Pessoas sem moradia fixa, com roupas coloridas, portadoras de cultura e língua muito particulares, além de associados a vagabundos, desonestos e ladrões. Quem já não ouviu, quando criança, para tomar cuidado com os ciganos? Quantas vezes não se encontram nas histórias personagens de caráter duvidoso chamados de bandoleiros?
Apesar de tudo isso, os ciganos não são lendas e constituem uma importante minoria étnica no país. Segundo a Pastoral dos Nômades, o número de ciganos no Brasil chega a 800 mil. Os primeiros grupos aportaram ainda na época colonial. Marginalizados tanto no imaginário da sociedade, quanto pelas políticas públicas, muitos foram forçados a se sedentarizar e participar da ordem vigente, mas alguns ainda mantêm as tradições, em especial na região central do país.
Segundo o ciganólogo
(especialista no estudo do grupo étnico) e professor da Pontifícia Universidade
Católica de Minas Gerais (PUC-MG) Rodrigo Corrêa Teixeira, dois diferentes
grupos ciganos estão presentes no Brasil, "os Calon que migraram para o país,
voluntária ou compulsoriamente, a partir do século XVI, e os Rom que, ao que
tudo indica, migraram para o Brasil somente a partir de meados do Século XIX",
explica.
Preservação da língua
Especialmente preocupado com o
idioma da população cigana, o lingüista Fábio José Dantas de Melo se dedica ao
estudo do grupo dos Calon, presente em Mambaí, no nordeste do estado de Goiás.
Há pouco mais de 30 anos o grupo deixou de ser nômade e hoje já reúne duas mil
pessoas, organizadas em 114 famílias.
"Foi um longo processo até
convencê-los da importância de preservar a língua. Eles se sentiam ameaçados de
terem seus códigos desvendados", conta Melo, lembrando que o preconceito por
parte da sociedade faz com que os ciganos desconfiem e temam aqueles que não
pertencem ao grupo.
"Não é permitido ensinar a língua aos gadjo
(não-ciganos)", conta Melo, explicando que, justamente, a língua é uma maneira
deles se manterem vivos, unidos e em constante contato com a cultura. Como é um
idioma ágrafo (que não pode ser escrito), o dialeto é ensinado de pai para
filho. "Muitos jovens já começaram a misturar as línguas. Pelo próprio processo
de sedentarização, pela vontade de integração e mesmo por identificação com
modismos da sociedade como um todo, os jovens estão perdendo o contato e a
vontade de resgatar a própria língua", explica.
"É preciso incentivar o
falante nativo o estudo da sua própria língua", diz Melo que desenvolve em
parceria com o chefe do grupo Dálcio Alves da Silva, uma associação cultural que
garante a preservação da história e costumes do grupo que vieram inicialmente da
Índia e passaram pela Península Ibérica para chegar ao Brasil. "As pesquisas
indicam que até 1900 eles apresentavam um nomadismo muito forte, mas com as
perseguições governamentais e a dificuldade de se estabelecer, eles acabaram se
sedentarizando", lembra.
Preconceito
Também não é à toa que eles
se sintam perseguidos e coagidos, pois no imaginário brasileiro os ciganos são
constantemente associados a ladrões, indecentes e vadios. Em seu trabalho, o
pesquisador Rodrigo Teixeira buscou desmistificar essas compreensões. "Como os
ciganos não tinham empregos tradicionais e eram nômades, passaram a ser
considerados, inclusive pela legislação imperial brasileira, como vadios e tidos
como impossíveis de integração", explica.
Sobre o mito de que os ciganos
roubam crianças, Melo cita o estudo de Teixeira e explica que muitos grupos eram
ligados às artes circenses e quando passavam pelas cidadelas, levando seus
números de música, dança e mágica, acabavam seduzindo as crianças que decidiam
seguir com eles. "As mães, ofendidas, falavam que as crianças tinham sido
roubadas pelos ciganos. E a partir desta e outras acepções o imaginário
contrário aos ciganos foi se formando", observa.
Cores, vestes e
leis
Identificados pelo apreço à vestimenta, dentes de ouro, chapéus e
botas de boiadeiro, os Calon, assim como os Rom, têm enorme estima pela família
e são, diferentemente do que se prega, muito afeitos ao tradicionalismo. Segundo
a pesquisa de Teixeira, embora as mulheres possam amamentar publicamente, estão
absolutamente proibidas de mostrar acima das pernas. O sexo é basicamente
voltado para a reprodução, o erotismo é bastante privado e a virgindade
pré-marital é norma.
Como se organizam em pequenos núcleos, os ciganos,
embora respondam à constituição nacional, têm leis muito próprias. "Porém não se
sabe ao certo como são essas leis. Em casos especiais é chamado um Tribunal
Cigano, expressamente proibido para os gadjos", conta Melo, indicando que nessas
reuniões os anciões se encontram por vários dias até encontrar um veredicto. "Há
toda uma etiqueta para se convocar um desses tribunais. É exigido de quem
convoca que possa garantir alimentação e moradia para aqueles que vêm de longe
para a reunião", explica.
Segundo Melo, o preconceito contra aqueles que
estão menos inseridos politicamente sempre vai existir, mas ao compreender esses
grupos, passa-se a vê-los como pares, vizinhos e cidadãos do país.
(Envolverde/Aprendiz)