Nasser, quarenta anos depois

Há quarenta anos, no dia 28 de setembro de 1970, após esgotar todas as tentativas de reconciliação entre o rei Hussein, da Jordânia, e a resistência palestina que se confrontavam em combates mortais (o Setembro Negro), o presidente egípcio Gamal Abdel Nasser morreu de um ataque cardíaco. Ele tinha pouco mais de cinquenta anos, mas marcou profundamente a história do Egito moderno.
Para marcar este aniversário, uma polêmica surgiu no Egito. Mohammed Hassanein Heikal, um dos conselheiros mais próximos de Nasser, sugeriu que, talvez, seu sucessor, Anwar al-Sadat, o havia envenenado. «A filha de Sadat decidiu prossessar Heikal na justiça." - Al-Masry Al-Yom, 21 de setembro de 2010).

Eis aqui uma breve biografia de Nasser, baseada essencialmente nas « Cem Chaves do Oriente Médio » (escrito com Dominique Vidal, Hachette, 2005), com alguns acréscimos.

Nascido em 15 de janeiro de 1918, em Beni-Mor, na província de Assiut, no Alto Egito, Gamal Abdel Nasser era o filho de um funcionário dos serviços postais, descendente de pequenos agricultores. Formado bacharel em 1934, ele começou a estudar direito e participou das grandes manifestações de 1935 contra a ocupação britânica e contra o rei. O retorno do partido Wafd ao poder, em 1936, abriu as portas da academia militar aos filhos da pequena burguesia: uma brecha pela qual entrou o jovem Nasser. "Para realizar o trabalho de renovação, escreveu mais tarde um de seus companheiros, Anwar al-Sadat, precisávamos de um grupo sólido e disciplinado que, impulsionado por uma única vontade, fosse capaz de superar a falta de autoridade e reconstruir a nação desintegrada. E o exército dispunha desta organização."

Como subtenente, ele recebeu sua primeira designação, Moukabad, perto de sua cidade natal. Ele se familiarizou com Sadat e esboçou, durante conversas apaixonadas, o futuro do Egito e a ideia de criar uma organização de "Oficiais Livres".

Mas o caminho ainda seria longo até a tomada do poder, marcada em cada etapa pela humilhação. O Egito estava, desde 1882, sob o controle de Londres e a independência formal, obtida em 1922, não alterou nada. Em fevereiro de 1942, os tanques britânicos cercaram o palácio real e forçaram o rei a nomear um novo governo pró-britânico. Em 1948 se inicia a guerra na Palestina. Nasser participa dos combates - e se destaca na batalha de Faloujah - e volta do "front" com o gosto amargo da traição na boca. Em 1951, a luta armada se desenvolve ao longo do Canal de Suez, contra a presença colonial; milhares de jovens voluntários - a quem os Oficiais Livres fornecem treinamento e armamento - entram no combate. Mas, em janeiro de 1952, o rei proclama a lei marcial. A organização de Nasser, então, conta uma centena de oficiais; um comité executivo composto por quatorze membros - vindos de um amplo espectro, desde comunistas até a Irmandade Muçulmana - unidos pelo ódio ao colonialismo, à corrupção e ao feudalismo. Chegou a hora de ação: em 23 de julho de 1952, um golpe de Estado levou-os ao poder. O general Neguib, um velho oficial patriota e respeitado, serve como figura de proa do movimento, mas Nasser, que ainda não tenha 34 anos, é o verdadeiro homem forte.

Não há, entretanto, uma ideia clara do seu papel nem de seus objetivos. Em seu livro Filosofia da Revolução (1953) - que o líder socialista francês Guy Mollet ousaria comparar ao "Mein Kampf" - o líder relembrou que, durante a guerra de 1948, "nós estávamos lutando no campo da honra enquanto todos os nossos pensamentos se voltavam para o Egito", e ele relatou as últimas palavras de um camarada morto em combate:".

Em 1952, o terceiro mundo ainda era nascido e os povos árabes viviam sob o controle de Londres ou Paris. Os Oficiais Livres decretaram a primeira reforma agrária e proclamaram a República em 18 de junho de 1953, pondo fim a uma dinastia de 150 anos de idade. Mas que república? Depois de hesitações e confrontos, Nasser eliminou o popular Neguib na primavera de 1954: não haveria mais multipartidarismo no Egito e o Exército não iria voltar para os quartéis, uma escolha que iria afetar o futuro do país. Prevaleceria o pragmatismo em política externa. Em 19 de outubro de 1954, um tratado assinado com a Grã-Bretanha prevê a retirada das tropas britânicas, mas dentre algumas cláusulas mandatórias - uma, em especial, que previa o regresso destas tropas em caso de conflito - são mal acolhidas por muitos nacionalistas.

Nasser busca aliados no Ocidente. Ele é fascinado pelos Estados Unidos, uma potência sem passado colonial. Mas Washington não compreende a recusa do novo senhor do Egito em participar de pactos anti-soviéticos. Tudo se passa muito rápido. Nasser ajudou a fundar o movimento dos não-alinhados ao participar, em abril de 1955, da Cúpula de Bandung (Indonésia), juntamente com Sukarno, Nehru e Chou En lai.

As tentativas de negociações secretas com Israel falharam, o exército israelense atacou a Faixa de Gaza, então sob controle egípcio, e causou muitas dezenas de mortes, Nasser radicalizou seu discurso. Ele comprou da Checoslováquia, as armas que os EUA lhe haviam recusado. Nacionalizou a Companhia do Canal de Suez, em 26 de julho de 1956, após os Estados Unidos terem se recusado a financiar a construção da represa de Assuan, e saiu politicamente vitorioso da guerra que se seguiu, liderada pela França, Grã-Bretanha e Israel. Um novo líder emergiu: para os egípcios finalmente livres, para os árabes ele galvanizou a luta contra o colonialismo, em particular, através da Voz dos Árabes, a Rádio do Cairo (ler Zeghidour Slimane, "Voz dos Árabes, vida e morte do terceiro mundo, Manière de Voir, junho-julho 2006).

Após o fracasso da República Árabe Unida (união do Egito e da Síria, 1958-1961), Nasser radicalizou sua política interna: a nacionalizou grande parte do setor privado, implantou uma nova fase da reforma agrária, adotou uma Carta Nacional marcadamente socialista e a criação de uma nova frente política, a União Socialista Árabe (USA). Um enorme esforço de desenvolvimento econômico foi realizado com sucesso inegável. O eco dessas medidas ajudou a mobilizar progressistas do mundo árabe.

A guerra de junho de 1967 foi um indicativo da fraqueza da experiência nasserista. O colapso do exército reflete a traição dos que foram apelidados de "nova classe": oficiais superiores, tecnocratas, agricultores enriquecidos e burguesia estatal ... todos aqueles que se aproveitaram da "revolução" e que queriam retroceder com o socialismo.

"Ninguém melhor que Youssef Chahine ilustrou, em seu filme "O pardal", (1972), os limites do sistema: a corrupção e a extorsão camufladas sob slogans socialistas. Após a derrota de 1967, Nasser decidiu abrir um debate que rapidamente se concentrou na "nova classe". A reforma agrária fez surgirem outras desigualdades e um capitalismo rural que beneficiava uma minoria, com a grande maioria dos agricultores ficando sem terra. Nas cidades, os comerciantes e empresários, juntamente com os agentes da economia do Estado e altos funcionários e muitas vezes as autoridades - em 1964, 22 dos 26 governadores provinciais e um terço dos ministros - desviaram-se da lei e construíram fortunas. O partido único e o governo muitas vezes serviram para transferir recursos aos ricos ao passo que as mobilizações sociais foram evitadas. "(Ler "No Egito de Nasser surge uma "nova classe", "Le Monde diplomatique, junho de 2010).

Estes novos favorecidos seriam os coveiros do nasserismo e a base social que permitiiu a Sadat completar, depois de sua ascensão ao poder em 1970, a "contra-revolução". O medo da figura de Nasser, em vista de qualquer organização autônoma da sociedade (sindical ou política), o caráter burocrático da USA, incentivou a "nova classe". Finalmente, a repressão política em larga escala, o uso da tortura contra todos os adversários, desde os marxistas à Irmandade Muçulmana, a extensão do poder dos Mukhabarat (serviços secretos), marcarão o regime dos nasseristas e também de seus sucessores.

Demissionário após a derrota de 1967 e reconvocado pelo povo em 9 de junho daquele ano, Nasser passou a ser um homem alquebrado. Quando ele morreu, em 28 de setembro de 1970, os egípcios fizeram para ele um grande funeral. Apesar de lamentar seus erros, eles choravam pelo homem que lhes havia dado a dignidade. "Levante sua cabeça, meu irmão", diziam bandeirolas desfraldadas nas aldeias no Egito depois de 23 de julho de 1952. O mito Nasser continua a ser muito importante, como demonstrado pelo incrível sucesso do filme "Nasser 56", de Mohamed Fadel, de 1996, projetado em todas as telas egípcias e que atraiu vários milhões de espectadores.

Tradução : Argemiro Pertence
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