Quando o desastre é a "mídia"

Pouco antes de o Haiti ser devastado pelo mais terrível terremoto ocorrido na ilha em mais de 200 anos, quando o Haiti era devastado exclusivamente pela mais terrível miséria, havia no país um, no máximo dois correspondentes de jornais estrangeiros. Em poucas horas… tudo mudou.

Em apenas um, dois dias, as redes CNN e Fox praticamente já haviam transferido para lá unidades inteiras de operações (verdade que bem reduzidas, em relação ao passado, por anos de maus resultados comerciais). Anderson Cooper da CNN falou pela primeira vez na manhã da 4a.-feira. Katie chegou no mesmo dia, mais tarde. Quando Diane partiu de Cabul para Port-au-Prince, Brian já havia “tocado a pista” há muito tempo. Com eles, em situação na qual não havia recursos para nada, viajaram pelo menos 44 correspondentes, produtores, técnicos da CNN; 25, da rede Fox, e, com certeza, contingentes semelhantes da CBS, NBC e ABC – todos com suas respectivas ‘células de sobrevivência’.  Com exceção apenas das guerras no Iraque e Afeganistão, segundo o Los Angeles Times, “foi o maior deslocamento de pessoal das televisões norte-americanas, desde o tsunami no sul da Ásia em 2004” – e o custo da operação é obsceno.

No processo, ante olhos que se grudam obcecadamente nas telas de televisão, 24 horas/dia, 7 dias/semana, na ‘mídia’ planetária, “o noticiário internacional” concentrou-se no Haiti, com os logotipos, vinhetas e rufar de tambores de praxe (“Terremoto no Haiti”). As três redes esticaram a duração dos noticiários de meia-hora, e, por horas inteiras, só se falou do Haiti, com apenas alguns minutos para o resto do mundo. Em certo sentido, assim como o terremoto pôs abaixo o Haiti, assim também os departamentos de jornalismo das televisões comerciais norte-americanas puseram abaixo o resto do mundo, com fervor e correspondente linguagem quase religiosos.
Em lugar de notícias sobre eventos mundiais, apareceram infindáveis histórias sobre resgates difíceis (“milagres”) pelas equipes internacionais de socorristas – menos de 150 salvamentos, onde provavelmente permanecem soterrados dezenas de milhares de Haitianos e mais de 200 mil já haviam morrido.  Além dos “milagres”, o tom autocongratulatório dos jornalistas, sobre a generosidade dos norte-americanos e a importância de lá estarem soldados dos EUA (“fazendo a segurança” do aeroporto!) numa situação em que visivelmente a ajuda era insuficiente e muitas pessoas estavam sem qualquer socorro.

E, claro, com o drama dos resgatados, outro tipo de drama: a violência – embora a história real, que alguns jornalistas noticiaram, como que obrigados a noticiar, fosse a notável resistência dos haitianos, a coragem, a disposição de ajudarem-se uns os outros, de começarem a organizar-se, numa situação na qual não havia, de fato, absolutamente nada o que partilhar. Muitos certamente viveram ali momentos decisivos de suas vidas, que ninguém noticiou, entre avalanches de manchetes sobre “violências” e “saques”.

A cobertura foi, além de massiva, sentimentalóide, autocongratulatória e em momento algum destacou a luta pela vida. Dentro de um, dois, três meses, fácil de prever, o Haiti continuará tão devastado quanto hoje e não haverá jornalistas em Port-au-Prince.  Anderson, Diane, Brian, Katie?  Estarão em outro lugar, no ar 24 horas/dia, sete dias por semana.

Em “In Haiti, Words Can Kill” com notícias do passado do povo haitiano e das muitas vezes que sobreviveu a violências naturais e nada-naturais, Rebecca Solnit fala da capacidade de sobrevivência dos haitianos, praticamente sem qualquer ajuda, nem do Estado nem da imprensa.

Este comentário pode ser lido em:
http://www.tomdispatch.com/post/175194/tomgram%3A_rebecca_solnit%2C_in_haiti%2C_words_can_kill
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