Buenos Aires, 28/08/2007 – Cercadas pela expansão agropecuária e indiferença do Estado, comunidades indígenas da província argentina de Chaco encontram dificuldades para ter acesso à água, à alimentação e aos medicamentos naturais e, assim, caminham para a extinção. As imagens de corpos adultos degradados pela fome e a tuberculose no município de Villa Rio Bermejito, noroeste da província, são apenas o epílogo de uma longa história de abandono e reclamações não ouvidas de indígenas toba, wichi e mocoví do Chaco, 700 quilômetros ao norte de Buenos Aires.
Mais de um ano após uma greve
de fome de um mês protagonizada por indígenas em protesto por graves
irregularidades na concessão de terras fiscais, o Centro de Estudos e Pesquisa
Social Nelson Mandela denunciou que 13 membros dessas comunidades morreram nos
últimos meses. As mortes foram conseqüência de desnutrição aguda associada, na
maioria dos casos, com tuberculose e outras enfermidades como parasitose, mal de
Chagas e câncer. "Estamos diante de um desastre humanitário", disse à IPS
Rolando Núñez, diretor do Centro Mandela.
A entidade afirmou que um
estudo feito pelo governo nacional em Villa Rio Bermejito detectou este mês 92
casos de desnutrição de diversos graus. O governo da província, da opositora
União Cívica Radical, considera que nas denúncias "há intenção política" por
parte de Buenos Aires. "Nunca escondemos a fome, a miséria nem a pobreza",
defende-se o governador Roy Nikisch. "Sabemos perfeitamente que por sua própria
cultura e idiossincrasia os indígenas não deixam que o Estado os atenda
corretamente, não usam os remédios e rejeitam os tratamentos", afirmou
Nikisch.
Em um informe apresentado este mês perante a Suprema Corte de
Justiça da Nação, o Centro Mandela alertou que "a subtração maciça de terras
fiscais e o desmatamento irracional de floresta nativa" estão provocando a
enfermidade e morte de populações "famélicas" no Chaco. "Como síntese trágica da
sistemática degradação institucional, política, social, econômica e educativa da
província, estão as comunidades indígenas que vivem na extrema pobreza, sob um
regime de fome perpétuo e contínuo, seguido de enfermidades próprias de uma
situação de desastre", diz a denúncia.
Orlando Charole, presidente do
Instituto do Aborígine do Chaco (Idach), coloca o problema em uma perspectiva
histórica. "Por séculos nós indígenas sofremos o avassalamento integral em todo
o continente com um impacto destruidor sobre centenas de povos que foram
arrasados", disse à IPS. Entretanto, as comunidades que se aferraram à sua
organização tradicional e aos seus costumes conseguiram sobreviver, acrescentou.
O que está em jogo é o território, base de seu modo de vida. "Um povo não pode
viver sem território", ressaltou Charole, que liderou os protestos pelo direito
à terra em 2006.
"Onde podemos viver segundo nossas crenças? Onde caçar,
pescar, colher alimentos? Com que fazer suco quando não há água? Onde obteremos
nossos remédios?", disse Charole, de origem toba, que representa mais de 600
indígenas do Chaco, quase 6% da população da província, de 980 mil pessoas.
Dados do Instituto Nacional de Estatísticas e Censos mostram que na Argentina há
pouco mais de 600 mil indígenas descendentes de 25 povos originários. De acordo
com denúncias de organizações sociais e ambientalistas, o desmatamento está
causando estragos entre os que vivem mais afastados dos centros
urbanos.
A Fundação para a Defesa do Meio Ambiente denuncia desde 2004 a
lenta extinção dos mbya guaranis na província de Misiones. A filial argentina do
Greenpeace afirma que o corte de floresta nativa para cultivo de soja em Salta,
no noroeste, destrói o habitat de comunidades wichí. "Cortam a floresta, colocam
cercas e nós somos estranhos em nossa própria terra", resumiu Charole a respeito
do Chaco. O Estado "parece ter um escudo" para rechaçar nossas reclamações,
afirmou. "O Ministério de Desenvolvimento Social manda alimentos, mas isso só
resolve no momento. O que precisamos é de terra, educação, saúde",
ressaltou.
Charole se referia à decisão ministerial de enviar, desde maio
e a cada dois meses, uma cesta com 30 quilos de alimentos para cada uma das duas
mil famílias da área mais vulneráveis, que incluem 10 quilos de farinha, três de
macarrão, três de arroz, cinco de leite em pó, dois de açúcar e latas de
picadinho de carne e pêssego. "É uma quantidade suficiente para uma alimentação
modesta durante 15 dias", afirmou Núñez, do Centro Mandela. Para conseguir uma
dieta balanceada, os moradores deveriam complementar com animais de caça e
frutos da montanha, mas o desmatamento da área os isola e lhes tira a
possibilidade de obter estes recursos.
Segundo a Direção Nacional de
Florestas, Chaco é a terceira das 23 províncias argentinas em porcentagem de
terras desmatadas nos últimos anos, devido ao avanço da fronteira agropecuária.
O milho e a soja são os cultivos prediletos em detrimento da floresta ou de
outras plantações tradicionais, como o algodão. Entretanto, senadores de Chaco e
outras províncias afetadas pelo desmatamento negam-se a aprovar um projeto de
lei sobre florestas já sancionado pela câmara baixa que prevê suspensão do
desmatamento, ordenamento territorial e emissão de autorizações para cortar
florestas somente em casos que não afetem o meio ambiente e suas
comunidades.
Nos últimos 10 anos, a superfície de Chaco cultivada com
algodão passou de 700 mil para 100 mil hectares, e as possibilidades que os
indígenas tinham de se empregarem como diaristas na colheita diminuíram na mesma
proporção. A falta de água também constitui um problema grave. O Centro Mandela
afirma que próximo ao município de Miraflores, no Chaco, na localidade de
Techat, populações whicí sobrevivem condições "totalmente desfavoráveis para a
vida humana". Em 1996, as autoridades instalaram ali uma cisterna para bombear
água que funcionava com energia solar. Mas depois do ato inaugural, levaram
embora o motor.
Assim, os moradores estão condenados a beber água de
charcos, represas e lagoas, e alguns se acostumaram a não beber até à
desidratação, afirma a o Centro Mandela. A única sala de primeiros socorros
existentes na localidade está totalmente desabastecida e sem pessoal. Charole
afirma que é necessária uma política do Estado nacional indígena que permita
planejar o acesso à terra, planos de saúde que contemplem o saber da medicina
tradicional e incorporação de professores bilíngües nas escolas. "Não se
soluciona o problema com duas ou três cestas de alimentos", ressaltou.
Em
junho de 2006, os indígenas de Chaco protestaram com uma marcha de três mil
pessoas desde Villa Rio Bermejito até Resistencia, capital provincial situada a
mais de 400 quilômetros. Diante da negativa das autoridades da província em
dialogar, os manifestantes ocuparam a sede do governo e ali iniciaram uma greve
de fome. A medida, adotada por uma dezena de indígenas, durou 32 dias e culminou
com a saúde dessas pessoas gravemente deteriorada e uma promessa de soluções que
não chegaram. Na oportunidade, o Centro Mandela afirmara que dos 3,9 milhões de
hectares de terras fiscais que havia na província em 1995 restam pouco mais de
660 mil hectares.
A lei provincial estabelece que essas terras devem ser
cedidas a comunidades indígenas ou a pequenos produtores em áreas familiares
entre 650 e 1.200 hectares cada, acompanhadas de políticas de fomento à
atividade produtiva. Mas nada disso ocorreu. A entidade afirmou que as
concessões beneficiaram grandes plantadores de soja e outros cultivos, alguns
deles radicados em outras províncias, e que os lotes cedidos tinham mais de 10
mil hectares cada um. Mais de um ano depois, o resultado é mais fome, doença e
morte. (IPS/Envolverde)
(Envolverde/ IPS)