É óleo no mar, é maré cheia...

Subvertendo o clássico samba eternizado na voz de Clara Nunes, o acidente com a plataforma Deepwater Horizon no Golfo do México (EUA) fez muita gente se perguntar: e se fosse aqui no Brasil?

Pra início de conversa, o temor é absolutamente justificável. Muita gente percebeu que o acidente aconteceu numa plataforma super-moderna, sob responsabilidade de uma empresa (BP) que detém ótimos registros de segurança operacional, em um país constantemente citado pela eficácia e eficiência de sua regulação no setor petrolífero.

Como pôde? 

Esse desastre ilustra muito bem uma máxima que os americanos adoram: shit happens. Em português polido, algo como “acontece”. É isso aí. Na indústria do petróleo, assim como em qualquer outra indústria, acidentes “acontecem”. O pessoal que trabalha com análise de risco costuma brincar que a questão não é se um acidente vai ocorrer, e sim quando ele ocorrerá, uma vez que as falhas que levam aos acidentes podem ser expressas de forma probabilística e todas acontecem, desde que você considere um tempo longo o suficiente. Então, é possível afirmar que o acidente com a plataforma da BP aconteceu nos Estados Unidos, mas poderia ter ocorrido aqui ou em Angola ou na Noruega. 

Outra questão que o acidente no Golfo do México ilustra muito bem é: não adianta chorar sobre o óleo derramado. Ou melhor, adianta muito pouco. A recuperação do óleo jogado no mar é tarefa extremamente ingrata, mesmo com as melhores tecnologias disponíveis. Em condições ótimas, tempo bom, resposta rápida, equipamentos modernos, uma ação de contingência consegue recuperar de 10 a 15% do óleo cru derramado no oceano. Se algum fator complicador estiver presente, como ventos, correntes ou ondas, esse percentual é reduzido consideravelmente. 

Nesse caso, é interessante refrescar a memória e lembrar do acidente com o navio petroleiro Prestige, que afundou em 2002 a uma distância de 250 km da costa da Espanha. Naquele episódio, sobre o qual há farta bibliografia disponível, foi mobilizada grande parte da estrutura europeia de resposta a derramamentos, com dezenas de embarcações e toneladas de equipamentos, para atuar no combate a um vazamento consideravelmente distante da costa. Ainda assim, mais de 1000 quilômetros de litoral foram severamente poluídos pelo óleo transportado pelo Prestige. Para um resumo do que foi o acidente, vale uma olhada em http://etc-lusi.eionet.europa.eu/en_Prestige "> http://etc-lusi.eionet.europa.eu/en_Prestige (em inglês). 

Ora, sabendo que acidentes “acontecem” e que a possibilidade de recuperação do óleo no mar é muito reduzida, e agora, José? 

Bom, vamos deixar claro que esta não é uma demonização da exploração marítima de petróleo, nem um manifesto terrorista contra o desenvolvimento da indústria petrolífera. A questão que realmente importa aqui é: a exploração petrolífera possui riscos inerentes às suas atividades que podem ser gerenciados e reduzidos, mas nunca podem ser removidos completamente. Toda sociedade que explora petróleo precisa ter clareza disso. 

Parece óbvio, não? Mas às vezes a gente ouve uns discursos que parecem desconsiderar essa obviedade. Aqui no Brasil tem gente que acha que é só tomar cuidado que os acidentes não acontecem. E que se eles acontecerem, “pode deixar que a empresa tem os equipamentos de emergência”. Bom... espera-se que o acidente no Golfo do México ajude a esclarecer essas pobres cabeças limitadas. 

Mas voltemos à pergunta inicial: e se fosse aqui no Brasil? 

Olha, a situação seria de fato preocupante. Os EUA têm mais recursos físicos, tecnológicos, humanos e financeiros para o combate a derramamentos. E lá as agências reguladoras são muito mais estruturadas, experientes e coordenadas – até em função de acidentes anteriores. E nós por aqui ainda estamos patinando para aprovar um Plano Nacional de Contingência... 

Apesar disso, existem aspectos da nossa experiência que precisam ser registrados e divulgados, especialmente aqueles ligados ao licenciamento ambiental das atividades marítimas de petróleo. A Coordenação Geral de Petróleo e Gás (CGPEG) do IBAMA, vinculada à Diretoria de Licenciamento Ambiental (DILIC), tem conseguido alguns avanços nessa área apesar das dificuldades. 

Durante alguns anos, desde o início do licenciamento ambiental das atividades marítimas de petróleo há cerca de 10 anos atrás, o Plano de Emergência Individual (PEI) requerido legalmente era uma peça de ficção, existente apenas no papel. E, como se sabe, o papel aceita tudo. Assim, os PEIs eram analisados em sua concepção teórica e aprovados no decorrer do processo de licenciamento. 

Recentemente, esse cenário vem sendo alterado com o acompanhamento, por parte da CGPEG/IBAMA, da realização dos Simulados de Emergência. Os Simulados são exercícios para verificação da viabilidade das medidas previstas nos Planos de Emergência das instalações petrolíferas marinhas, onde são testados os procedimentos de comunicação, mobilização de recursos e efetividade da resposta aos derramamentos de óleo. Esses exercícios vem sendo exigidos pelo IBAMA no processo de licenciamento para que as empresas comprovem sua capacidade de resposta aos acidentes, sem o que as licenças ambientais não são emitidas. 

No caso da Petrobras, considerando que o número de plataformas em operação no litoral brasileiro é de aproximadamente uma centena, a saída encontrada em conjunto com a empresa foi a realização de Simulados por área geográfica (Bacia de Santos, Bacia de Campos, etc.). 

O que se vê, no entanto, é que as empresas – e em especial a Petrobras, pelo volume de operações – estão passando de raspão nesses exames, apesar de todo o esforço. São raros os exercícios de simulação onde não se tenha problemas com o lançamento de barreiras, ou falhas de comunicação, ou defeito em embarcações, ou todas as alternativas anteriores. Nesses casos, o IBAMA tem atuado exigindo a correção dos erros e, eventualmente, a realização de novo exercício completo. 

A situação fica ainda mais crítica quando avaliamos blocos situados muito próximos de áreas ambientalmente relevantes. Podemos citar, por exemplo, a existência de blocos petrolíferos a menos de 10 km do litoral paradisíaco do baixo sul da Bahia, ainda em licenciamento ambiental. Nesses casos, se um vazamento de óleo “acontecer”, não há plano de emergência que dê conta de evitar uma tragédia ambiental. Vale a pena explorar o óleo nessas condições? A sociedade – num sentido bem amplo – precisa ter plena clareza dos riscos e benefícios envolvidos nessa exploração. 

A boa notícia é que a estratégia dos Simulados tem proporcionado um grande aprendizado tanto para as empresas quanto para o IBAMA, que agora conhecem muito melhor os desafios e os pontos críticos para o atendimento a derramamentos de óleo no mar. A má notícia é que tem ficado cada vez mais clara a escassez de equipamentos de atendimento a emergências no país. Os recursos existentes estão sendo compartilhados no limite das possibilidades e a tendência é que sejam o caminho crítico para o licenciamento ambiental de atividades num futuro bem próximo. Traduzindo: muito em breve, ou se colocam novas embarcações e equipamentos à disposição nas áreas geográficas, ou não será possível aprovar tecnicamente os planos de emergência propostos pelas empresas. 

Essa escassez de recursos não é novidade nem para as empresas, nem para o governo. Tanto é que em dezembro de 2008 foram comissionados dois projetos (MA05 e MA06) pelo Comitê Temático de Meio Ambiente do PROMINP para trabalhar essas questões. No entanto, um ano e meio depois esses projetos ainda não saíram do lugar. Utilizando os métodos do PAC, bolinha vermelha neles! 

Por fim, é fundamental ressaltar a importância de uma melhor estrutura para a carreira de especialista em meio ambiente, motivo pelo qual os servidores de IBAMA, ICMBio, SFB e MMA estão em greve há quase um mês e já tiveram o ponto cortado pelo Ministério do Planejamento. Não dá pra falar sério em regulação ambiental de excelência sem a valorização dos profissionais que trabalham nessas instituições. 

No licenciamento de petróleo, especificamente, é preciso profissionais experientes, constantemente capacitados e atualizados, para que se estabeleça um diálogo técnico em pé de igualdade com as empresas do setor. Não é trivial treinar um analista ambiental para fazer vistorias técnicas em plataformas de petróleo em alto-mar, ou realizar a avaliação de um PEI e de Simulados de Emergência. Hoje em dia, no licenciamento de petróleo do IBAMA, a maioria dos analistas ambientais cursou ou está cursando mestrado ou doutorado e não possuem nenhum incentivo para isso. Ou seja, são eternos candidatos a aumentar os índices de evasão da carreira de especialista em meio ambiente... 

E sem esse pessoal para forçar o aprimoramento de procedimentos de controle e falar de igual pra igual com os técnicos das empresas... é melhor deixar só a água no mar.


(Envolverde/O autor)

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