Quando o filme Tempos Modernos chegou às telas, em 1936, o mundo já convivia com o cinema sonoro há quase dez anos. Durante todo esse tempo, o “vagabundo”, personagem que conhecemos como Carlitos, criado por Charlie Chaplin – que compartilhou nas primeiras décadas do Século 20 o infortúnio dos desvalidos, que viam nele uma identificação com suas geniais performances –, ficou sem aparecer nos cinemas.
No intervalo do seu último filme, Luzes da Cidade, e o lançamento de Tempos Modernos, Chaplin amadureceu a ideia de que o “vagabundo” não ia transitar no mundo do cinema sonoro. Decidiu, então, que Tempos Modernos seria o último filme do personagem.
O mundo tinha mudado muito nessa época, e já se vivia a tensão de uma nova guerra que estava por vir. Em 1931, Chaplin tinha feito uma turnê pela Europa e viu que os males que afligiam a economia norte-americana – a recessão e o desemprego – estavam presentes em todo lugar. Viu, também, que os capitalistas europeus, a exemplo dos norte-americanos, buscavam superar a crise por meio de alterações no processo produtivo, adaptando-se aos novos tempos, racionalizando cada vez mais a produção. Os conceitos de Henri Fayol e Frederick Taylor, de racionalizar as operações de trabalho, levariam a um considerável ganho de produtividade, reduzindo o custo unitário dos produtos e ampliando a margem de lucro com implementos que tiveram seu ápice com a linha de montagem fordista. Isso encantava os empresários. A aplicação dessas ideias resultou no desemprego de milhões de pessoas, contribuindo para acelerar o confronto dos países capitalistas por meio da guerra. O conflito aliviaria as tensões sociais internas e abriria as portas para novos mercados.
Retornando aos Estados Unidos, vivamente sensibilizado com essas questões, Charlie Chaplin tomou a decisão de fazer um novo filme, onde retrataria esse novo mundo. O cineasta sempre teve uma visão diferente daquela que estava sendo construída pelas elites econômicas da burguesia liberal. Sua utopia era uma sociedade mais justa, com pleno emprego, sem a violência do Estado, com a felicidade ao alcance de todos, sem o racionalismo científico que tirava do ser humano a sua essência humanista, procurando transformá-lo em máquina. Eram ideias que ele procuraria sintetizar mais tarde, na cena final seu próximo filme, lançado já em plena guerra: O Grande Ditador.
Em Tempos Modernos, Chaplin nos mostra o “vagabundo” – antípoda da sociedade moderna racionalizada – às voltas com a linha de montagem fordista, em um ambiente asséptico, científico, controlado e não menos cruel. Numa cena clássica, vemos o nosso herói ser sugado, literalmente, pelas engrenagens das máquinas industriais, sem condições, portanto, de se adaptar a linha de produção, e por isso mesmo, levado à loucura.
Nesses novos tempos, mais do que nunca, a competição econômica forçaria as empresas a buscarem a eficácia, revolucionando o trabalho, a técnica e os produtos, que adiante voltam a competir e a serem revolucionados, em um processo contínuo e infindável. Noutras palavras: estaria na lógica da produção de mercadorias a obrigatoriedade das empresas de racionalizarem o desenvolvimento das suas forças produtivas. Isto exige, além da técnica, um operário totalmente adaptado a essa nova forma de produção – o que evidentemente não é o caso do nosso “vagabundo”. Por isso, não é sem sentido que Chaplin começa seu filme com a imagem de um rebanho de carneiros em marcha, saindo de uma fábrica: a indústria precisa de máquinas, sem vontade própria, seguindo os ditames da linha de montagem. Quem não se adaptar perde o emprego.
Os sindicatos se veem obrigados a afrontar diretamente a situação, e com as manifestações e as greves buscam melhores condições de trabalho para seus associados. Nesse contexto, nosso herói acaba sendo envolvido pelo turbilhão dos movimentos grevistas: é preso pelas malhas do Estado e dominado pelas forças da burguesia industrial.
Nesse momento, vemos também, que o próprio Estado mudou. Racionalizando-se e se adaptando aos novos tempos, exige um comportamento da sociedade dentro de parâmetros legais de uma nova ordem. No filme, houve uma cena – que mais tarde foi retirada – onde o “vagabundo” causa a maior confusão por não se adaptar à ordem que todos devem ter para atravessar um sinal de trânsito numa esquina supermovimentada, confundindo-se com os semáforos que continuamente dão ordem para seguir ou parar. Perseguido pelo guarda, é obrigado a fugir.
Situações como essa vão se repetindo em diversos momentos do filme: o “vagabundo” e sua amada – interpretada pela jovem Paulette Goddard – preocupando-se em passar todo o tempo na busca de trabalho e de uma vida melhor, driblam as dificuldades da pobreza, alternando-se em momentos de liberdade ou prisão.
Tempos Modernos mostra também a racionalização do comércio, fazendo com que o casal passe uma noite em uma loja de departamentos, precursora dos nossos conhecidos shopping centers, onde nossa heroína delicia-se em experimentar casacos de vison, acabando por adormecer em uma cama exposta para venda.
No fim, eles conseguem emprego quando alguns empresários, observando a forma natural como Paulette dança em plena rua, oferecem-lhe a oportunidade de se transformar em bailarina, que ela aceita, mas com a condição de que também haja emprego para seu companheiro de ruas. Chaplin transforma-se em cantor e bailarino e, num inusitado desempenho, nos brinda com um número-música impagável, onde pela primeira vez podemos ouvir a voz do “vagabundo”.
Tempos Modernos não somente é uma obra de arte, como é a obra-prima de Charlie Chaplin. Mostra o seu amadurecimento como cineasta dentro de uma vasta galeria de excelentes filmes. No filme, Chaplin já anuncia os rumos que a humanidade vai tomar após o final da II Grande Guerra, com a hegemonia do American way of life, ou seja, a forma de ser do capitalismo norte-americano, que seria implantado no mundo, garantido pela pax das suas forças armadas.
Seu roteiro nos toca pela clareza e momentos poéticos, mesmo que o retratado seja a crueldade do sistema capitalista, que reduz os homens a simples máquinas para serem consumidas e descartadas. Seus personagens – principalmente o “vagabundo” e a pequena órfã, de Paulette Goddard – nos mostram um otimismo tocante, num quadro onde a todo momento tentam esmagá-los e reduzi-los a nada: são as engrenagens de uma sociedade cruel, que gera riquezas mas, ao mesmo tempo, exclui completamente aqueles foram os seus geradores.
Porém, eles não se deixam abater e seguem em frente na busca da felicidade a que todos os seres humanos têm direito. Trata-se de um filme otimista, que aponta para um futuro de uma vida diferente. A música Smile, composta por Charlie Chaplin, nos envolve e nos dá a certeza de que vida vivida pode existir, mesmo na adversidade. Não é por acaso que o “vagabundo” de Chaplin é cultuado e amado por todas as gerações no mundo inteiro.
* Arlindenor Pedro é professor de história e consultor em Projetos Educacionais. Anistiado por sua oposição ao regime militar, dedica-se na atualidade à produção de flores tropicais na região das Agulhas Negras. E-mail: Este endereço de email está sendo protegido de spambots. Você precisa do JavaScript ativado para vê-lo..
** Publicado originalmente no site Outras Palavras.
(Outras Palavras)