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A Constituição Federal de 1988 começou a reverter um processo multissecular de exclusão social e de violência física e cultural perpetrados sobre os povos originários existentes no território em que se inventou e construiu o Brasil desde 1500, constata o etnoarqueólogo.
Para o professor José Otávio Catafesto, a Constituição Federal de 1988 garantiu um novo marco teórico e formal na condução da causa indígena, gerando um novo projeto de Brasil, mas que precisa avançar na sua implantação. “Se esse marco for implantado na íntegra, isso vai transformar futuramente o Brasil numa Confederação Internacional de coletivos ameríndios, quilombolas, negros e de outras ascendências étnicas integrados neste vasto território gerenciado pelos poderes do nosso Estado, reconhecendo o direito de autodeterminação desses grupos, confrontando o controle ideológico das igrejas e a hegemonia da lógica do mercado”, sustenta José Otávio Catafesto, em entrevista por e-mail à IHU On-Line.
“Não foi clarividência ou lucidez intelectual dos políticos brasileiros que reconheceram direitos especiais dos ameríndios aos seus territórios tradicionais, à preservação de seus usos e costumes e à sua autodeterminação. Isso resulta da pressão direta exercida por eles enquanto sujeitos coletivos, protagonistas de seus destinos desde muito tempo, embora os civilizados não tivessem capacidade mental e visual desse reconhecimento”, argumenta o professor.
“A Constituição Federal de 1988 é um avanço, mas a jurisprudência que a efetiva é muito lenta e se embate com os interesses privados arraigados nas agências do Estado e que permitiram a alienação histórica do patrimônio indígena, da exploração dos corpos indígenas (pelo sexo e pelo trabalho forçado) e de outras formas de subordinação”, critica.
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José Otávio Catafesto de Souza é etnoarqueólogo, pesquisador e professor interessado por temas relacionados às questões dos povos originários do Mercosul. É formado em História pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul — Ufrgs, onde também realizou mestrado e doutorado em Antropologia Social. Atua como professor adjunto na mesma universidade, onde coordena o LAE — Laboratório de Arqueologa e Etnologia, que desenvolve projetos de pesquisa sobre Territorialidade Mbyá-Guarani, Etnoarqueologia Ameríndia e Quilombola e Avaliação dos Impactos de Projetos de Desenvolvimentosobre coletivos rurais.
O professor proferirá a conferência “Reconhecimento de culturas, direito à terra e à Constituição Federal hoje: avanços e retrocessos” no dia 28-10-2013, das 20h às 22h, na Sala Ignacio Ellacuría e Companheiros, no IHU. O evento é parte do Ciclo Constituição 25 Anos: República, Democracia e Cidadania.
Confira a entrevista:
IHU On-Line – Em termos socioculturais, o que significa a definição Constitucional de 1988 de que a sociedade brasileira é definida como pluriética e multicultural?
José Otávio Catafesto - Representa um novo marco formal e teórico de relação a ser implantado entre os poderes do Estado Brasileiro e os grupos formadores da comunhão nacional, um novo projeto de nação enquanto inter-nações relacionadas. Se esse marco for implantado na íntegra, isso vai transformar futuramente o Brasil numa Confederação Internacional de coletivos ameríndios, quilombolas, negros e de outras ascendências étnicas integrados neste vasto território gerenciado pelos poderes do nosso Estado, reconhecendo o direito de autodeterminação desses grupos, confrontando o controle ideológico das Igrejas e a hegemonia da lógica do mercado.
A escolha correta de conceitos é fundamental para entender e situar a conjuntura nacional e internacional da legislação que reconhece e dá direitos especiais a grupos específicos antes marginalizados, outrora suprimidos e silenciados na formação dos Estados e das nações modernos. Os intelectuais latino-americanos preferem falar atualmente de interétnico e intercultural em lugar do pluriétnico ou multicultural, pois não se trata de opções de comportamento ou mistura heterogênea de traços culturais isolados, mas sim de constantes embates de entendimento e de negociação que se fazem nas fronteiras entre grupos e agentes que rivalizam por interesses divergentes dentro de um mesmo espaço geopolítico.
Multiculturalismo norte-americano
O multiculturalismo norte-americano dilui o reconhecimento dos conflitos existentes em nome de um universal suposto como redentor das diversidades e unificador da multiplicidade. A racionalidade utilitarista é erroneamente apresentada como algo aquém e além da cultura, supostamente capaz de neutralizar os parâmetros culturais e étnicos em nome do progresso tecnológico tido como suposto fim último para todos os povos e civilizações.
No Brasil, o multicultural tem sua equivalência na teoria da miscigenação, na fábula das três raças, em que índios e negros aparecem como personagens apenas do passado e que estariam representados hoje apenas por alguns traços na fisionomia, na culinária ou nas crenças populares.
O interétnico restitui o reconhecimento de grupos ameríndios e quilombolas enquanto sujeitos coletivos atuais, enquanto protagonistas de seu destino futuro e enquanto grupos diferenciados na “comunhão” da sociedade global.
A civilização ocidental, de que o Brasil faz parte, surgiu fundamentada na intolerância completa ante as diferenças culturais e religiosas. A Europa apropriou-se de grandes realizações científicas e tecnológicas das culturas árabes (álgebra, universidades, bibliotecas, arquitetura, etc.) para depois perseguir e exterminar esses “mouros” pelas Cruzadas e guerras justas contra hereges.
Nativos
Os nativos americanos também foram completamente reduzidos à condição de animalidade e apenas tratados pelo dispositivo lógico da diferença negativa (os índios são a falta daquilo que nos constitui como humanos, eles são “sem fé, sem rei, sem lei”). Assim, justificou-se a conquista militar e a conquista espiritual pela catequização, pelo extermínio cultural (etnocídio) em nome dos valores nobres e intolerantes da civilização.
No final do século XIX, os militares adotaram os princípios do positivismo e taxaram os ameríndios enquanto mentalmente limitados por sua condição “selvagem”, justificando a tutela dos índios como se fossem crianças a serem guiadas pela ordem e pelo progresso da nação, reduzidos à condição de trabalhadores desqualificados e apenas parte do exército capitalista de reserva.
Portanto, a Constituição Federal de 1988 começou a reverter um processo multissecular de exclusão social e de violência física e cultural perpetrados sobre os povos originários existentes no território em que se inventou e construiu o Brasil desde 1500.
Vinte e cinco anos é um tempo ainda curto para dizer se os avanços pretendidos estão ocorrendo de fato na própria estrutura de nossa sociedade, ainda mais acompanhando a mobilização contrária de ruralistas, de agentes do agronegócio e de pequenos agricultores. Caberá ao futuro mostrar se efetivamente os direitos diferenciados e de soberania serão plenamente reconhecidos aos ameríndios dentro do Brasil, confrontando os interesses privados e utilitaristas instituídos com a conivência dos agentes do Estado brasileiro.
IHU On-Line – Considerando o déficit histórico-social do Brasil com seus povos originários, que avanços à cidadania ou à autonomia destas populações a Constituição de 1988 promoveu?
José Otávio Catafesto - O maior avanço foi consolidar, de vez, a plena cidadania a todos os ameríndios habitantes do território nacional. Antes, os índios eram tratados como semicapazes (como o são os órfãos menores de idade). Hoje, a diferença não pode ser ainda pensada como uma questão de inferioridade racial ou de suposto limite mental dos índios como antes eram tratados oficialmente, pois a legislação brasileira incorporou as contribuições conceituais da antropologia, ao tratar das diferenças culturais pela perspectiva dos processos de identificação étnica.
O conceito de “cidadania” teve que se alargar ao ponto de corromper seu sentido original, daquele sentido urbanocêntrico instituído pela polis grega e pela urbe romana que servem ainda de modelo à nossa civilização brasileira (como analisou Sérgio Buarque de Holanda em Raízes do Brasil). O modelo original de democracia foi criado sobre a escravidão, e a cidade tornou-se tentáculo de controle e de submissão entre as classes sociais, excluindo os trabalhadores pobres dessa situação cidadã.
Hoje, mesmo os índios arredios e isolados que ainda estão nos confins da selva amazônica, desconhecidos mesmo dos antropólogos, podem permanecer assim, sem contato com as agências de estado, de igrejas e do mercado e esse é um direito inalienável de sua cidadania. Antes, os representantes do Estado viam-se na missão de salvar os índios de suposta animalidade e da condição primitiva trazendo-os à civilidade. Hoje, se eles fogem constantemente de qualquer contato, se eles continuam escapando de exploradores, comerciantes, militares e religiosos, o Estado Brasileiro tem o dever de resguardar essa forma de manter sua autodeterminação.
Citei um caso extremo oposto para mostrar que, hoje, ser selvagem (habitante da selva) é uma das formas de exercer a cidadania brasileira, mesmo que os selvagens nunca tenham conhecido qualquer cidade ou saibam o que seja Brasil. Mas a quase totalidade dos indígenas brasileiros convive com as cidades desde antes do nascimento. Em verdade, quase todas as cidades do litoral brasileiro foram criadas sobre antigas aldeias ameríndias (Salvador, Rio de Janeiro, São Vicente, Santos, Porto Alegre, etc.), e os índios construíram cidades (como no caso das Missões jesuíticas) e estão na origem da história delas e dos caminhos que as unem.
Fim dos índios
Assim, a condição urbana não é contraditória com a permanência do indianato ou da indianidade, ao contrário do que apregoavam os militares e intelectuais positivistas. Na década de 1980, o ministro Rangel Reis, integrado à ditadura militar, apregoava que até o ano 2000 não existiriam mais índios no Brasil, inicialmente transformados em camponeses e depois emancipados como citadinos. Nada se mostrou mais falacioso, até mesmo para os antropólogos que também publicavam veredictos pessimistas quanto ao destino dos povos ameríndios. Entretanto, foram superados os picos de mortalidade infantil para muitas etnias indígenas brasileiras desde a década de 1950 e muitas chegam hoje a dezenas de milhares de representantes (como os Ticuna, Kaingang, Guarani , etc.).
Crítica pós-colonial
Em verdade, os coletivos ameríndios sobreviveram ao ultimato de sua extinção formal e permaneceram existindo mesmo que o Estado brasileiro não tivesse capacidade de reconhecer sua existência ou mobilizasse esforços para resguardar seus direitos diferenciados. Foi preciso que a antropologia da África e das Américas formulasse os princípios da crítica pós-colonial, para que fosse rompido o véu da crença que justificava o extermínio da diversidade pela utopia de construção de uma sociedade homogênea, massificada e globalizada. As minorias passaram a sair da penumbra e do silêncio, grupos considerados extintos ressurgiram das cinzas. Trata-se de uma verdadeira “viagem de volta” (como avalia o antropólogo João Pacheco de Oliveira), como acontece com os Pataxós, os Pancararus e tantos outros grupos do Nordeste brasileiro. Elas abalaram nossa ideologia política de que a história é um processo inexorável de perda da tradição e de uniformização cultural.
Protagonismo
Com isso, quero enfatizar mais o protagonismo ameríndio e a força de mobilização étnica dos grupos originários como fator fundamental a condicionar o processo constituinte na década de 1980 e culminar com a inclusão dos artigos 231 e 232 da CF de 1988. Não foi clarividência ou lucidez intelectual dos políticos brasileiros que reconheceram direitos especiais dos ameríndios aos seus territórios tradicionais, à preservação de seus usos e costumes e à sua autodeterminação. Isso resulta da pressão direta exercida por eles enquanto sujeitos coletivos, protagonistas de seus destinos desde muito tempo, embora os civilizados não tivessem capacidade mental e visual desse reconhecimento.
Hoje, os índios estão escolarizados e suas lideranças representam suas coletividades, onde alguns já são diplomados em cursos superiores, atuam como profissionais nas aldeias ou nos centros urbanos ou exercem cargos legislativos ou executivos. Eles já não precisam de mediadores brancos que determinem seu destino de forma unilateral ou apliquem critérios arbitrários de políticas públicas.
A Constituição Federal de 1988 é um avanço, mas a jurisprudência que a efetiva é muito lenta e se embate com os interesses privados arraigados nas agências do Estado e que permitiram a alienação histórica do patrimônio indígena, da exploração dos corpos indígenas (pelo sexo e pelo trabalho forçado) e de outras formas de subordinação. O reconhecimento da cidadania dos ameríndios exige e o Estado brasileiro empenhe-se na condução de políticas e projetos especiais nas áreas de serviços básicos como são a garantia à terra, ao direito de reproduzir suas formas tradicionais de sustento mesmo dentro de projetos de desenvolvimento, de terem atendimento de saúde em harmonia com seus sistemas tradicionais de cura, de terapia e de profilaxia. Da mesma forma, os programas de saneamento e de habitação em terras indígenas devem se adaptar aos usos e costumes nativos. Há ainda a demanda de construção de escolas diferenciadas dentro das comunidades indígenas, com ensino bilíngue.
Em todas essas áreas, os avanços são muito lentos, pois esbarram em rotinas coloniais entranhadas nos departamentos e agências do Brasil. A mudança necessária é ainda mais difícil, a começar pela necessária mudança de mentalidade dos prestadores de serviço em relação à posição social inferior dos índios, sempre ávidos em reiterar posturas paternalistas ou assistencialistas frente ao suposto incapaz.
Tudo isso ainda sem referir a dimensão do déficit tratada na pergunta, que eu prefiro referir como “dívida histórica”. Mas, se a aplicação de políticas especiais já é uma grande dificuldade no Brasil, o que ocorrerá no processo se ainda contabilizarmos todos os prejuízos que os índios sofrem no Brasil desde sua existência? O montante seria tão absurdo e o investimento tão volumoso que implicaria numa guerra civil se essa dívida fosse reclamada em sua plenitude. Os índios não conseguem reconhecer pequenas áreas em seu direito, o que seria se eles reivindicassem seus antigos territórios de amplitude continental. São Miguel das Missões, São Borja, São Luiz Gonzaga e Porto Alegre deveriam ser devolvidas aos Guarani, por exemplo.
Penso que a discussão sobre os direitos originários deveria ser pautada pela consciência de que os índios estão reclamando migalhas daquilo que uma justiça histórica justificaria reivindicar de forma integral. Os índios não querem o Brasil inteiro, embora tenham direito de reclamá-lo exigindo que os descendentes dos europeus voltem para a Europa (assim argumentam algumas lideranças indígenas).
IHU On-Line – É possível considerar que a Carta Magna retirou o foco do eurocentrismo atribuindo mais valor aos indígenas na construção do Estado-nação brasileiro? Em que medida?
José Otávio Catafesto - A Constituição Federal de 1988 não é um marco de derrocada do eurocentrismo ou do norte-americanismo (seu equivalente mais recente) que ainda conduzem o ideário da elite política nacional, talvez apenas uma reciclagem ideológica desse mesmo etnocentrismo frente à pressão social gerada pelas minorias oprimidas dentro do Brasil, sejam indígenas ou de outras origens. Trata-se de uma flexibilização ideológica que reconhece a diversidade social e cultural existente dentro de território brasileiro, mas o ideal positivista continua estampado em nossa bandeira e a civilização urbanocêntrica continua a prosperar hegemônica sobre campos e florestas, tornando as zonas rurais em áreas de extração de recursos e de produção de energias em prol do progresso urbano industrial.
O eurocentrismo é intrínseco à construção nacional, mas mesmo os ideais políticos dos direitos humanos foram gerados pelo Iluminismo, a partir do conhecimento que os intelectuais europeus tiveram sobre a igualdade social e sobre a liberdade canibal dos indígenas brasileiros. Afonso Arinos já defendeu a tese de que os europeus encontraram, entre os ameríndios do litoral brasileiro, exemplos reais de suas utopias políticas, demonstrando possível a existência de uma sociedade justa e igualitária.
Os ideólogos brasileiros só assumiram o reconhecimento da especificidade dos direitos indígenas por pressão internacional, pois os intelectuais brasileiros sempre se movem por aquilo que os intelectuais do “Primeiro Mundo” dizem deles. Santo de casa não faz milagre, diz o ditado popular. Assim, a assimilação de elementos da perspectiva cultural ameríndia pelos políticos nacionais não se faz de maneira direta, mas apenas porque os europeus ou norte-americanos aprenderam com os nativos americanos (princípios de tolerância e de inconformidade com as injustiças sociais) e depois nos ensinaram tais saberes autóctones ameríndios incorporados à nossa civilidade brasileira.
Emancipação
Por outro lado, a ruptura trazida pela Constituição de 1988 é ainda mais radical do que apenas dar mais importância aos indígenas. O que ocorreu foi a emancipação dos índios e das coletividades indígenas que passaram a ser reconhecidos enquanto sujeitos de pleno direito, a começar pelo direito fundamental de autodeterminação e de protagonismo na definição de seus destinos específicos. Agora os índios devem ser respeitados em suas vontades e segundo suas tradições específicas, mas isso ainda é mais abstrato do que concreto na medida em que o avanço no reconhecimento dos direitos indígenas esbarra constantemente, atingindo interesses contrários de quem hoje está sobre a terra reivindicada, dos que controlam o sistema biomédico industrial, dos que produzem pelo sistema do agronegócio, dos que administram as escolas apenas enquanto agências de sequestro, como nos ensinou Michel Foucault .
Eurocentrismo
O eurocentrismo dos políticos e ideólogos brasileiros é evidente no próprio texto da Constituição Federal de 1988. A antropóloga Alcida Rita Ramos já detalhou o horror dos políticos ao longo da história nacional em relação à possibilidade de a autonomia indígena virar soberania política, gerando a criação de “estado dentro do Estado”. Este temor ainda é muito recorrente, e no texto de 1988 não se encontra, em nenhum momento, qualquer referência a “povo” ou “nação” indígenas. Os índios são tratados enquanto “comunidades”, conceito jurídico que não sustenta qualquer reivindicação de soberania política pelos indígenas.
Direitos
Mesmo considerando todos os limites, o saldo é muito positivo em favor dos direitos originários, e a Constituição de 1988 deve ser entendida como uma poderosa ferramenta jurídica em favor da luta pelo reconhecimento da existência diferenciada das centenas de etnias dentro do território nacional. A Carta Magna normatiza que os direitos originários merecem atenção diferenciada nas políticas públicas, em respeito aos parâmetros de suas tradições sociais e culturais. A Carta Magna é condizente com o limite daquilo que é aceitável na conjuntura atual, e não sabemos como o rearranjo das forças políticas, sociais e econômicas vão transformar a questão indígena nas próximas décadas no Brasil. Esperamos que sempre avançando.
IHU On-Line – A partir de 1988 houve mudanças na relação histórica de desrespeito à soberania dos povos indígenas? Em que casos a Constituição funciona apenas como uma mera carta normativa, mas sem efeito prático?
José Otávio Catafesto – O principal desrespeito à autodeterminação dos povos indígenas (sem entrar no melindre da soberania enquanto criação de estados dentro do Estado) é a recente suspensão dos processos demarcatórios em diversos estados do Brasil, em função da pressão ruralista e do agronegócio na formulação do Projeto de Emenda Constitucional — PEC 215 .
Antes, a ação indigenista oficial já era muito morosa em função da pressão política gerada pelos ocupantes atingidos. A Constituição estabeleceu o prazo de cinco anos para a completa demarcação das Terras Indígenas no Brasil. Hoje, 25 anos depois, apenas uma parte já foi regularizada e mesmo essa parte torna-se questionada, imobilizando as ações administrativas em curso.
É da essência de uma Carta Magna ser formal e genérica. Nela estão contidos os princípios que defendem os direitos originários, mas nela também estão presentes os princípios da propriedade privada e do direito de exploração econômica que se opõem ao pleno reconhecimento dos direitos indígenas. A Constituição esconde a formulação de princípios contraditórios, manipuláveis pelo jogo de forças contrárias e em favor dos direitos étnicos ameríndios, e é essa dimensão sociológica que devemos colocar no foco de nossa análise. A antropologia ensina que o direito formal sempre foi um palco de contendas entre interesses divergentes e os princípios normativos são apenas abstrações manipuláveis em ambas as direções.
IHU On-Line – A história mostrou que a economia — lógica dos colonizadores — “triunfou” sobre a cosmo-ecologia dos indígenas. O senhor pode explicar como funcionam estas duas ideias e em que medida a filosofia indígena poderia ajudar no resgate de valores mais humanos?
José Otávio Catafesto - Em primeiro lugar, é preciso romper com a falsa ideia de que nós fazemos parte de uma sociedade e de um momento histórico em que foram superados os limites da crença, da magia e da religião. Os outros povos são tidos como míticos e religiosos, enquanto nós — ocidentais — somos científicos e filosóficos. Não há nada mais falso do que isso. Todo ser humano é crente, mesmo que essa crença seja a ciência. No fundo de nossa filosofia e de nossa ciência ocidental também existe um substrato mítico e cosmológico que as fundamentam, tão metafísico quanto o dos povos fetichistas, ou mesmo ainda mais. Por outro lado, há profunda filosofia e verdadeira ciência entre os coletivos ameríndios, algo que é preciso cada vez mais reconhecer. Como propõe Marshall Sahlins em seu livro “Cultura na Prática” (Rio de Janeiro: Editora da UFRJ, 2007), é preciso desvelar a cosmologia nativa ocidental em seus princípios e em seus desdobramentos na ciência atual. A cosmologia ocidental contemporânea é herdeira e é extensão da cosmologia judaico-cristã gerada no ambiente árido dos desertos do Oriente Próximo, onde se deve ser precavido e se deve labutar para sobreviver. Realidades muito diferentes daquelas vivenciadas pelos nativos do ambiente tropical úmido americano.
Cosmologia ocidental
A cosmologia ocidental desqualifica a vida terrena e a torna uma agrura, uma jornada cheia de espinhos e de sofrimentos gerados por nossa condição natural enquanto pecadores. O postulado da falta intrínseca à nossa condição humana acoplou-se ao materialismo dos gregos e sua crença na Olímpia habitada por deuses antropomorfos. Desde então, o pensamento ocidental moveu-se pelo dualismo que contrapõe nossa condição corporal à nossa condição de seres pensantes, gerando a hegemonia da razão prática e o do utilitarismo. Isso promoveu o desencantamento crescente do mundo, ao ponto de permitir o amplo desabrochar da economia utilitarista do capitalismo, em que a natureza foi transformada em mera fonte de recursos e ao aproveitamento de nossas cosmologias antropocêntricas.
Economia e religião
Com o aparecimento da ciência econômica, desde o final do século XVIII, postulados religiosos tornaram-se verdades científicas e moldaram políticas e projetos que movem a produção, a circulação e o consumo de bens e serviços em nossa sociedade. O princípio formalista da economia — meios limitados para satisfazer necessidades ilimitadas — esconde sua matriz religiosa. Seríamos seres eternamente descontentes que aplacam a insatisfação da alma no consumo contínuo de recursos e nos pequenos prazeres mundanos. Esse fundo religioso está presente implícito, em muitas ideologias desenvolvimentistas, mesmo as da esquerda brasileira contemporânea.
O referido “triunfo” da lógica econômica ocidental é apenas a aparência ideológica de um sistema marcado por profundas contradições, sendo abalado em todo momento por sucessivas crises que o desestabilizam e que ameaçam sua continuidade no futuro a mais largo prazo. É preciso romper radicalmente, não apenas com o utilitarismo econômico que tem gerado o consumismo exacerbado e a degradação das condições naturais do planeta em prol do desenvolvimento humano, mas também e mais substancialmente é preciso relativizar a cosmologia ocidental que acredita ser apenas o homem filho eleito de Deus, e todo o resto do mundo ser reduzido apenas a objetos para sua utilização e completo deleite.
IHU On-Line – Recuperando a questão indígena à luz da Constituição, a transformação do território indígena em área inalienável da União resultou em maior liberdade/autonomia aos povos originários ou em maior controle estatal desses territórios?
José Otávio Catafesto - Por incrível que pareça, o dispositivo legal que reconhece as terras indígenas enquanto patrimônio da União não resultou em maior autonomia dos povos originários, da mesma maneira que também não produziu maior controle estatal desses territórios. Isso porque a questão da autonomia é pouco dependente das definições formais da legislação e muito mais da confluência de forças econômicas e históricas que atingem os territórios indígenas desde antes da construção do Brasil.
Por um lado, o assistencialismo tutelar legitimou que militares e administradores leigos tomassem conta da gestão do patrimônio indígena (terras e seus recursos naturais) ao longo de toda a república, fazendo os índios se submeterem à civilização, impondo o regime disciplinar, aplicando a pedagogia do trabalho e explorando os recursos em proveito particular. No sul e centro-oeste do Brasil, as terras indígenas fizeram prosperar os municípios onde elas estão situadas, gerando divisas diversas ao longo da história; desde o ciclo de extração da erva-mate, passando pela exploração madeireira, de criação de gado nos campos que substituíram as florestas e, finalmente, submetendo as terras tradicionais dentro do ciclo de produção agrícola de monocultura de exportação e pelo uso intensivo de insumos químicos e industriais.
Exploração econômica
É assim que se explica a origem dos arrendamentos das terras indígenas para particulares no sul do Brasil, prática estimulada pelos próprios agentes do Estado responsáveis pela administração desses bens da União. Depois que os arrendamentos foram coibidos pelos poderes públicos a partir da década de 1990, agora eles estão camuflados pelo financiamento de lavouras indígenas por particulares em contratos escusos. Tudo isso é contrário à autonomia dos povos indígenas, ainda que uma pequena elite indígena conivente com a exploração de seus patrícios étnicos seja economicamente beneficiada, produzindo a criação de classes sociais dentro das terras indígenas.
Por outro lado, isso demonstra que o controle estatal não promoveu a proteção, mas capitaneou a exploração econômica e a degradação ambiental das terras indígenas, servindo de fonte privilegiada para enriquecimento de particulares ou próprios sobre um patrimônio que deveria ser protegido em prol de todos os cidadãos dentro da União Nacional. Mesmo a soberania nacional, baluarte dos ufanistas e defensores da nação brasileira, é anulada dentro de muitas terras indígenas na Amazônia, onde os índios falam o inglês, e não o português, pelo convívio que possuem com estrangeiros que se infiltraram nas aldeias e se tornaram agentes de empresas multinacionais encravadas em território nacional. Terras Indígenas onde até o exército não entra, em respeito à reivindicação de fatias do território em proveito exclusivo de empresas estrangeiras.
De qualquer maneira, seja para os exploradores locais, seja para os agentes oficiais do Estado ou para os empreendedores capitalistas internacionais, do ponto de vista dos índios eles sempre estão perdendo. Sabem apenas que são todos “brancos”, independente da religião, da nacionalidade ou da ideologia.
Não quero, entretanto, ser injusto e não reconhecer que muitos indigenistas, militares e particulares ajudaram a construir um quadro diverso em certas situações pontuais, abnegados que conseguiram refrear o perfil etnocida do Estado brasileiro, obtendo conquistas. Isso é exemplificado pelo trabalho do próprio Marechal Rondon , dos irmãos Villas-Boas (na criação do Parque do Xingu), e, no Rio Grande do Sul, expoentes que deixaram seu nome na história do reconhecimento das Terras Indígenas, como foi Torres Gonçalves na Gestão das Terras Públicas do Estado nas primeiras décadas do século XX.
Autonomia
Portanto, a autonomia dos índios é uma questão ainda independente da definição formal das terras indígenas enquanto patrimônio nacional, mas ela tem consequências que se podem desdobrar fundamentais ao presente e ao futuro dos coletivos ameríndios. Disse que “ainda não”, exatamente porque antes se devem reverter as formas mais radicais de dominação regional estabelecidas sobre as populações indígenas, como exemplificam as situações dramáticas vividas pelos índios Kaiová no Mato Grosso e dos Guarani e Kaingang nos estados do sul do Brasil.
IHU On-Line – De que forma dialogam a Constituição de 1988, a Convenção 169 da OIT, que reconhece a obrigação dos países de recompensarem o prejuízo histórico aos povos indígenas, e a Declaração da ONU em prol dos direitos indígenas, garantindo autodeterminação, autonomia e autogoverno? Como isso pode se efetivar na prática?
José Otávio Catafesto – Será preciso que o terror sentido pela inteligência brasileira ante a criação de “estados dentro do Estado” seja ultrapassado e substituído por parâmetros políticos mais lúcidos e flexíveis, com o reconhecimento pleno da autodeterminação dos povos indígenas sem que isso seja entendido como ameaça à soberania nacional. O que a autonomia indígena ameaça são os podres poderes estabelecidos subjacentes ao discurso ufanista da soberania.
Nunca o território nacional foi tão alienado por empresas multinacionais quanto no período da ditadura militar, isso camuflado pelo ufanismo nacionalista dos intelectuais do exército.
É preciso divulgar que os índios são brasileiros por opção, e não sei de nenhuma liderança ou de qualquer coletivo ameríndio que esteja defendendo emancipação política do Brasil. Os índios possuem orgulho de fazerem parte do Brasil e dizem serem os primeiros e verdadeiros brasileiros.
Do ponto de vista conceitual, retorno à inexistência de qualquer referência constitucional dos índios enquanto sujeitos coletivos para além de identidade comunitária. O uso apenas de “comunidades indígenas” foi intencional pelos constituintes, exatamente porque no direito internacional dizer povo ou nação pressupõe o reconhecimento de soberania inclusive territorial para um grupo politicamente organizado em sua autonomia.
Embate silencioso
É esse embate silencioso que se trava nos bastidores da política brasileira e isso explica porque o Congresso Nacional demorou e demora na aceitação e assinatura dos instrumentos jurídicos internacionais que declaram abertamente os ameríndios enquanto “Povos”, com direito de autogoverno e autodeterminação. A aceitação nacional dos princípios internacionais fará romper, definitivamente, com as rotinas coloniais que perduram dentro das instituições públicas, sobre e dentro das terras indígenas. No entanto, o agronegócio, ruralistas, pequenos agricultores e empreendedores imobiliários estão mobilizados na alteração do texto constitucional, no sentido de desmontar as conquistas territoriais, ainda que parciais, obtidas pelos coletivos ameríndios.
Utopia política
Assim, a efetivação prática de políticas compensatórias, o reconhecimento pleno dos direitos sobre as terras tradicionais, de autogestão e de autogoverno aos coletivos ameríndios são princípios da utopia política contemporânea internacional, formalizados como demanda pelos organismos multilaterais que exercem pressão para que os diversos países a adotem. Por outro lado, a inteligência política nacional balança na direção de neutralizar a ruptura com as formas de dominação e de “simetrização” (busca na igualdade de direitos enaltecendo as diferenças) pretendida pelas minorias indígenas.
De qualquer forma, mesmo a não efetivação das obrigações formuladas pela OIT ou pela ONU não representa fracasso no Brasil, apenas demonstra o quão arraigadas são as estruturas eurocêntricas e etnocidas que achatam os coletivos indígenas no país até a atualidade. Os regramentos internacionais são fundamentais, porque eles podem e estão sendo apropriados pelos grupos indígenas como canal de pressão internacional para refrear as formas locais e regionais de dominação que se abatem sobre os coletivos ameríndios.
IHU On-Line – Que desafios estão postos à elaboração e efetivação de políticas públicas voltadas aos povos originários? Como a antropologia pode ajudar neste processo?
José Otávio Catafesto - São desafios hercúleos, usando uma expressão que faz reverberar as origens gregas da civilização brasileira. Em cada área, em cada instituição surgem sucessivos desafios a serem vencidos e transpostos. Alguns já o foram; outros, mais vultosos, precisam ainda acontecer. Mas não se pode fantasiar que a implementação de políticas especiais seja eficaz em curto prazo, pois existem preconceitos impregnados na mentalidade dos gestores do país, mesmo com toda a boa intenção e boa vontade.
Assim, é preciso interferir diretamente na formação dessa nova mentalidade de tolerância entre os grupos étnicos e o investimento deve ser pesado na área da educação infantil e juvenil. Não adianta a CF de 1988 reconhecer os direitos originários, e os juízes que decidem os processos indígenas serem intelectualmente limitados por esquemas eurocêntricos e por teorias ultrapassadas que reduziam os índios ao patamar de uma semianimalidade. É preciso que as novas gerações cresçam em ambiente de maior tolerância, para que sejam profissionais e gestores públicos capazes de concretizar os princípios do respeito e do reconhecimento da diversidade social e cultural.
Avanços
Na área de educação esse processo já tem importantes avanços, como exemplifica a obrigatoriedade do ensino, desde 2008, de conteúdos de história e de cultura ameríndias em todas as escolas de ensino fundamental e médio do país. Há grande esforço de implantação de escolas de ensino bilíngue nas comunidades indígenas, na elaboração de material didático específico e na realização de cursos de capacitação aos docentes que atuam com público indígena, estimulando a criação de magistérios indígenas. Assim, a área da educação tanto serve para difundir o espírito de tolerância racial e étnica, quanto para criar intelectuais indígenas que se tornem profissionais atuantes no sistema nacional em proveito de suas comunidades de origem.
Prejuízo histórico
Tratando de perdas, são muito sumárias ainda as iniciativas que executem programas compensatórios pelos prejuízos históricos sofridos pelos coletivos ameríndios. São tantas mortes, estupros, violências físicas e simbólicas, formas radicais de exploração e de alienação dos corpos, recursos e territórios indígenas. Em primeiro, os representantes do Estado brasileiro precisam formalizar pedido de desculpas por tudo isso, algo que ainda não aconteceu. Talvez a reserva de vagas e de cotas para estudantes indígenas nas universidades brasileiras e a distribuição de cestas básicas para índios em situação de vulnerabilidade sejam os únicos exemplos de medidas compensatórias dirigidas aos coletivos originários no Brasil.
Demandas
Há, ainda, demandas urgentes que precisam avançar nos campos de sustentabilidade, saneamento e de atendimento de saúde. Em cada uma dessas áreas é preciso romper com o eurocentrismo e o preconceito étnico. Os índios possuem padrões distintos dos ocidentais no trato dos resíduos e dejetos e é preciso tempo para que eles se adaptem ao confinamento em espaços cada vez mais exíguos (pois as terras são cada vez menores) e passem a utilizar equipamentos como banheiros, lixeiras, etc.
No caso da sustentabilidade, é preciso neutralizar o afã de aplicar projetos de desenvolvimento em terras indígenas a fim de apenas “gerar renda” e promover a integração econômica das comunidades nelas existentes. Assim, em muitas áreas, os índios estão plantando vegetais transgênicos e aplicando defensivos químicos de forma massiva.
Não adianta dar vaca leiteira para índios que ainda não aprenderam a tomar leite, como aconteceu certa vez através do Programa RS Rural . Hoje existem experiências com resultados promissores na Amazônia e em outros pontos do Brasil. No Rio Grande do Sul, a Emater realiza projetos interessantes de sustentabilidade, valorizando o banco genético nativo e incentivando as práticas tradicionais de produção agrícola e de artesanato. Mas há muito ainda por fazer.
SUS indígena
Há, por fim, a necessidade de se firmarem projetos de políticas especiais na área do atendimento à saúde indígena. Talvez a saúde indígena seja a área onde existem maiores investimentos, através da adequação do SUS Indígena com a criação de postos de saúde nas áreas indígenas, na criação de equipes volantes e na incorporação de agentes indígenas de saúde a fim de promover a aceitação das terapias biomédicas em paralelo ao reconhecimento da eficácia das terapias tradicionais. Mas todos os avanços ainda são muito sumários, porque o eurocentrismo domina de maneira mais marcante aliado ao biopoder, e é difícil convencer os profissionais de saúde que as formas tradicionais de cura podem ser tão eficientes quanto os medicamentos químicos e os equipamentos industriais que movem o mercado rentável da saúde.
* Publicado originalmente no site IHU On-Line.
(IHU On-Line)