Estudantes, não soldados, fazem a diferença, no Haiti

Minha irmã Jonna sempre viveu protegida na vida de casa, praticamente desde que a vi nascer. Tipicamente, eu fui o irmão mais velho que ‘fez a vida’: alistei-me no exército, fui à guerra, voltei, converti-me em militante ativista pela paz. De modo geral, sempre me senti bem, no comando da nossa cena familiar ‘normal’. Tudo isso mudou na tarde de ontem, na capital do Haiti.
 
Minha irmãzinha, sempre progressista compassiva, calma, dedicada, estava no Haiti trabalhando com uma ONG, Haiti 2015, dedicada à assistência social aos haitianos, quando houve o terremoto.

 Jonna e Landon, seu namorado, formaram-se em jornalismo na universidade William and Mary, no estado de Virginia; os dois falam francês e os dois estão começando seus estudos de antropologia. Os dois estão em viagem de pesquisa pelo Haiti, para reunirem dados que lhes permitam planejar seus estudos futuros. Só ontem, depois de uma noite de desespero, sem dormir, sem notícias deles, é que consegui interligar tudo: o que fazem lá, o trabalho deles naquele desastre terrível, e o meu trabalho numa guerra ainda mais desastrosa.
 
Quando me alistei no exército, em 2003, não tinha qualquer dúvida de que estaria ajudando a salvar o povo do Iraque, se invadíssemos o país. Era praticamente um adolescente, e os iraquianos pareciam-me gente pobre, insegura, assustadiça. Eu, cidadão jovem da classe média-alta da maior potência da terra, lá cheguei e fiz pose, com meu fuzil M-16, estendendo a mão aos iraquianos – um gesto de força, não de solidariedade. Lembro de ter discutido com minha irmã (já pacifista), de ter-lhe dito que a abordagem dela (a velha abordagem liberal) era insuficiente, ante a solução militar. As pessoas não precisam de solidariedade, disse eu, precisam de ordem; e só norte-americanos armados como John Wayne podem levar ordem ao mundo. Por mais que eu aspirasse, como irmão mais vel ho, a ser exemplo de coragem e compaixão para minha irmã menor, minha experiência no exército ensinou-me que soldados do exército e da marinha podem ter bem menos coragem e compaixão que uma moça de 22 anos.
 
Quando aconteceu o terremoto, repentino, minha irmã e o namorado estavam entrevistando haitianos em Port Au Prince. Estavam vivendo numa favela, longe das áreas de turismo e das instalações da ONU. Já há, aí, profundo contraste com a minha experiência no Iraque, eu, numa base protegida por guardas armados contratados da empresa KBR-Halliburton e lojas de fast-food, na qual se encontram todas as amenidades da vida modernas, embaladas e fornecidas por gente que vive, lá, com salários de terceiro mundo. Quando encontrei iraquianos, eu sempre estava em uniforme completo, com colete de cerâmica blindada e minha pistola automática engatilhada; ou estava atrás de uma escrivaninha, e os iraquianos estavam à minha frente, de olhos vendad os, os pés sem sapatos, à espera de serem interrogados. Diferentes de 90% do pessoal militar dos EUA no Iraque, os voluntários que trabalham no Haiti com minha irmã falam a língua local. Diferentes dos meus pares das chamadas “unidades de inteligência” da 4a. Divisão de Infantaria do Exército dos EUA, os companheiros de minha irmã conhecem a história, a política, a religião locais. O orçamento anual total do Projeto Haiti 2015 equivale a menos do que custa só um dos milhares de veículos blindados que são usados no Iraque e no Afeganistão.
 
Com o terremoto, Jonna e Landon foram jogados ao chão e viram os prédios desabar sobre centenas de pessoas à volta deles. Tudo o que os dois possuíam – exceto a roupa do corpo, uma câmera fotográfica e o que tinham nas mochilas – está perdido. Mas os dois, em segundos, estavam de pé, escavando os escombros e ajudando as vítimas. Cito, de uma mensagem rápida, que recebemos de Landon:
 
Minha roupa está em farrapos, porque fui arrancando pedaços para fazer curativos. Só temos o que está nas mochilas. Tentei reunir os feridos da parte que alcançamos num espaço aberto, em delmas 17, ruelle verna. Mandei Jonna até a ONU pelas 8 da noite, para avisar onde os feridos estavam reunidos e quando saí, para sinalizar o local, pelas 10 da noite, já havia 200 feridos reunidos e a notícia se espalhara, de que as pessoas deveriam ir para lá. Um estudante de medicina, chamado Samuel, fazia o que podia. Muita gente morreu. Encontrei Jonna perto do prédio da ONU, onde estamos agora, acho que eram 10h40 da noite passada.
 
Como veterano de guerra, sei que a coragem daqueles dois, face a um desastre inesperado e de proporções inimagináveis é maior do que qualquer coisa que eu tenha visto no exército. Há coragem de heroísmo no que fizeram, suficiente para matar de vergonha o exército dos EUA. De fato, posso dizer que eu, pessoalmente, em um ano de serviço no Iraque, jamais tive de levantar sequer um dedo para ajudar algum civil.
 
Minha irmãzinha, liberal, relativista culturalista, e seu namorado, mostraram mais coragem e compaixão e capacidade de lutar pela vida, deles e dos próximos, numa noite, do que toda a minha companhia armada, no Iraque, nas três vezes que fui mandado para lá.
 
Enquanto dois alunos de antropologia e um aluno de medicina recolhiam mortos e feridos e confortavam os agonizantes durante horas de escuridão, com a terra ainda tremendo sob os pés, o maior, mais poderoso e mais caro exército do mundo... onde estava, que ninguém o viu?! Bom… ninguém o viu, com certeza, senão depois de 15 horas, quando um helicóptero da guarda costeira foi visto sobrevoando a cidade:
 
Os EUA mandaram um avião da guarda-costeira para sobrevoar a cidade e chegaram “four generals from the DR” [não sei traduzir]. A base da ONU aqui montou uma pequena área de triagem, e estou ajudando como tradutor, porque … 99,9999% desses felás-da-puta da ONU não falam a língua local.
 
Com todo o dinheiro que gastamos nesses jatos de combate caríssimos, em navios de transporte de caças e armamento de alta tecnologia… O Departamento de Defesa estima que o custo de mandar um soldado para o Iraque ou Afeganistão por um ano é superior a um milhão de dólares. Compare-se isso com os 2 mil dólares que custam alguns estudantes que, sim, ajudam quando é preciso ajudar. Não quero soar ingrato: a guarda costeira dos EUA provavelmente trará minha irmã para casa; mas quanto aos generais e escolas militares com seu bilhões de dólares e mísseis hellfire, há solução tão mais simples para os problemas do mundo, e que não envolve tantos homens esconderem-se atrás de metralhadoras e bombas. Se minha irmãzinha e o namora do ensinaram tamanha lição a um veterano calejado de guerras como eu, em matéria de coragem e compaixão, o que resta dos chamados “valores do nosso militarismo”?
 
Não sei quando Joanna e Landon voltarão para casa. Landon já disse que ficará lá para ajudar aquelas pessoas das quais se aproximou tanto em tempos de dor e morte. Quando embarquei no jato que me traria de volta do Iraque para os EUA, lembro de sentimento muito diferente que tomava conta de todos os soldados. Os soldados batiam as botas no chão, para limpá-las de qualquer pó do Iraque que houvesse nelas. Todos pensávamos “Até nunca mais!”
 
Comparem-se esses sentimentos tão contrastantes, entre jovens de praticamente a mesma idade, criados em famílias parecidas, e vê-se facilmente qual abordagem levou à derrota e qual poderá criar pontes de fraternidade. Acho que é hora de os EUA decidirem entre essas duas abordagens. Se mais não for, podemos aprender de dois jovens americanos que enfrentaram o medo da morte, a escuridão, a mais completa incerteza sobre a própria sobrevivência, sem água e sem comida e que, ainda assim, souberam o que fazer para ajudar o próximo.
 
Se minha irmã estivesse aqui, em casa, em segurança, eu lhe diria que ela é “o meu herói”. Diria que todas as medalhas, fitas, condecorações, bandeiras e cartazes de “apoiem nossos soldados” nada valem, ante a coragem dela. Se eu pudesse falar com minha irmã que está lá, naquele Haiti caótico, eu lhe diria o quanto me orgulho dela e o quanto me envergonho do meu serviço militar. Os grandes atos são atos de compaixão, respeito e não-violência. Ocupação e vigilância nada são e nada podem ante o poder da bondade e da solidariedade. Os estudantes, os antropólogos, os poliglotas salvarão o mundo, não os soldados.

 

Evan Knappenberger é veterano da guerra do Iraque, sofre de Stresse Pós-Trauma e Depressão e vive em Bellingham Washington. Sua irmã, Jonna Knappenberger estuda jornalísmo e vive no estado de Virgínia.

O artigo original, em inglês, pode ser lido em:
http://www.counterpunch.org/knappenberger01152010.html 

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