Aborto, moeda de pacto e de poder na América Latina

Caracas, 8/3/2010 – A América Latina é um reduto contra o direito das mulheres decidirem sobre sua gravidez e, apesar de a maioria de seus governantes se proclamarem progressistas, apenas em um país o aborto está despenalizado, enquanto em cinco é crime mesmo se a gestação representar risco de vida para a mãe.

As draconianas leis de penalização – com exceções muito rígidas, quando existem – não impedem que o índice de abortos seja de 31 para cada mil mulheres, duas a mais do que a média mundial. Essas legislações apenas convertem sua prática em clandestina e insegura e, em consequência, na segunda causa latino-americana de mortalidade materna.

“O machismo é chave. A concepção patriarcal de nossas sociedades é tal que não custa tanto negar esse direito. Se a consciência social sobre a igualdade estivesse bem assentada, seria muito mais difícil para os governos progressistas negarem direitos vinculados a essa igualdade”, disse à IPS a socióloga uruguaia Moriana Hernández.

“É fácil negociar sobre o corpo das mulheres por esse peso patriarcal”, disse a responsável pela campanha por uma educação não sexista e não discriminatória do Comitê para a América Latina e o Caribe para a Defesa dos Direitos da Mulher (Cladem).

Assim, o aborto serve de moeda de negociação entre governantes e poderes conservadores, embora todos saibam que, na região, são mais de quatro milhões de interrupções clandestinas de gravidez a cada ano, às quais associam-se mais de quatro mil mortes evitáveis, o que em países como Argentina significa que para cada nascimento há quase um aborto induzido.

Para Hernández e outros analistas, a estagnação ou o retrocesso do direito das mulheres de decidir é consequência da fundamentalista ofensiva da Igreja Católica para manter a América Latina como terra livre do aborto, ao menos o legal.

“A igreja sempre perseguiu o aborto, mas agora é um tema que a exacerba fora de toda proporção, e não apenas o aborto, mas também a educação sexual, quando, na realidade, não há propostas novas nem radicais”, disse Hernández.

Na última década, a região esteve inclinada à esquerda. Porém, ao mesmo tempo, na Nicarágua, em 2006, foi eliminada toda exceção à criminalização do aborto, no Uruguai um veto presidencial anulou, em 2008, sua legalização legislativa e na Rodada de Doha a vida passou, em 2009, a ser um direito constitucional desde a concepção.

De fato, as melhores notícias sobre o direito feminino de decidir vieram de dois países governados pela direita. Na Colômbia, o Supremo Tribunal estabeleceu, em 2006, três possibilidades em que o aborto deve ser permitido – e facilitado –, e no Distrito Federal do México, um ano depois, foi legalizado o aborto até as 12 semanas de gestação.

Entretanto, a medida adotada pelo legislativo do Distrito, onde fica a capital mexicana e vivem 18 milhões de pessoas, desatou uma “furiosa contrarreforma” por parte da Igreja, nas palavras de Hernández, que levou 17 dos 32 Estados do país a proibir radicalmente o aborto.

Rita Segato, antropóloga argentina e pesquisadora da Universidade de Brasília, afirma fervorosamente que a Igreja é contra a despenalização do aborto por razões diferentes da defesa da vida. “Se esta importasse, a hierarquia católica estaria em outras frentes com a mesma garra, defendendo a vida”, ressaltou.

“A ela interessa neste momento manter sua influência” sobre os Estados, explicou em uma entrevista, e é por isso que entra em uma competição de autoridade com o feminismo latino-americano.

“Ainda mando aqui” e faço com que nas leis “meu perfil ideológico esteja retratado, e vencerei”, é a mensagem da hierarquia católica, segundo a antropóloga. O relançamento da criminalização do aborto “é uma guerra de influências”, resumiu.

A seu ver, como as leis têm um fim diferente do qual expressam, são muito ineficazes em seu propósito aparente. “Católicas, não católicas, evangélicas”, todas abortam a cada dia, porque não consideram estar cometendo um crime penal ou ético, concluiu.

Para Hernández, a Igreja está especialmente agitada porque agora há uma visível e crescente consciência sobre a importância do direito ao aborto na região, “impensável há dez ou mesmo cinco anos”.

“Na agenda feminista, sempre foi um ponto cardeal, mas por anos faltou um movimento popular com consciência sobre sua importância. Era um tema desprezado”, afirmou.

Vinculou a negociação sobre o corpo das mulheres na penalização do aborto com o fato de que esta região seja aquela “onde a violência de gênero é gigantesca”, apesar de na América existir a única convenção continental contra a violência machista e em todos os países há leis, algumas avançadas, para enfrentá-las.

“A uma sociedade que admite a violência dos homens contra as mulheres, tampouco se pode pedir que não aceite que a mulher seja impedida de decidir sobre sua gravidez, outro assunto vinculado ao corpo”, disse a veterana lutadora feminista uruguaia.

A sanha com que se manifesta nos últimos tempos essa violência e a ofensiva contra toda despenalização legal do aborto teriam uma origem comum: aumentam na medida em que o poder patriarcal é mais questionado, disse Hernández.

Por isso, a integrante do Cladem disse que é preciso olhar além, “porque não houve apenas retrocessos”.

“Há marchas e contramarchas, como demonstra o caso do México, e há um risco de simplificação se medirmos os avanços apenas pelo que fazem os governos, sem ver atuações políticas, sociais e sindicais que estão por trás”, ressaltou.

“Agora existe um estado de discussão sobre o direito ao aborto como nunca tivemos, e é uma corrente que aumenta dia a dia”, afirmou, e o fruto disso é a combatividade que manifestam as mulheres no Dia pela Despenalização do Aborto, que a região celebra todo dia 28 de setembro, desde 1990.

Também é uma das principais bandeiras das organizações femininas no Dia Internacional da Mulher, celebrado hoje, especialmente este ano quando a igualdade de direitos e de oportunidades é o tema das Nações Unidas para essa data.

Hernández citou o Uruguai como exemplo das complexas leituras sobre o problema. Tabaré Vázquez, que encerrou seu mandato presidencial este mês, e governou com a esquerdista Frente Ampla, vetou, em novembro de 2008, a legalização do aborto incluída em uma lei sobre saúde reprodutiva aprovada graças à sua própria maioria.

Contudo, olhar apenas para o veto não deixa ver outros elementos: uma sólida maioria de senadores e deputados aprovou a despenalização do aborto, pelo menos 63% dos uruguaios se manifestaram em pesquisas pela legalização, e as centrais sindicais, tradicionalmente um espaço muito masculino, apoiaram decididamente a lei.

Também houve avanços práticos. A lei manteve a obrigação de todos os médicos e centros de saúde informarem sobre os métodos seguros de interrupção voluntária da gravidez, embora não possam praticá-los. Devem atender as que chegarem com complicações por causa de um aborto, sem perguntas e sem denúncias.

Quando presidentes progressistas, como Luis Inácio Lula da Silva, a argentina Cristina Fernández, o nicaraguense Daniel Ortega, ou o equatoriano Rafael Correa, se congraçam com a Igreja e outros setores conservadores sustentando uma linha dura quanto ao aborto, geram contradições com suas próprias bases políticas e sociais, que para eles ou seus sucessores serão de difícil manejo no futuro, analisou.

“As sociedades latino-americanas estão maduras para a despenalização do aborto. Esse é um fato inquestionável”, afirmou Hernández. Porém, este é um tema “no qual ninguém cederá um passo sem ser forçado, e para isso ocorrer também passa pela criação de uma massa crítica de homens a favor do direito de as mulheres decidirem”, concluiu.

O que dizem as leis


No início de 2010, havia na América Latina 11 países com governos catalogados de progressistas (Brasil, Argentina, Bolívia, Chile, Cuba, Equador, El Salvador, Nicarágua, Paraguai, Uruguai e Venezuela), seis considerados de direita ou centro-direita (Colômbia, Costa Rica, Honduras, México, Panamá e Peru) e outros dois vistos como sendo de centro (Guatemala e República Dominicana).

Deles, em Honduras, Chile, El Salvador, Nicarágua e República Dominicana o aborto está proibido, sem exceção legal explícita nem para salvar a vida da mãe. Contudo, em Honduras, o Código de Ética Médica permite interromper a gravidez se a vida da gestante corre perigo.

Cuba é o único país onde a interrupção voluntária da gravidez é legal, desde 1965, até 12 semanas de gestação, e a isso vinculam os especialistas o fato de a taxa de abortos ser inferior a 21 para cada mil mulheres em idade reprodutiva, dez pontos abaixo da média regional.

Na Argentina, Costa Rica, Paraguai e Venezuela o aborto é permitido apenas para salvar a vida da mãe. Na Argentina também é facultativo quando a mulher é “idiota ou demente”, e na Venezuela há causas eximentes, como proteger “a honra” da mulher e “a honra” do homem.

No Brasil, Equador, Uruguai, Bolívia e Guatemala é permitido em casos de violação ou incesto, sendo que no caso uruguaio a angústia econômica também pode ser causa para o aborto. Na Colômbia, no México – onde não há legislação específica nacional –, e no Panamá soma-se às duas causas anteriores a referente à má formação do feto para permitir o aborto. IPS/Envolverde

(IPS/Envolverde)
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