Os historiadores discutem se Wyatt Earp foi um paladino da lei ou se apenas construía seu próprio feudo no Arizona.
Washington, Estados Unidos, 10/5/2011 – No velho oeste dos filmes de Hollywood, o delegado enfrenta a tiros os maus e sempre ganha. Essa foi a história de Wyatt Earp, o estereótipo encarnado por John Wayne, alto, charmoso e anglo-saxão. Frequentemente, os maus eram “índios” como Gerônimo, o apache que supostamente aterrorizava inocentes colonos.
Nesta tradição entrou o presidente dos Estados Unidos, Barack Obama, quando no dia 1º deste mês relatou a história de uma batalha de 40 minutos que pessoalmente monitorou da Casa Branca, completada com a foto de sua equipe nacional de segurança em ação. O mau se escondia em uma mansão fortificada de US$ 1 milhão em Abbottabad, Norte do Paquistão, onde os “bons rapazes” não tiveram outra opção a não ser matá-lo. “Se fez justiça”, disse Obama em seu discurso da meia-noite. E seu gabinete saiu a apoiar a história dos novos herois norte-americanos.
Osama bin Laden, líder e fundador da rede extremista islâmica Al Qaeda, “travou um tiroteio com os que entraram no perímetro da casa onde se encontrava”, disse o conselheiro de segurança da Casa Branca, John Brennan. “Houve um tiroteio e ele morreu nessa troca de tiros”, afirmou.
Os historiadores ainda discutem se Wyatt Earp foi um heroico homem da lei ou alguém dedicado a criar seu feudo pessoal no povoado de Tombstone, no Arizona, Sudoeste dos Estados Unidos. Muitos dos “vaqueiros” que enfrentou eram negros pobres ou mexicanos, não guerreiros malignos. E o cacique Gerônimo foi produto de uma longa história de defesa de seu povo contra os colonos espanhois e mexicanos, e contra os soldados norte-americanos que roubaram as terras dos apaches chiricahuas.
Como a história de Wyatt Earp, John Wayne e Gerônimo, os fatos sobre o tiroteio de Abbottabad são duvidosos, e o que os torna mais problemáticos são as muitas leis e normas de direitos humanos que foram infringidas.
Jay Carney, porta-voz presidencial, disse aos jornalistas, no dia 2, que “passamos a vocês muita informação com muita pressa, e, obviamente, alguns dos dados chegaram paulatinamente e agora são revisados, atualizados e explicados”. A casa onde vivia Bin Laden passou de uma mansão de US$ 1 milhão para uma de US$ 250 mil depois que os jornalistas consultaram imobiliárias locais. O último registro sobre a propriedade, revelado pela agência AP, mostra que o terreno foi adquirido por US$ 48 mil.
A Casa Branca, então, se retratou sobre o tiroteio, afirmando que somente um dos homens de Bin Laden disparou sua arma a partir de uma construção vizinha. A “esposa” que foi usada como “escudo humano” por Osama resultou não ser sua esposa, não ter sido um escudo humano e tampouco ter morrido.
A foto que mostra Obama observando a operação em tempo real na Casa Branca também desperta suspeitas, pois, ao que parece, a transmissão de vídeo falhou. O diretor da Agência Central de Inteligência (CIA), Leon Panetta, disse à rede de televisão PBS que “depois que as equipes entraram no recinto, houve um período de 20 ou 25 minutos durante o qual realmente não sabíamos o que estava acontecendo”.
Enquanto a história se revela, surgem graves questionamentos sobre a legalidade da operação, sem mencionar o contínuo desacato ao direito internacional no qual Washington incorre quando ordena operações militares dentro do Paquistão, país contra o qual não declarou guerra. “Como Bin Laden estava desarmado, não fica claro como resistiu à prisão e nem se houve uma tentativa de capturá-lo, em lugar de matá-lo”, disse o diretor da Anistia Internacional, Claudio Cordone.
A alta comissária das Nações Unidas para os Direitos Humanos, Navi Pillay, pediu que sejam “revelados completamente os fatos precisos” da operação. “As Nações Unidas condenam o terrorismo, mas também há certas normas elementares sobre como se deve proceder em ações antiterroristas. Deve-se respeitar o direito internacional”, acrescentou.
Inclusive, líderes religiosos intervêm no debate. Rowan Williams, bispo primaz da Igreja da Inglaterra, disse ao jornal britânico Telegraph que “matar um homem desarmado sempre deixa um sentimento desagradável porque não se vê como deve ser visto um ato de justiça”. Alguns condenaram abertamente Obama. O advogado britânico especializado em direitos humanos Geoffrey Robertson disse à rede BBC que a afirmação do presidente norte-americano sobre ter sido feita justiça “constitui um uso completamente incorreto da linguagem. Esta é a justiça da Rainha Vermelha: primeiro a sentença e depois o julgamento”, disse em referência à história “Alice no País das Maravilhas”.
Uma das perguntas mais graves é por que a inteligência norte-americana demorou dez anos para rastrear sua presa, quando esta viveu aparentemente diante de seus narizes pelo menos metade desse tempo, em um complexo habitacional vizinho à principal academia militar paquistanesa e sem maior segurança além de um par de armas. Ou os paquistaneses enganaram os militares norte-americanos ou nem a CIA nem o serviço secreto do Paquistão (ISI) tinham ideia do que se passava, o que poderia indicar que um homem de 54 anos submetido a tratamento de diálise os enganou por um bom tempo.
As respostas jazem no fundo do Mar da Arábia, onde os norte-americanos jogaram o corpo de Bin Laden e, com ele, o que pode ter sido sua mais importante fonte de informação em uma década. Há alguns sobreviventes que poderiam lançar alguma luz sobre os acontecimentos. Mas, nenhum deles está sob custódia dos Estados Unidos. Amal Ahmed Abdulfattah, a mais jovem das três esposas de Bin Laden, já deu aos interrogadores paquistaneses detalhes sobre os últimos anos de seu marido. Não importa. Os altos chefes da CIA já estão apresentando novas histórias aos meios de comunicação norte-americanos, baseados em documentos que asseguram ter confiscado.
Osama “não era apenas uma figura de proa”, disse um oficial norte-americano que pediu para não revelar seu nome ao jornal The New York Times. “Ele continuava gerando complô e planejando, concebendo ideias sobre alvos e comunicando essas ideias a outros altos dirigentes da Al Qaeda”, acrescentou. Como a história do peixe que escapou, não há provas sobre nenhuma das novas acusações. Mas, como aconteceu com Wyatt Earp, a história da operação em Abbottabad estará proximamente no cinema mais próximo.
* Pratap Chatterjee é professor-visitante do Center for American Progress em Washington, especializado em temas de fraude, despesas e abuso em licitações públicas.
(IPS