Ante a expansão da guerra, quais as perspectivas da “guerra justa” de Obama?
Se se comparam a ocupação pelos soviéticos e a ocupação pelos norte-americanos no Afeganistão, duas diferenças enormes saltam à vista. O regime criado pelos EUA é muitas vezes mais fraco que o regime que a URSS protegia. O regime apoiado pelos soviéticos tinha genuína base local, por mais que os soviéticos a tenham maltratado: diferente da atual simples força de ocupação, o Partido Democrático do Povo do Afeganistão, ing. People's Democratic Party of Afghanistan (PDPA)] construiu exército e administração capazes de sobreviver à partida dos soldados soviéticos. O governo de Najibullah acabou por ser derrubado, mas exclusivamente porque os golpistas receberam massiva ajuda externa dos EUA, da Arábia Saudita e do Paquistão. E aí, no tipo de ajuda, encontra-se a segunda e decisiva diferença. Ao contrário dos soldados que entraram em Cabul em 1992, financiados e armados até os dentes por potências estrangeiras, a Resistência afegã de hoje não está, de modo algum, completamente isolada [das massas populares]: vergonha, não só para Washington, mas também para Moscou, Pequim, Dushanbe, Tashkent, Teerã, capazes, no máximo, de obter tolerância furtiva, esporádica, de Islamabad.
Eis por que a comparação com o Vietnã, embora significativa em vários campos – no campo moral, político e ideológico – não é igualmente significativa em termos militares.
Num plano, pode-se dizer que a arrogante escalada que Obama inventou para o Afeganistão mistura a ira de Kennedy em 1961 e a ira de Johnson em 1965, e, até mesmo, também, a ira de Nixon em 1972: o bombardeio contra o Camboja é indiscutivelmente muito semelhante ao que se vê acontecer hoje no Paquistão. Mas não há alistamento obrigatório a atormentar a juventude norte-americana; não há russos e chineses para apoiar os guerrilheiros resistentes; e não há solidariedade anti-imperialista operando para fragilizar o sistema ‘em casa’.
Ao contrário disso, como Obama gosta de explicar e repete sempre, são nada menos que 42 países[1][1], todos empurrando para que o patético fantoche dos EUA em Cabul dance em compasso com a música. Mas não há qualquer possibilidade de uma segunda edição de Saigon.
As infindáveis ‘análises’ de repetição so bre o fim da hegemonia dos EUA – clichê universal do período atual – é mais um meio pelo qual a propaganda opera para impedir que se constitua oposição séria dentro dos EUA, contra a ocupação do Afeganistão.
Se se precisar de ilustração de manual, para ver a perfeita continuidade da política exterior dos EUA, governo após governo, e a futilidade de tantas tentativas cabeça-fraca de definir como excepcionais os anos Bush-Cheney, mais do que essencialmente convencionais como de fato são, basta considerar a conduta de Obama. De um extremo ao outro do Oriente Médio, a única mudança material significativa foi o aprofundamento da Guerra ao Terror – ou guerra “contra o Mal”, como Obama prefere – contra o Iêmen, já posto hoje como o próximo alvo.[2][2] Todo o resto da história é praticamente idêntica. “Rendições” – codinome para tortura – são rotina, enquanto os torturadores continuam a viver boa vida na Flórida e por toda a parte, ignorando os tratados de extradição, sob a proteção de Obama. Continuam as escutas ilegais em território norte-americano. Subestima-se o risco de golpe militar na América Central. Novas bases militares brotam a cada dia, na Colômbia.
À moda Wilson
Apesar de tudo isso, seria erro grave supor que nada mudou. Nenhum governo é exatamente igual ao anterior. Cada presidente deixa sua marca pessoal. E é verdade que bem pouca coisa mudou no domínio imperial dos EUA sob Obama.[3][3] Mas, em termos da qualidade da propaganda, houve melhora.
Não é acaso que um dos principais colunistas da grande imprensa – e dos mais inteligentes – tenha listado, como os cinco principais eventos políticos de 2009, exatamente cinco discursos de Obama.[4][4] No Cairo, na Academia de West Point, em Oslo, o mundo foi tratado como curral, cada um dos discursos mais carregado que o ant erior com todos os elegantes eufemismos conhecidos pelos escrevinhadores de discursos da Casa Branca para descrever a luminosa missão dos EUA como salvadores do mundo, pequenos toques de “medo e horror” e plena convicção da responsabilidade que caberia aos EUA e que os EUA assumem e aceitam.
O tom característico é “Temos de falar de coração aberto”. “Nosso país tem missão especial nos negócios globais. Há sangue norte-americano derramado em muitos países e continentes. Gastamos dinheiro nosso para ajudar a reconstrução de outros países, muitas vezes reduzidos a ruínas, e para desenvolver as economias locais. Unimos-nos a outros para desenvolver uma arquitetura de instituições – ONU, OTAN, até o Banco Mundial – que garanta segurança e prosperidade comuns para todos”. “A luta contra o extremismo violento não será rápida, e irá além de Afeganistão e Paquistão (...). Nosso esforço envolverá regiões desestruturadas, Estados falidos, inimigos difusos”. “Nossa causa é justa, nossa decisão inabalável. Avançaremos com a confiança que gera competência”. Há ‘tensões’ no Oriente Médio ( o termo ocorre nove vezes no discurso dirigido à claque de Mubarak em al-Azhar), e “uma crise humanitária” em Gaza. Mas “os palestinos têm de renunciar à violência” e “o povo iraquiano está mais bem preparado para as ações norte-americanas”. Em Oslo: “Que ninguém se engane: o mal existe no mundo.” “Dizer que vez ou outra é preciso usar a força não é apelar ao cinismo – é reconhecer a história, as imperfeições do homem e os limites da razão.” No Cairo: “É errado resistir com atos de violência e morte”. Em resumo: se os EUA ou Israel fazem guerra, fazem-no porque são obrigados por duro e difícil dever moral. Se os palestinos, iraquianos ou afegãos resistirem àquela guerra, é ato imoral abominável. Como Obama gosta de dizer, “Somos todos filhos de Deus”, “Deus os abençoe”, “Deus abençoe os EUA”, e “essa é a visão de Deus”.[5][5]
Se banalidades altissonantes e hipocrisia blindada são as marcas do estilo presidencial de Obama, nem por isso o estilo é menos funcional a serviço e como conserto-reparação das instituições que Obama e Hilária Clinton hoje presidem. A opinião pública internacional sempre tendeu historicamente a reverenciar os líderes norte-americanos, e nada feriu mais fundamente a imagem dos EUA na opinião pública internacional, que a falta de compostura de Bush e Cheney, o ‘à vontade’ com que expunham os próprios negócios e ofereciam aliados ao escárnio.
Historicamente, o principal modelo dessa presidência imperial reverenciada foi Woodrow Wilson, cristão profundamente religioso, que não enunciava sentença em que não aparecessem várias vezes as palavras “paz”, “democracia” e “autodeterminação” – ao mesmo tempo em que seus exércitos invadiam o México, ocupavam o Haiti e atacavam a Rússia; e seus tratados entregavam colônia após colônia aos seus parceiros de guerra. Como Obama em 2009, Wilson também recebeu, em 1919, o Prêmio que García Márquez chamou de “Prêmio Nobel da Guerra”.
Obama é uma versão simplificada desse modelo; e sequer tem os “14 Pontos” (NT) para limitar sua ação. Sem dúvida ainda avançará muito para satisfazer seus compadres.
Depois de muito mentir aos eleitores – prometeu paz e entregou mais guerra –, Wilson foi reeleito para um segundo mandato, que não terminou bem para ele. Em tempos mais combativos, Johnson foi obrigado a conter a ignomínia de sua guerra do Vietnã e não conseguiu engambelar todos os eleitores todo o tempo pela segunda vez. 12 anos depois, um fracasso em Teerã ajudou a enterrar Carter. Se as duas recentes derrotas dos Democratas, em West Virginia e New Jersey – onde os eleitores Democratas não compareceram às urnas – são amostra de algo, Obama poderá ser o terceiro presidente de um só mandato, abandonado pelos que o apoiaram e alvo da zombaria dos que tanto disse que desejava reconciliar.
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Notas:
(19) Em Oslo, Obama pôde congratular-se com o Comitê do Prêmio Nobel, porque lá estão, no Afeganistão, também soldados noruegueses (como também da Albânia, Alemanha, Armênia, Austrália, Áustria, Azerbaijão, Bélgica, Bósnia e Herzegovina, Bulgária, Canadá, Cingapura, Croácia, República Tcheca, Dinamarca, Emirados Árabes Unidos, Eslováquia, Eslovênia, Espanha, Estônia, Finlândia, França, Geórgia, Grécia, Hungria, Islândia, Irlanda, Itália, Jordânia, Latvia, Lituânia, Luxemburgo, Macedônia, Países Baixos, Nova Zelândia, Polônia, Portugal, Reino Unido, Romênia, Suécia, Turquia e Ucrânia).
(20) Dia 27/12/2009, Obama anunciou que estava dobrando o gasto militar dos EUA no Iêmen. The Economist observou que “de seu [de Obama] ponto de vista, as forças especiais e os mísseis-robôs teleguiados norte-americanos têm andado mais ocupados do que nunca, não só no Afeganistão e no Paquistão, mas também, como informam os jornais, na Somália e no Iê men” (30/12/2009).
(21) A decepção de muitos partidários de Obama veio à tona com inesperada rapidez, comparada ao longo caso de amor que ligou os mesmos democratas e Bill Clinton. Mas a explicação que ofereceram quase sempre culpou limitações estruturais, mais do que o próprio presidente: Garry Wills vê um presidente bem-intencionado colhido nas arapucas do aparato imperial dos EUA (‘The Entangled Giant’ [O gigant e aprisionado], New York Review of Books, 8/10/2009); Frank Rio atacou furiosamente os lobistas que teriam impedido Obama “de cumprir a promessa de fazer com que os norte-americanos voltassem a confiar em seu governo” (‘The Rabbit Ragu Democrats’, New York Times, 3/10/2009). Para Tom Hayden, a decisão “executiva” de mandar mais soldados para o Afeganistão seria “a última, de uma sequência de decepções”, apesar de Obama ter dito, na campanha, que faria o que fez; Hayden, embora avise que estará alerta, continua “a apoiar Obama em sua caminhada” (‘Obama’s Afeganistão Escalation’, Nation, 1/12/2009).
(22) Gideon Rachman, ‘The Grim Theme Linking the Year’s Main Events’, Financial Times, 23/12/2009.
(23) ‘Remarks by the President on a New Beginning’, Cairo, 4/6/2009; ‘Remarks by the President to the Nation on the Way Forward in Afeganistão and Pakistan’, West Point, 1/12/2009; Discurso à Academia Sueca, Prêmio Nobel, Oslo, 11/12/2009; ‘Remarks by the President to the Ghanaian Parliament’, Accra, 11/6/2009.
Os tropos “o homem é imperfeito” e “limites da razão humana” são citações de falas de Reinhold Niebuhr, pastor das consciências da Guerra Fria. Sobre isso, ver Gopal Balakrishnan, ‘Sermons on the Present Age’ (New Left Review n. 61, Jan.-Feb. 2010, em http://www.newleftreview.org/?view=2828). Niebuhr contudo, bem mais que seu pupilo Obama, sabia dar nomes aos bois, quando era preciso, sem recorrer a slogans pios como “dois povos sofredores”.
Em 1942, observou, sem meias-palavras, que “a hegemonia anglo-saxônica que talvez se implante depois de o Eixo ser derrotado terá de garantir a sobrevivência da Palestina ao lado dos judeus”. Argumentava que “os líderes sionistas não operam com realism o quando afirmam que suas reivindicações não implicam injustiça contra a população árabe.” Para ele, os palestinos teriam de “ser compensados de algum modo” (‘Jews after the War, II, Nation, 28/2/1942).
Nota especial da tradutora:
(NT) “14 Points” é título de discurso que WW fez em sessão conjunta do Congresso, dia 8/1/1918, em que apresentou suas condições para um acordo de paz a ser negociado com “os Impérios Centrais”. Pode ser lido (em inglês), em http:/ /wwi.lib.byu.edu/index.php/President_Wilson%27s_Fourteen_Points.
O artigo original, em inglês, pode ser lido em:
http://www.newleftreview.org/?page=article&view=2821