O sistema do proletariado e a restauração capitalista na China*

Publicado originalmente no jornal A Nova Democracia

antes... depois...

Muitos países, após a Segunda Guerra, desenvolveram suas economias segundo o modelo capitalista. Esses países adaptaram esses modelos para protegerem suas indústrias, nacionalizando grandes setores industriais como as indústrias pesadas, de comunicação e transporte. Os objetivos eram claros: alcançar o desenvolvimento econômico e político e também não ser dominados por outros governos imperialistas.

Esse modelo de desenvolvimento caminhou bem durante 20 anos. Houve crescimento econômico e poucos atritos. O USA e outros países europeus estavam em pleno desenvolvimento, porque o excedente que provocou a grande depressão (crise de superprodução detonada em 1929) foi destruído durante a Segunda Guerra Mundial. Então apareceram novas oportunidades de investimento.

Ilusão de independência

Nesses 20 anos não houve grandes crises no meio do sistema capitalista mundial, mas isso começou a mudar nos anos 60. Novamente o excedente começou a surgir. O capital nesses países tem sempre que encontrar novos mercados para investir e o uso da dívida externa é apenas uma desculpa para aumentar o fosso entre os países. A partir dos anos 80 em diante, as crises foram surgindo sucessivamente, com os países mais pobres recorrendo ao FMI, que sempre impôs a eles regras mais severas.

A "reforma neoliberal" começou a privatizar as indústrias, favorecendo os interesses estrangeiros, derrubando progressivamente os benefícios adquiridos pelos operários e camponeses. E isso não aconteceu apenas no Brasil, mas também nos países asiáticos. A inspiração destes países de ganhar suas liberdades econômicas e políticas acabou dando em nada. Mais uma vez os países subdesenvolvidos continuaram a ser controlados pelos países imperialistas.

Como é possível um país pobre se desenvolver sob o jugo imperialista?

A China manteve-se socialista de 1949 a 1979. Esse desenvolvimento socialista teve dois fatores importantes. O primeiro é confiar em suas próprias forças internas, inclusive no pleno desenvolvimento tecnológico. O segundo componente seria satisfazer às necessidades populares como objetivo principal.

Até onde não existir muita indústria, o desenvolvimento maior vem da agricultura. Porém, durante 100 anos antes da revolução, a China esteve envolvida em guerras, além de milhares de anos vivendo um sistema feudal. A terra ficou exaurida, porque tudo era tirado dela e nada colocado de volta.

Camponeses livres

A primeira medida do governo após a revolução foi a reforma agrária. De 1949 a 1962 as terras foram distribuídas aos camponeses, que se livraram das doenças, da ignorância, das técnicas atrasadas de trabalho.

O objetivo do socialismo sempre foi de mobilizar as massas. É preciso confiar que as pessoas têm possibilidade de mudar suas vidas. Todas as coisas que impediam esse crescimento foram eliminadas com o socialismo. Mas a reforma agrária não resolveu totalmente a questão da terra porque cada família teria sempre um pedaço de terra útil muito reduzido e, na verdade, não dispunham de quase nenhum instrumento agrícola. A produção subiu porque os camponeses trabalharam muito e com grande entusiasmo.

Depois de dois ou três anos sucederam-se desastres naturais, além de epidemias. Os camponeses entenderam que precisavam da coletivização.

Em 1958 foram formadas as comunas, com brigadas e equipes de produção. A comuna organizou os camponeses e estimulou a criação de uma estrutura revolucionária. Os próprios camponeses criaram um sistema de irrigação. Eles juntaram pequenos pedaços de terra em grandes lotes. Também no alto das montanhas erguiam-se terraços para que pudessem cultivar.

Os camponeses produziram fertilizantes. Criaram um fundo comum onde depositavam uma parte dos excedentes produzidos. Esses fundos de acumulação serviam para a compra dos instrumentos agrícolas, assim como construir os edifícios necessários nas propriedades coletivas.

Além disso, esse fundo era usado na instrução pública, na formação dos médicos e também utilizado junto àquelas famílias que perderam seus pais durante a guerra revolucionária, ou mesmo sua capacidade de trabalho. Nesses fundos elas teriam o dinheiro suficiente para sobreviver. Durante os anos de funcionamento das comunas cada camponês tinha sua cota, não importando se a pessoa era muito velha ou jovem.

Ao longo dos 25 anos de desenvolvimento socialista a China atingiu níveis nunca alcançados em produção agrícola. Devido também à consolidação da aliança operário-camponesa, o Estado começou a vender a preços bastantes baixos os implementos agrícolas. Sendo assim, a mecanização da agricultura chinesa aumentou vertiginosamente. Em 1957, havia 544 usinas elétricas. Em 1979, esse número aumentou para 83.144, com a eletricidade usada para irrigação.

Durante o período socialista o consumo de eletricidade no campo aumentou 21% ao ano. Além disso, muitos trabalhos no campo foram substituídos pelas máquinas. Consequentemente a colheita dessas áreas dobrou. Os camponeses e operários passaram a se alimentar mais adequadamente, melhorando suas condições de saúde.

Operários entusiasmados

Nos anos 30, a taxa de mortalidade infantil era de 27 por mil nascidos vivos. Em 1979, de cada mil, 6 faleciam (dados do Banco Mundial), enquanto que 98% da população passou a frequentar a escola elementar e muitas outras escolas foram estabelecidas no campo.

Para os trabalhadores nas fábricas estatais a vida tinha muita segurança. Os aluguéis eram baixíssimos e os móveis que possuíam dentro da casa eram baratos. O sistema de saúde, por exemplo, era para todos, tanto para operários quanto para camponeses, assim como a educação para as crianças e jovens.

Apesar de os operários e camponeses possuírem vidas modestas, eles tinham muitas garantias. Não havia desemprego, os homens se aposentavam aos 60 e as mulheres aos 55 anos — com 80 % de todo o seu salário.

Quando chegou a contra-revolução, disseram ao povo que para o país se desenvolver era necessário o investimento estrangeiro.

Na época do socialismo na China não houve brecha para investimentos imperialistas, e por um breve período ela recebeu apoio da União Soviética — o que não era investimento.

O começo do fim

Enquanto isso, outros países tinham que pedir dinheiro emprestado do FMI, do Banco Mundial e de demais órgãos mundiais imperialistas para sobreviver. Depois, ficavam com uma dívida enorme sem conseguir pagar.

Então, os países tomavam mais dinheiro emprestado para pagar a dívida. O Brasil conhece muito bem essa história, porque os juros são pagos e os compromissos com o imperialismo nunca acabam.

A China, portanto, provou que é possível se desenvolver com suas próprias forças. Não é necessário depender da "tecnologia" importada, já que dela não precisamos no século 21 para construir a instrução pública, a moradia e produzir comida para o povo.

Em 1979, a China mudou de lado, passando a servir à economia imperialista.

No Brasil, as pessoas ainda indagam se a China é um país capitalista ou socialista. Lá, ninguém acredita viver sob o socialismo, nem mesmo que aquele partido seja de fato comunista. A primeira coisa que os restauradores do imperialismo fizeram foi dissolver as comunas.

O resultado é que agora há vários níveis de propriedades rurais na China e cada família tem vários pedaços em diferentes níveis. Muitas máquinas agrícolas se tornaram obsoletas.

Os "reformadores" são muito espertos. Quando eles desfizeram as comunas, adotaram uma forma para que os camponeses não pudessem refazê-las. Restaurar o capitalismo significa restaurar a exploração do homem pelo homem.

Então, eles também destruíram o direito do emprego permanente dos operários, culminando na demissão de milhões de trabalhadores das fábricas estatais. A maioria destes trabalhadores perdeu seus títulos de saúde, sua pensão. Muito mais que todas essas perdas econômicas eles perderam a dignidade de ser operários.

Durante o período socialista havia um desejo muito grande de se tornar operário. E, depois disso, eles foram jogados na rua de qualquer forma. Na China de hoje, 40% dos trabalhadores estão no mercado informal (desemprego).

O que a China ganhou? Uma pequena parte da população ganhou muito. Talvez 20 a 30% dos residentes da cidade. Cerca de 1 a 2% são extremamente ricos, muitos adonaram-se das estatais pela corrupção. Obviamente, não houve benefícios reais para a população.

Luta de linhas

Claro que havia elementos infiltrados no Partido Comunista. Eles "trabalhavam" para restaurar o capitalismo. Mesmo depois de dez anos da Grande Revolução Cultural Proletária, a concepção burguesa ainda era muito forte e foi ficando muito difícil lutar contra esses elementos.

Em 1949 a China realmente tinha poucos operários. À proporção que as indústrias foram se desenvolvendo, mais operários foram surgindo. Mas a partir de 1949, os operários chineses não precisavam lutar como os operários dos países capitalistas. Eles eram muito gratos ao partido, acreditavam que ele tinha dado tudo aquilo. Mas num dado momento é que os operários verificaram que dentro do seu partido de vanguarda havia duas linhas diferentes e uma delas sabotava a classe operária. Somente com a Revolução Cultural isso começou a aparecer e a mudar.

A China estava construindo um futuro radiante e trazia sinais de desenvolvimento constante, firme. Mas, agora, tem que usar muitos recursos importados. Por exemplo, a China se tornou o segundo país consumidor de energia, depois dos Estados Unidos. E o petróleo se tornou um desses recursos importados que não servem ao povo, porque é utilizado para a produção de bens para exportação.

Imperialismo devastador

Além disso, a China enfrenta problemas ambientais seriíssimos. Três quartos dos rios chineses estão agora terrivelmente poluídos. A falta de água está se tornando uma realidade. Em torno de 30 a 40 grandes cidades tem problemas sérios em relação à água. Fazendas não conseguem fazer irrigação. O Rio Amarelo, um dos principais do país que abastecia milhões de camponeses, está secando (!).

Pequim, a cada temporada, está enfrentando tempestades cada vez maiores, inclusive de areia, atrapalhando a respiração das pessoas. A China tem sacrificado tudo para exportar e esse dinheiro que entra não é usado devidamente. O volume de negócios do USA com a China é de aproximadamente 200 bilhões de dólares por ano, e vem aumentando cada vez mais.

Por outro lado, o USA não paga com dinheiro, mas com títulos da dívida pública deles (a maior do mundo). Cada vez mais as pessoas compram esses títulos da dívida pública e a China acaba não conseguindo resgatar.

Depois da Segunda Guerra Mundial — quando foi estabelecido o FMI, o órgão se tornou o dinheiro do planeta. Transnacionais ianques vinham para o Brasil com seu dinheiro para investir. Mas, obviamente, o Brasil não pode levar o seu Real para o USA e investir lá. O dólar ianque é o dinheiro mundial. Nenhum outro país do mundo tem esse poder. O USA vem comprando muito de outros países e não vende o suficiente. Além disso, deve dinheiro para todos os países do mundo. Os títulos da dívida são uma fórmula de adiar o problema.

O que a China ganha a partir de tanta exportação? Para o povo chinês, nada. A comparação do desenvolvimento socialista chinês com o desenvolvimento capitalista de outros países e com o chinês de agora, nos faz lembrar que fazer parte do mundo do imperialismo, não é definitivamente uma saída para os países explorados e para as pessoas exploradas.


*Palestra proferida pela Profª Pao-yu Ching —, de nacionalidade chinesa, Ph.D em Economia pela Universidade Bryn Mawr College, USA — no auditório do Instituto de Filosofia e Ciências Sociais da UFRJ, Rio de Janeiro, em 13 de julho
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