Estados Unidos derrubam casas em Kandahar

Washington, Estados Unidos, 20/12/2010 – Os supostos avanços que o governo norte-americano de Barack Obama se atribuiu na guerra que trava no Afeganistão contra o movimento extremista Talibã se sustentam em ações cada vez mais violentas contra a população civil. Os “progressos” divulgados por Washington se baseiam na tomada militar de três distritos rurais próximos da cidade de Kandahar, ao sul, capital da província de mesmo nome.

Mas esses avanços táticos implicaram aprofundar a debilidade estratégica original que os Estados Unidos têm no Afeganistão: a generalizada rejeição à presença estrangeira em todo o Sul do país, onde predomina a etnia pashtun. A ofensiva em Kandahar, abertamente rechaçada pelas autoridades provinciais, foi acompanhada por uma variedade de táticas caracterizadas pela crescente brutalidade.

A pior foi a demolição maciça de casas, tanto de aldeões que haviam fugido ou permaneciam em suas aldeias quando começou a operação comandada pelos Estados Unidos e por forças da Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan). Essa ação sem precedentes e outras igualmente duras indicam que o general David Petraeus – que comanda tanto as tropas de seu país como a Força Internacional de Assistência para a Segurança (Isaf) – deixou de lado sua pretensão de ganhar o respeito da população local nos redutos do Talibã.

Nos distritos de Arghandab, Zhari e Panjwaii as tropas norte-americanas empregaram tratores blindados, explosivos potentes, mísseis e ataques aéreos para “destruir quase todas as casas ou fazendas desocupadas nas áreas onde operam”, disse o jornal The New York Times no dia 16 de novembro. Foi a primeira notícia sobre demolição de casas em grande escala.

Nem os funcionários norte-americanos nem os afegãos apresentam números sobre a quantidade de moradias demolidas, mas um porta-voz do governo de Kandahar disse ao jornal que é “enorme”. Ao confirmar essas ações, o coronel Hans Bush, porta-voz de Petraeus, argumentou que eram necessárias porque muitas casas eram verdadeiras “armadilhas” de explosivos.

Mas Bush também reconheceu que as tropas norte-americanas estavam empregando várias “ferramentas” para eliminar florestas onde os guerrilheiros poderiam se esconder e que as demolições obedeciam, principalmente, à preocupação da Isaf sobre a guerra que o Talibã trava com o uso de explosivos improvisados.

O jornalista Rajiv Chandrasekaran revelou no dia 18 de junho no The Washington POost que em uma operação em Zhari os militares usaram mais de 10 M58, uma cadeia de explosivos atados a um foguete usado para detonar e limpar campos minados e que destruíram tudo, casas, árvores e plantações, abrindo amplos caminhos para a passagem dos tanques.

O governador de Arghandab, Shah Muhammed Ahmadi, reconheceu que aldeias inteiras foram destruídas, e acrescentou que já não havia moradores nelas. Mas o coronel David Flynn, comandante de uma unidade da 101ª Divisão do Ar e responsável por essa área, negou que as demolições foram feitas apenas quando não havia moradores.

Flynn disse ao jornal britânico Daily Mail que ele deu um ultimato à população da aldeia de Khosrow: ou lhe entregavam toda informação sobre os explosivos que o Talibã havia colocado ou a aldeia seria destruída. As baixas sofridas por um de seus pelotões foram de 50%. Mais tarde, Flynn afirmou que os moradores reagiram retirando eles mesmos os explosivos, segundo Carl Forsberg, do Instituto para o Estudo da Guerra.

O pesquisador Alex Strick Van Linschoten, um dos únicos dois civis ocidentais que viveram nos últimos anos em Kandahar, afirmou que a mesma informação recebera pela boca de uma migo. Mas Linschoten disse à IPS que, segundo um testemunho, outros dois povoados da zona de ação de Flynn foram arrasados e um ficou “reduzido a pó”.

A ameaça de destruir uma aldeia caso os moradores não dessem informações constitui um castigo coletivo contra a população civil proibido pelo Convênio de Genebra Relativo à Proteção Devida às Pessoas Civis em Tempo de Guerra, em vigor desde 1950. Não está claro o alcance que teve a ameaça de demolioçao em Zhari e Panjwaii e quantas aldeias foram destruídas diante da negativa em fornecer informação.

Segundo dados do Departamento de Defesa, em todo mês de outubro só recebeu uma informação da população sobre 13 explosivos improvisados em todo país. Isto sugere que nada saiu das bocas dos habitantes das recém-ocupadas aldeias dos três distritos de Kandahar. Estas medidas, como os castigos coletivos, fazem parte de uma estratégia maior, dirigida a pressionar a população pashtun da zona sul.

Os habitantes das forças especiais contra supostos talibãs triplicaram desde que Petraeu assumiu o comando em junho, embora seu antecessor, Stanley McChrystal, houvesse indicado que despertavam a fúria dos afegãos contra as tropas estrangeiras.

Embora nessas operações tenham morrido ou acabaram capturados muitos chefes talibãs, também afetaram milhares de pessoas que apoiavam de forma periférica esse movimento islâmico e radical que controlou boa parte do país entre 1996 e 2001. Esta forma de enfraquecer a insurgência talibã está destinada a perpetuar o ciclo; mais pashtunes prometerão se vincar contra os estrangeiros e rejeitarão o governo central.

O jornalista Anand Gopal, especializado em Afeganistao e que fala o idioma poashtun, descobriu outra forma de castigo coletivo praticado pelos Estados Unidos. habitantes do distrito de Zhari o informaram de dois casos em que tropas norte-americanas e afegãos prendiam toda a população de uma aldeia onde recebiam disparos de armas leves, disse Gopal à IPS.

As demolições parecem ter afetado vários milhares de pessoas e “enfureceram muita gente que passará fome e frio nos próximos meses”, disse à IPS uma fonte norte-americana que pediu para não ser identificada. Par ao comando da Otan não importa este aspecto. Um alto oficial disse que obrigando as pessoas a se queixarem ao governo local pelo dano em suas propriedades “conecta-se o povo com seus governantes”.

O comandante Nick Carter disse em uma entrevista ao canal AfPak que a demolição de casas “permite ao governador do distrito unir-se à população”. Haverá ligação, mas de caráter muito negativo. Um chefe ancião tribal de Panjawaii foi citado pelo Post rejeitando a compensação pelas causas destruídas por se tratar de “uma cortina de fumaça”.

A brutalidade aplicada em Kandahar mostra que Petraeus jogou fora a ideia central de sua estratégia contrainsurgente de que a repressão armada minaria o objetivo central de ganhar a população. Mas os chefes no terreno sabem muito bem que assim não derrotarão o Talibã. Flynn, por exemplo, disse ao Daily Mail que “aqui não se pode conseguir a vitoria matando. Terá de haver uma solução política”. Envolverde/IPS

*Gareth Porter é historiador e jornalista investigativo especializado na política de segurança nacional dos Estados Unidos. Seu último livro, “Perils of dominance: Imbalance of Power and the Road to war in Vietnã”, foi editado em 2006.

(IPS/Envolverde)

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