, tecnicamente capazes para livrá-lo da cadeia, mas a sociedade não engole que um ano depois de ter sido condenado a 30 anos de reclusão, o mesmo réu conseguiu provas capazes de provar sua inocência. Bem, os tribunais estão cheios de julgamentos como esse.

O fato é que alguém mandou matar a religiosa norte-americana. A polícia e a promotoria recolheram provas cabais. E alguém tem que ser punido além do pistoleiro pé-rapado, o "Fogoió", e seu comparsa Clodoaldo Carlos Batista, o "Eduardo", que pegou 17 anos, embora não tenha feito disparos.

A Transamazônica (de resto a Amazônia) é tão cheia de colonos, agricultores, religiosos e posseiros quanto de fazendeiros, grileiros, gatos, usurpadores de incentivos fiscais e de outros recursos públicos. E mais: pistoleiros e mandantes de crimes, personagens de velhas e novas histórias da ocupação. Tudo com começo, meio e fim (sempre com assassinatos) contra quem se levanta pelos mais pobres desses enredos.

*Nélio Palheta é jornalista e foi coordenador de Comunicação Social do governo do Pará.
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