O legado de Martin Luther King e o futuro de Israel

Todos os anos, os apologistas da ocupação da Palestina por Israel esperam ansiosamente o Dia de Martin Luther King[1]. E então põem-se todos a repetir a frase do Dr. K ing, de pouco antes de morrer: “Quando se criticam os sionistas, criticam-se os judeus; é a fala do antissemitismo.”

King, que repetia muitas e muitas vezes os temas que considerava realmente importantes – justiça, liberdade, dignidade humana, não-violência –, só mencionou o antissemitismo uma vez, numa sessão informal de perguntas e respostas. Ninguém o questionou sobre o que dissera, e ele jamais explicou. (Uma longa carta, em que estariam expostas suas ideias sobre o tema, comprovou-se logo, era apócrifa.) Apesar disso, ano após ano, os apologistas da ocupação israelense sempre repetem aquelas palavras ditas uma única vez, como se fossem demonstração lógica irrefutável de um raciocínio que andaria mais ou menos como segue:

Israel age com violência nos “territórios disputados” para proteger sua própria segurança. Quem critica essa violência não se interessa pela segurança de Israel; portanto, tampouco tem interesse em preservar Israel e não se preocupa com a existência de Israel; portanto, quem critique a violência é antissionista. O próprio  Martin Luther King disse que são antissemitas. Em outras palavras, só os antissemitas discordam das políticas israelenses de ocupação da Palestina.

Claro que esse raciocínio é pervertido. Não se imagina que King algum dia tivesse endossado essa ‘demonstração' ilógica – que implica negar todos os direitos dos palestinos à liberdade e à dignidade. 

Seja como for, sempre me perturbou que aquele grande homem, mesmo que uma única vez, tivesse dito que antissionismo seja antissemitismo. Como um homem cujo rigor intelectual sempre admirei cometeria erro tão flagrante – e erro que pôde tão facilmente ser usado, ainda em vida do Dr. King, para dar racionalidade à ocupação, por Israel, de terra palestinas?

Sim, alguns dos que criticam o sionismo são também antissemitas. Mas há milhões de judeus que, eles mesmos, opõem-se declaradamente ao sionismo, sobretudo nos anos mais recentes. Os próprios judeus construíram alguns dos argumentos mais poderosos contra o sionismo, justamente porque amam seu povo e veem o sionismo como ameaça ao judaísmo e aos valores judeus.

Não concordo com eles. Respeito o sionismo como um movimento de autodeterminação nacional. Se reconhecemos esse direito aos palestinos e a todos os demais povos nacionais, por que não aos judeus? Mas sou um dos muitos sionistas que fazem vigorosa oposição a que Israel engula os Territórios Ocupados, porque, no longo prazo, a ocupação militar fará aumentar a ameaça contra os judeus e – não menos importante – contra os valores judeus. Embora King nos tenha associado ao antissemitismo só indiretamente e sem querer, suas palavras foram um desserviço.

Não há como aceitar que eu, ou qualquer outro dos judeus – sionistas ou não – que se opõem à ocupação da Palestina sejamos ditos antissemitas. Muitos não-judeus, movidos por preocupações morais e intelectuais, também criticam muito rigorosamente o sionismo, sem que haja qualquer vestígio de antissionismo em seus discursos.

Como é possível que Martin Luther King não soubesse disso? Durante muitos anos, King falou muito eloquentemente a favor da maré da descolonização, a favor de povos que lutavam pela autodeterminação. Quando, afinal, decidiu que era hora de “quebrar o silêncio” e dar voz à sua oposição à guerra dos EUA contra o Vietnã, mostrou o quanto conhecia bem os fatos daquele conflito distante.

Embora a maior parte daquele discurso de 1967 fosse denúncia eloquente da violência militarista em geral, e sobretudo do militarismo do governo dos EUA (“o maior semeador de violência que há hoje no mundo”), parte também importante daquele discurso foi uma detalhada narrativa da história do Vietnã – explicação de como a guerra deveria aparecer aos olhos do povo vietnamita. Poucos dos que protestávamos contra aquela guerra naquele momento sabíamos tanto sobre o que lá se passava ou poderíamos ter explicado tão claramente por que a guerra era um erro tanto político quanto moral.

Continua a ser um mistério para mim como o mesmo homem que acertou tanto em relação ao Vietnã pudesse ter errado tanto em relação ao antissionismo.

Martin Luther King, o sionismo e o ciclo do medo

Mas se, por outro lado, esquecemos o comentário de King sobre antissionismo e antissemitismo, e consideramos o que ele disse sobre os horrores da violência praticada pelo Estado norte-americano e da violência em geral, quando, sim, se manifestam os seus valores mais caros, vê-se sob nova luz a violência do Estado israelense; e essa nova luz ilumina os laços profundos, que raramente se veem, e que ligam a violência e o medo irracional. 

Quando quebrou seu silêncio sobre o Vietnã, King denunciou o “medo mórbido do comunismo” que convertera as nações ocidentais em “arqui-antirrevolucionárias”, dispostas a “ajustar-se à injustiça”. “Nossa esperança hoje”, disse ele, “está na nossa habilidade para recapturar o espírito revolucionário e sair para enfrentar o mundo adverso declarando nossa eterna hostilidade à pobreza, ao racismo e ao militarismo.”

Para tanto, como King aprendeu de Gandhi e ensinou a milhões, exigiria um espírito de amor dedicado incansavelmente a subjugar o medo. King foi leitor aplicado de Gandhi; visitou a Índia e lá conversou com Gandhianos ardentes. Assim penetrou, de fato, no espírito do que o Mahatma escreveu: “Medo e amor são termos contraditórios. Para nada temer temos de amar e aderir ao caminho da verdade.”

King entendia, como Gandhi, que o medo é fonte do mal. “Há um mal”, disse ele, “maior que a violência; chama-se covardia.” Também entendia, como Gandhi, que o medo é o contrário do amor, o contrário da não-violência e é, ele mesmo, fonte de violência. Na última noite de sua vida, já havia aderido quase em êxtase, à filosofia de Gandhi. Depois de ter profetizado a própria morte, disse a famosa frase: “Estou tão feliz, essa noite. Não tenho nenhuma preocupação. Não temo ninguém.”

King vivera cercado de brancos empurrados para a violência pelo medo irracional que sentiam dos negros. Dedicou sua vida a derrotar o próprio medo, para que, pelo amor, conseguisse vencer o medo que habitava os seus opressores. Em 1967, finalmente derrotou o medo que sentia de prejudicar o movimento dos direitos civis nos EUA e, corajosamente, denunciou a guerra dos EUA no Vietnã – motivada (como ele a via) por um medo irracional do comunismo.

O ponto cego de King (e todos temos pontos cegos, até os maiores dos grandes homens) foi não reconhecer que a violência de Israel contra os palestinos, também ela, era, também motivado por medo irracional. Uma das maiores tragédias do sionismo é, de fato, sua espantosa incapacidade para escapar do medo do qual nasceu – medo bem justificado na Europa do final do século 19, quando o antissemitismo crescia e alastrava-se.  Hoje, quando o Estado judeu é a potência militar dominante no Oriente Médio, já não faz sentido algum que a identidade dos judeus continue a ser filha do medo; que todos farejem um monstro antissemita, por trás de qualquer mínima crítica às políticas colonialistas de Israel.

Os de nós que sigam o caminho do pensamento de Martin Buber, grande filósofo judeu sionista dissidente, e que ainda creiamos que o sionismo possa ser moral, sabem ver que o medo, além de injustificado, é destrutivo. O medo inspira os israelenses a propor políticas que, cada vez mais, prendem israelenses e palestinos num ciclo infindável de insegurança.

Aparentemente, King jamais reconheceu (não, pelo menos, em público) que o medo – não o antissionismo – é a verdadeira “ameaça existencial” que pairava e continua a pairar sobre o povo judeu. Não se o pode culpar. Afinal, a questão Israel-Palestina não era o centro de suas preocupações.

O medo em Israel

Se um homem tão destemidamente comprometido com a verdade como Martin Luther King cometeu esse erro, muito mais facilmente outros norte-americanos, inclusive presidentes, o cometeram e cometem. O presidente Obama errou gigantescamente no modo como encaminhou o conflito Israel-Palestina. Hoje, vê-se prisioneiro de um trágico ciclo de medo.

Obama entrou em cena com mais ânimo e mais declaradamente em oposição às políticas israelenses que qualquer outro presidente desde Dwight D. Eisenhower. Imediatamente depois da posse, insistiu (ou, pelo menos, foi o que disse sua secretária de Estado) em que acabasse para sempre, completamente, toda e qualquer construção nas colônias para judeus em territórios ocupados da Cisjordânia. 

Foi passo importante. A expansão rapidíssima das colônias exclusivas para judeus está fazendo desaparecer todo o território palestino, a ponto de, por isso, já ser impensável qualquer Estado palestino viável. Sem Estado palestino viável, o caldeirão continua a ferver no Oriente Médio, gerando mais tensões, que já ameaçam não apenas a segurança de todos os países mas, também, a segurança dos negócios e empresas norte-americanas na Região, além de ameaçar a própria segurança dos EUA. Por isso, aliás, é que vários grupos representados no governo dos EUA continuam a apoiar o total congelamento das construções de colônias israelenses nos territórios ocupados.

Parece, contudo, que Obama e seus conselheiros subestimaram a violência da reação que viria dos líderes israelenses, sempre atentos, primeiro, aos próprios planos eleitorais. Ninguém jamais saberá o que realmente pensam o primeiro ministro de Israel Benjamin Netanyahu e seu Gabinete, mas não há dúvida de que ganharam muitos votos com o simples gesto de apertar o ‘botão do pânico' e por-se a falar dos “perigos” de aceitar as exigências de Obama. Bastou-lhes acordar os eternos medos judeus, a ‘fraqueza' dos judeus, usar a vitimização como arma de ataque. Foi o que fez o ministro da Defesa Ehud Barak, ao lamentar-se de o governo Obama “só pensar em construções de prédios (...) o que levou Israel a sentir-se como se estivesse sendo traído, abandonado, entregue à sa nha dos inimigos.”

Como escreveu Henry Siegman, ex-presidente do Congresso Judeu Americano, no New York Times, a clara mensagem de Netanyahu, de que “todo o mundo está contra Israel e Israel está à beira de sofrer outro Holocausto… é, desgraçadamente, mensagem que ainda traz muito conforto a muitos israelenses.” Siegman observou que esse medo (para ele “o medo judeu patológico”) “é muitas vezes invocado pelos próprios israelenses. Em Israel a palavra para isso é “galut mentality”, “mentalidade da diáspora” – a tendência da diáspora judia para sempre se ver como sem amigos, isolada e sempre às vésperas de sofrer mais um pogrom.”

Essa mentalidade tem raízes profundas no sionismo e agora se alastra também em Israel, onde Bradley Burston, colunista do diário Ha'aretz, observa “uma nova abordagem israelense que estimula o pior dos nossos mais antigos instintos. Segundo essa abordagem, os israelenses somos morais; os inimigos estão à porta, dispostos a nos exterminar; isso é tudo que interessa que os cidadãos saibam. Então, não negocie, não converse, não ceda um palmo de terra, nada, nunca. Nunca.”

Outro jornal israelense trouxe à baila diretamente o insight de Martin Luther King sobre o laço que une violência e medo. Doron Rosenblum descreveu Netanyahu e Barak como representantes de “dois traços destacados da israelidade: a agressividade e a paranóia (...) São dois lados da mesma moeda – o medo de ser considerado fraco e, a única coisa ainda pior do que isso, ser considerado pouco esperto.” 

Há um ano, dois pesquisadores israelenses divulgaram estudo com números para dar corpo a essas impressões. Descobriram que os judeus israelenses são quase sempre movidos pelo medo, mais do que por qualquer outra emoção, quando analisam o conflito com os palestinos. Por isso os israelenses contemporâneos “são levados para um processo seletivo e distorcido de processar informações, cujo principal objetivo e preservar as crenças estabelecidas sobre o conflito.”

Obama, mais um refém do medo?

Nos EUA, os judeus que trabalham para resolver o conflito Israel-Palestina mediante um acordo de paz justa também enfrentam o medo como grande obstáculo. Jeremy Ben-Ami, diretor executivo do grupo J. Street, pró-Israel e pró-paz (que tem raízes profundas na vida dos israelenses) também considera o medo como principal fator que impede que o Estado judeu trabalhe a favor de uma paz genuína. Os israelenses carecem de garantias nas quais creiam, diz Ben-Ami; e não creem que, se cederem terras obterão, em troca, a paz.

O único modo para obter tais garantias, contudo, depende de que se façam negociações de boa-fé. E só uma ativa e firme liderança dos EUA, no processo diplomático, conseguirá que essas negociações aconteçam. Por isso, J Street e vários outros grupos de judeus norte-americanos apoiaram Obama, na exigência inicial de que todas as construções de colônias exclusivas para judeus fossem suspensas nos territórios ocupados.

Mas enfrentam rígida oposição dos judeus norte-americanos ainda presos no que o Diretor de Políticas do Grupo J Street, Hadar Susskind, chama de “o armário israelense”. Divididos entre razão e emoção, não conseguem livrar-se do medo no qual foram criados, diz ele. “Com a cabeça, entendem e defendem a ideia de que os EUA devem trabalhar com os israelenses para construir a paz com os palestinos; mas com as vísceras, não aceitam a ideia de que alguém ‘diga a Israel o que fazer'.”

Preocupados com o risco de os judeus fazerem figura de fracos e subalternos ‘obedientes', algumas das mais poderosas organizações de judeus nos EUA passaram a fazer oposição cerrada às exigências que Obama apresentou aos israelenses. E rapidamente encontraram aliados entre os Cristãos Sionistas (cuja capacidade para influenciar a política dos EUA para o Oriente Médio é quase sempre subestimada) e, muito provavelmente, também em facções do governo dos EUA (sobretudo na comunidade de inteligência e nos comandos militares) que querem a colaboração de Israel para seus próprios planos (com vistas à vitória contra “os terroristas” na “guerra ao terror”).

Ante toda essa pressão que se centrou nele, Obama recuou da exigência inicial, e conformou-se em receber apenas uma vaga promessa de ‘diminuição' no ritmo das construções, o que, de fato, ninguém sabe o que significa. Dado que o governo não ofereceu qualquer explicação sobre o recuo, nada impede que se especule sobre o que bem se pode descrever como “Obama perdeu um round” na disputa contra aquela frente judeu-norte-americana ‘anti-paz' na Palestina.

Parece no mínimo muito provável que o presidente e seus conselheiros tenham recuado do confronto direto, no momento em que enfrentavam um longo, muito quente verão de ataques duríssimos contra seu plano de reforma da saúde pública, que, parece, o governo entende que tem de vencer. Seja qual for o motivo, não há dúvidas de que Obama deu por perdidas quaisquer reais possibilidade de haver efetivas negociações de paz no Oriente Médio, pelo menos por enquanto.

Se o governo Obama mantiver as atuais posições de extrema cautela, continuará como está – e como está a paz do Oriente Médio –, na posição de refém dos medos irracionais de outros. Israelenses e norte-americanos precisam de paz duradoura para garantir a segurança de cada um  e de ambos. Os palestinos desesperadamente precisam de paz duradoura para escapar ao suplício que é a vida diária. E todos continuam presos numa sinergia que reforça mutuamente todos os medos.

Libertar-se dos medos

A situação ainda não é completamente sem saída. Se os medos políticos do governo puderem ser contornados, o governo ainda poderá retomar o pé e o controle da situação Israel-Palestina. Grupo decisivo nesse passo, que pode servir para mover a balança a favor de Obama, pode ser a comunidade de judeus norte-americanos.

Assim como Martin Luther King encontrou a coragem necessária, nos idos de 1967, quando decidiu que era “hora de quebrar o silêncio” sobre uma guerra terrível, cada vez judeus norte-americanos têm decidido quebrar o silêncio que sempre reinou na comunidade de judeus dos EUA em relação à parte de responsabilidade que cabe a Israel pela duração sem fim daquela guerra inadmissível. O grupo J Street é apenas o maior, dentre os vários grupos de judeus norte-americanos que se organizam para trabalhar a favor da paz com os palestinos. O movimento está crescendo depressa – e seria inimaginável há apenas alguns anos.

Susskind, do grupo J Street, alia-se ao movimento dos judeus norte-americanos pela paz – e fala quase como Martin Luther King – quando conclama os judeus “a sair do armário judeu e declarar: amamos Israel e isso não nos obriga a calar quando não concordamos. É hora de todos os judeus que crescemos amando Israel e rezando pela paz abandonarmos para sempre a ideia de que os judeus norte-americanos seríamos uma única voz; hoje, exigir que Israel faça a paz com os Palestinos é trabalhar a favor da segurança e do futuro de Israel.”

Nesse Dia de Martin Luther King de 2010, portanto, os judeus norte-americanos têm um desafio a enfrentar. Que esqueçam aquela observação que King fez um dia, irrefletida, sem sentido; que desistam de tentar usá-la para justificar a continuada intransigência, a violência sem fim de Israel. Que tratem de recordar outras palavras do mesmo Dr. King, na qual resumiu uma vida inteira de não-violência, enunciadas na última noite de sua vida –  “Não temo ninguém”. É hora de os judeus norte-americanos apoiarem Obama e exigirem que retome a via já tentada para por fim ao conflito: que faça, sim, parar, de vez, qualquer construção de colônia israelense nos territórios palestinos ocupados.

Se houver judeus norte-americanos com suficiente coragem para fazer isso, Obama e outros presidentes encontraram o necessário apoio político para enfrentar Israel e exigir que, sim, ponham-se a caminho numa verdadeira jornada rumo à paz e à segurança de Israel.

Ira Chernus é professor de Estudos Religiosos na Universidade do Colorado, em Boulder.
Seus escritos sobre Israel, Palestina e os EUA estão reunidos em http://chernus.wordpress.com/ .

O artigo original, em inglês, pode ser lido em
http://www.tomdispatch.com/post/175192/tomgram:_ira_chernus,_the_wages_of_fear_in_israel_and_the_u.s.___/

Nota de Tradução
[1] Nos EUA, o Dia de Martin Luther King é comemorado no 3º domingo de janeiro; em 2010, foi dia 18, ontem. É feriado federal. (Para conhecer a história desse feriado – que não foi aprovado pelo Congresso, na primeira apresentação do projeto, só foi criado por petição popular, a partir de 1986 e só em 2000, pela primeira vez, foi feriado respeitado em todos os 50 estados dos EUA, ver http://en.wikipedia.org/wiki/Martin_Luther_King,_Jr._Day ).

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