Essas palavras constam do preâmbulo da Declaração de Lille sobre a Cultura da Paz. emitida pelo Conselho Europeu de Líderes Religiosos e Religiões para a Paz, em maio desse ano. Este órgão reúne destacados líderes religiosos de toda a Europa, tanto cristãos quanto muçulmanos, judeus, hindus, budistas, siks e zoroástricos, que reconhecem a profunda relação entre a cultura, a paz e a religião, bem como entre o bem-estar físico, mental e espiritual, e a coesão e as harmoniosas relações no âmbito da sociedade.
Durante quase 40 anos tive o privilégio de participar de esforços em favor de processos de paz e reconciliação ao redor do planeta: da Guatemala e Namíbia a Kosovo, Sri Lanka e Timor Leste. As culturas, os idiomas e as tradições destes países variam tremendamente. Cada um tem suas belezas particulares e seus desafios específicos. Porém, em cada uma das nações que sofrem conflitos, ficou comprovada a importância da religião, seja para bem como para mal.
Raramente podemos falar de guerras de religião, mas frequentemente vemos que a religião é usada para dar legitimidade aos que promovem a intolerância e a violência. Por outro lado, também vemos com frequência como comunidades religiosas jogam-se valorosamente pela paz e a não violência, bem como religiosos que estendem suas mãos para os que estão do lado oposto dizendo que sua religião impõe construir pontes e derrubar muros.
Na Bósnia-Herzegovina, os líderes das quatro maiores comunidades religiosas se reúnem regularmente e buscam caminhos para aprofundar sua cooperação. No Sri Lanka, monges budistas juntam as mãos com sacerdotes hindus, bispos cristãos e líderes muçulmanos para encarar a situação dos refugiados internos devido à guerra no norte do país.
Com demasiada frequência, as memórias individuais e coletivas são causa de conflitos. Muito pode ser alcançado, não exatamente esquecendo fatos do passado, mas recordando-os de modo diferente. Uma questão crucial em muitos enfrentamentos é como reconciliar nossas memórias. As religiões proporcionam as palavras para isso: perdão, reconciliação, conversão.
Historicamente, muitas partes da Europa são dominadas pela agricultura. Frequentemente, as fazendas são propriedades de uma família durante muitas gerações. Diz-se comumente que o sucesso de um agricultor ocorre quando passa a propriedade para a geração seguinte com alguma melhoria. Toda terra deve ser cultivada e melhorada. Os métodos agrícolas devem ser adaptados às mudanças na sociedade e às novas tecnologias. Entretanto, apesar das mudanças e das melhorias, a fazenda continua sendo a mesma, embora as novas gerações tenham um ponto de partida melhor do que o de seus pais.
As tradições religiosas atuam do mesmo modo. Devem ser cultivadas. É preciso nutrir tudo que produz bons frutos e eliminar o que prejudica uma boa colheita. E, se alguém tenta aproveitar-se das tradições religiosas para promover seus próprios objetivos, para incitar o ódio, a intolerância ou a violência, devemos confrontá-lo energicamente e proteger o que nos foi confiado.
As religiões e as culturas estão sempre em movimento. São dinâmicas, embora às vezes mudem lentamente. A cultura da paz, portanto, não é algo estável e harmonioso que pode ser alcançado em um momento futuro, mas um processo constante de moldagem e reforma das identidades culturais.
Os conflitos, às vezes, são necessários e a reconciliação sempre tem um custo. O papel das religiões na promoção da cultura da paz não é o de remover os conflitos, mas o de ajudar a transformá-los para que possamos avançar em nossa busca pela paz, a verdade e a justiça. Também nos ajudam a cicatrizar as feridas em nossas memórias e a enfrentar o futuro com uma esperança arraigada em algo que vai além de nossa própria experiência.
A cultura da paz pode ser promovida por um diálogo paciente, caracterizado pela sinceridade sobre nossa própria fé e uma respeitosa abertura para as tradições sacras “do outro”. Para mim, as palavras e os caminhos de Jesus nunca podem ser ofuscados, devendo ficar transparentes em meus encontros com aqueles cujas mais preciosas fontes de sabedoria provêm da uma crença diferente.
Para que a cultura da paz se arraigue, é necessária uma ação comum entre diferentes grupos em uma linguagem acessível e marcada por valores compartilhados e um espírito de serviço e de solidariedade. Os atos de piedade e justiça dizem mais do que as palavras sobre nossa espiritualidade. Esta é a essência das palavras de Jesus. Benditos sejam os pacificadores. Envolverde/IPS
(*) Gunnar Stalsett é bispo luterano e moderador do Conselho Europeu de Líderes Religiosos.
(IPS/Envolverde)