Ambientalistas coincidem em denunciar projetos imobiliários que roubaram espaços dos canais de deságue, que no final de semana transbordaram com uma força incomum em uma furiosa torrente cinza, arrastando lama, pedras e árvores em sua passagem pelas ruas de Funchal, destruindo casas, pontes, ruas e estradas. Até a manhã de domingo, havia 42 mortos, 70 feridos graves e um número incerto de desaparecidos, com estimativas não oficiais de 40 a 200, temendo-se que mais mortos possam ser encontrados nos estacionamentos inundados de grandes centros comerciais.
Os serviços estão parcialmente cortados, especialmente luz, água e comunicações, enquanto as escolas e a administração pública fecharam suas portas e Lisboa decretou três dias de luto nacional. O excesso de água, combinado com a geografia da Madeira, rica em declives acentuados do interior até o litoral, permitiram que o forte temporal, que se concentrou em poucas horas, formasse rios de lama que varreram tudo que encontraram pelo caminho, com pedras e blocos de cimento saltando como bolas de tênis.
A Madeira não possui radar meteorológico, que teria permitido avaliar a potência da precipitação das nuvens que se aproximavam, lamentou Ricardo Trigo, especialista em clima do Centro de Geofísica da Universidade de Lisboa. Apesar de reconhecer a magnitude da tempestade, os ambientalistas não vacilam em acusar as opções urbanísticas do arquipélago de 250 mil habitantes, localizado de frente para a costa atlântica do Marrocos, cuja principal fonte de renda é um fortíssimo turismo, ativo nos 12 meses do ano.
O forte índice pluviométrico “contribuiu com o que ocorreu, mas não foi a única causa, já que a situação foi agravada por erros de ordenamento territorial cometidos na ilha”, afirmou Hélder Spínola, membro da direção da Quercus, a maior organização ambientalista do país. O Partido Ecologista Verde (PEV) criticou, em um comunicado divulgado no domingo, “os erros de ordenamento territorial e urbanístico permitidos em favor de interesses privados, que depois têm efeitos devastadores” em situações climáticas com esta.
Devido à forte pressão imobiliária do setor turístico, a construção de ruas e vias de acesso a edifícios estrangulou o curso das águas pelos canais de Funchal, que seguem um rumo paralelo às principais artérias da cidade, impedindo o deságue natural até o mar. Do campo crítico também faz parte Ricardo Ribeiro, presidente da Associação Portuguesa de Técnicos de Segurança e Proteção Civil. Ribeiro mencionou a construção abusiva em ladeiras de morros sujeitos a inundações, a impermeabilização dos solos e o encadeamento mal dimensionado dos cursos e linhas de água.
Essas acusações foram rebatidas por Alberto João Jardim, presidente do governo da Região da Madeira, lembrando diversas intervenções praticadas na área para minimizar o risco de inundações. Também o prefeito de Funchal, Miguel de Albuquerque, respondeu às críticas. “É ridículo falarem dessas situações”, disse. Pode ter havido “uma ou outra opção urbanística errada”, mas não se pode responsabilizá-las pelo desastre que aconteceu.
O ambientalista Spínola citou os exemplos dos canais de São João, de Santa Luzia e de João Gomes, os três principais deságues da Madeira, que. ao sofrerem estrangulamentos que os impediram de percorrer o curso normal até o mar, transbordaram e destruíram casas, ruas e pontes. “Houve um componente natural, mas também há um humano e de prevenção, que foram os que falharam”, ressaltou. Funchal cresceu muito nos últimos 20 anos, “especialmente com a ocupação crescente das áreas mais baixas, para onde corre a água”, acrescentou.
A ex-deputada do PEV, Isabel de Castro, ativa defensora do meio ambiente, disse à IPS que é preciso analisar o problema no quadro global do ocorrido em todo o país nas duas últimas décadas. Apesar de “Portugal contar com uma das leis mais avançadas do mundo e a Constituição consagrar o meio ambiente como um direito fundamental, existe um abismo entre o país legal e o país real”, disse. Existe “um abandono das políticas públicas de defesa e promoção de um ambiente ecologicamente equilibrado, com crescente falta de responsabilidade do Estado”, acrescentou.
Castro deplorou “a manutenção das estruturas fiscalizadoras ou sua precariedade, a falta de vontade política e de visão prospectiva, bem como a impunidade instalada, que favorece os atentados e a degradação ambiental”. Além disso, “com a cumplicidade, por omissão, de sucessivos governos, nosso patrimônio está morrendo, está sendo destruído, em nome do lucro imediato e fácil”, ressaltou. “Este país vive um empobrecimento dos solos, mais da metade do território está ameaçada pela desertificação, um terço sofre erosão grave, acentua-se o desequilíbrio demográfico, com um quarto dos 10,6 milhões de portugueses expulsos dos campos para as cidades”, disse a ecologista.
Aproximadamente 20% da população se trasladou do interior para o litoral, onde se concentra 90% da atividade econômica. Isto conduz a “um desordenamento do território e ao caos urbanístico”, com a consequente “cimentização”, sob o pretexto do “interesse público”, inclusive em áreas de risco, disse Castro. Foi o caso da Madeira, que acabou em tragédia para muitas pessoas e para a própria ilha. IPS/Envolverde
(IPS/Envolverde)