A matéria “exclusiva” da Agência Reuters [1] sobre contatos secretos entre os EUA e os Talibã é, sem dúvida, sensacional. Raras vezes o tabuleiro afegão foi tão claramente “desmitificado”. Serão os EUA, agora, “transparentes”? Uma nova abordagem? Porque tampouco os EUA jamais antes “revelaram” tanto de sua própria política regional, de modo tão explícito. Jamais tampouco se viram intenções de “processo de paz”, depois de guerra tão brutal, manifestas com tal sinceridade de intenções, com tantos bons propósitos, com tal generosidade em relação ao “inimigo”.
Que chances há de alguma coisa do que a Reuters publica hoje “com exclusividade” ser verdade?
Pergunto sobre as intenções que haja por trás de tantas declarações proferidas por militares norte-americanos identificáveis, falando todos, em fila, um depois do outro, em momento crucial de definição da guerra do Afeganistão. E escolhem logo, para divulgar toda aquela sinceridade e transparência, uma agência de notícias que tem leitores em todo o planeta, fazendo-a porta-voz daquelas “revelações”.
O que pode ter empurrado, para tamanha exposição, aqueles “militares norte-americanos de alto escalão”?
Comecemos pela “revelação” – que tem de simples o que pode ter de falsa: os EUA estariam trabalhando num “processo de paz” com os Talibã, com as conversações já bem adiantadas. E esses esforços alcançaram um ponto crítico, com boas chances de progressos consistentes; embora também tudo possa vir abaixo num segundo.
Quanto aos motivos: os funcionários dos EUA falam ali para vários públicos. Há o público doméstico no país – os norte-americanos cansados daquela guerra e que já não vêem sentido algum em continuar no Afeganistão. Esses lêem, em matéria publicada pela Reuters, que o governo Obama empenha-se muito em pôr fim à guerra e avança palmo a palmo, com denodo, rumo ao fim do túnel.
Assim sendo, que ninguém culpe o governo Obama se, apesar do esforço, a tentativa der em nada, por causa da intransigência dos Talibã. O mais importante de tudo: se, por acaso, a guerra prosseguir, e os EUA chegarem ainda em guerra ao ano da crucial (re)eleição presidencial de 2012, não terá sido por decisão do presidente-candidato Obama, mas por imperiosa necessidade.
Obviamente, a lei sobre Guantánamo torna urgente alguma definição sobre o estatuto daqueles prisioneiros, antes que Obama sancione lei. Aqueles prisioneiros são lixo. Por que não se livrar deles e, de quebra, ainda extrair do lixo algum lucro político?
Muito espertos. Sobretudo se a transferência dos prisioneiros para a custódia de Karzai puder ser apresentada como “movimento de cortesia” dirigido aos Talibã.
A mensagem visa também os afegãos, especialmente o presidente Hamid Karzai, para que saiba que o nível de exasperação em Washington está alto; que, com ou sem o aval de Kabul, os EUA estão fazendo avançar sua própria agenda; e que já acumularam massa crítica.
Claro que é também mensagem para o Paquistão e para toda a região, os quais, depois dessa “notícia”, terão de começar a pensar sobre as intenções dos EUA no pós-2014.
O momento das “revelações” também é interessante:
a) Obama tem de dar respostas políticas “em casa”;
b) Washington está irritada com Karzai;
c) os EUA estão inseguros quanto às intenções dos Talibã;
d) o Paquistão entrou em modo de “desafio estratégico”; e
e) há oposição regional às bases militares dos EUA no Afeganistão.
A parte intrigante é que governos só “divulgam” sua diplomacia mais top secret quando, de fato, a confidencialidade deixou de ser interessante. Os funcionários do governo dos EUA que fizeram “revelações” à Agência Reuters admitiram publicamente que Washington desistiu de quaisquer “pré-condições” no relacionamento com os Talibã (que desistiu de todas, fossem quais fossem: que tenham de obedecer à Constituição afegã, que tenham de separar-se da al-Qaeda etc.); e admitiram que os Haqqanis também são muito bem-vindos ao grupo.
A grande pergunta é se as “revelações” sugerem que estaria aparecendo pensamento novo, com vistas ao cenário do pós-2014. Pelo que se pode ver, os EUA começam a considerar uma era pós-Karzai. Querem mostrar que aprenderão a conviver com um Afeganistão comandado pelos Talibã. Mas... e por quê os Talibã engoliriam tudo isso?
Como se poderia adivinhar que fariam, os Talibã imediatamente desmentiram tudo [2] e deram as costas à abertura proposta pelos EUA.
Pode não ser a última palavra dos Talibã.
Notas dos tradutores
[1] 19/12/2011, “Exclusive: Secret U.S., Taliban talks reach turning point”, Reuters, (em inglês).
[2] 19/12/2011, “No secret talks with U.S.: senior Taliban commander”, Reuters, (em inglês).
MK Bhadrakumar, Indian Punchline
U.S. beseeches Taliban to talk
Traduzido pelo Coletivo da Vila Vudu
MK Bhadrakumar foi diplomata de carreira do Serviço Exterior da Índia. Prestou serviços na União Soviética, Coreia do Sul, Sri Lanka, Alemanha, Afeganistão, Paquistão, Uzbequistão e Turquia. É especialista em questões do Afeganistão e Paquistão e escreve sobre temas de energia e segurança para várias publicações, dentre as quais The Hindu, Asia Online e Indian Punchline. É o filho mais velho de MK Kumaran (1915–1994), famoso escritor, jornalista, tradutor e militante de Kerala.
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