Caso Battisti: Provocações sem Fim

É difícil estabelecer qual é o paradigma moral das pessoas com sentimentos desesperados de vingança, ou daqueles que fazem suas as vinganças dos outros, seja pelo prazer de serem utilizados como feitores, seja por estratégia política, seja por dinheiro. Também é difícil aferir sua inteligência. Embora não seja verdade que a inteligência conduz necessariamente ao bem, é verdade sim que campanhas rancorosas que aplicam a Lei do Talião fazem a vida de seus autores muito amarga, e procurar amargura e ódio não parece uma atitude inteligente.

Entretanto, é justo reconhecer que os mensageiros da “vendetta” podem ser admirados por sua paciência, sua sanha e sua capacidade de não importar-se pelo desprezo que suas mórbidas pessoas produzem na parte sadia da sociedade.

Este comentário me foi sugerido pela seguinte situação: embora os que lutam pelo linchamento de Battisti têm diminuído a densidade de seus ataques nos últimos tempos (eventualmente porque os provocadores mais humildes já não estejam recebendo as generosas gratificações da cidade eterna), as grandes figuras inventam cada vez novos argumentos.

A Toca Brasileira de Bin Laden

No dia 20 de novembro, as 9:24, quando não se tinha certeza absoluta de qual seria a posição de Lula no caso Battisti, a agência da própria Folha de S. Paulo publicou uma notícia curiosa.
http://www1.folha.uol.com.br/folha/brasil/ult96u655186.shtml

A Polícia Federal e o Procurador da República encaminharam documentos à Justiça Federal, nos quais manifestavam receio de que Battisti tivesse tido relação com terroristas em território brasileiro. Sabe-se apenas que há uns “documentos” (vistos pelo jornal Folha) pertencentes ao processo em que Battisti é réu por uso de documentos falsos.

O delegado Cléberson Alminhana, do setor de inteligência da Polícia Federal, chegou, com muito sentido patriótico, à convicção de que o Brasil tem tanto direito como a Itália para fazer acusações sem provas. Cauteloso (mais que os italianos) se limita a dizer que as investigações realizadas “apontam” para um envolvimento de Battisti com atividades terroristas.

Todo mundo sabe que nossa Polícia Federal é muito erudita e até inventa nomes bonitos para seus operativos. Por isso, não é esquisito que tente aproveitar o melhor de todas as tradições culturais. Além da lição italiana de acusar sem provas, o delegado também apreendeu a lição dos mercenários americanos/colombianos que mataram Reyes, e seqüestraram um computador que sobreviveu a bombardeios. Ele disse que no apartamento em que morava Battisti em RJ (faz quase 3 anos!) foram encontrados um disco rígido e vários CD, uma versão em português da história do computador das FARC.

A Folha diz não ter encontrado nenhuma referência as ligações terroristas de Battisti, salvo a carta do próprio Alminhana, e uma resposta do procurador Orlando Cunha ao pedido de informes de Justiça, por conta da denúncia do delegado. Cunha diz que a ligação de Battisti com terroristas é “notória”. Por notória deve entender-se, imaginamos, que não é necessário pedir provas, porque coisas notórias já estão provadas.

O cúmulo do ridículo foi a suspeita de outro delegado, cujos policiais teriam comprovado que Battisti se comunicava por computador com a Brigada Vermelha (em singular). O Juiz federal Kronemberg Hartmann não se alterou pelo anacrônico e descabido da hipótese, e ordenou uma investigação.

A coisa segue como nos melhores pastelões de Lando Buzzanca da década de 70. A Itália, que não quer perder nenhuma jogada, também está na fila dos que querem ver o computador, o HD e os CD’s. Entretanto, o núcleo de criminalística da PF procurou imagens e textos ligados ao terrorismo. Como na sentença italiana, não aparece nenhuma prova. Mas, com melhor senso que a justiça italiana, a PF reconhece que não encontrou provas.

Finalmente, a polícia científica “confessou”: eles não encontraram ligação nenhuma com o terrorismo, e essa famosa Brigada Vermelha (em singular) parece que deixou de agir faz tempo. Aliás, acrescentaram: as sugestões para esta investigação vinham da embaixada italiana.
Todo não foi mais que um miserável jogo de intrigas. Foi uma sorte, porém, que, desta vez, a PF não quis comprometer-se com a montagem.
 
O STF Cavalga de Novo

O presidente do STF, Gilmar Mendes, cobrou na Sexta Feira 27 de novembro, mais gratidão do Ministro Tarso Genro, a quem, segundo ele, teria tirado do “labirinto” onde estava metido. http://www1.folha.uol.com.br/folha/brasil/ult96u658628.shtml

Que labirinto? Segundo a Excelência, Tarso foi salvo pela decisão do STF que livrou ele de arcar com a responsabilidade do caso Battisti, depois de “usurpar” as funções de justiça brasileira. Como hoje é ultrasabido e repetido ad nauseam pelas dúzias de excelentes juristas que possuímos, e aceito com naturalidade por qualquer estudante de direito que não esteja contaminado pela febre do linchamento, o processo foi exatamente o contrário. Foi o STF que afundou suas garras na esfera do executivo, contrariando um enunciado explícito da lei 9474, de que cabe a Ministro de Justiça, de maneira definitiva, decidir sobre refúgio. O cúmulo da infâmia é que os mesmos que repudiam a ação da “autoridade administrativa” (como eles chamam o poder executivo) ao deferir o refúgio a Battisti, entoam cânticos de compaixão para o CONARE, tão “administrativo” como o Ministro, cuja “decisão” (eles querem dizer opinião) Tarso teria desatendido.

Esta forma exacerbada e incomum de cinismo (Tarso, por ser “administrativo” não tem direito, mas o CONARE, por ser administrativo, sim tem direito) aparece pelo menos duas vezes no doentio arrazoado do mestre Nicolau (digo, do mestre Cézar; estava pensando em Nicolau Eymerich; desculpem.)

Tarso Genro, um grande homem por quem nutro uma grande admiração, talvez tenha contribuído a aumento da empáfia e agressividade dos lordes do judiciário. Estou apenas indicando um fato, e não estabelecendo responsabilidades. Eu não saberia como posicionar-me numa situação tão difícil como que Tarso vive. Entretanto, e apesar de que ele reagiu com grande dignidade contra a petulância italiana, e continua afirmando com toda força o direito de Battisti a residir no país, mostrou-se um pouco hesitante face à máfia togada. Por exemplo, ele não reagiu diretamente contra os insultos permanentes de Mendes e Peluso. É claro que não há nada jurídico que possa ser feito, porque eles têm o controle de instância mais alta de justiça, mas existem organismos internacionais aos quais pode se recorrer.

Mas Mendes, em sua conversa com a Folha, não deixa barato. Também afirma que Tarso usurpou as funções da justiça italiana! Confesso que, talvez por ser estrangeiro, e não ter estudado geografia brasileira na escola, só agora percebi que a comarca de Brasil está na jurisdição italiana. Por sinal, não tenho claro de qual juizado dependemos: Roma, Palermo, Calábria? O bom senso indica que deve ser aquele que está mais perto.

Ainda, Gilmar faz, mais uma vez, uma nova ameaça a Lula. Quando foi perguntado se recomendaria a Lula se manter longe daquele “labirinto” de Tarso, respondeu uma de suas habituais bravatas, uma forma de relacionamento verbal que deve ter aprendido de seus colaboradores rurais (aqueles qualificados numa sessão histórica pelo Ministro Joaquim Barbosa), num clima onde a violência é a única lei. Disse achar muito difícil que o presidente possa, sem controle judicial e sem censura judicial, vir a conceder um refúgio ou um asilo que já foi negado.

Traduzido do juridiquês, isto quer dizer apenas que tudo vai começar de novo! Se Lula der refúgio a Battisti, a despeito de que a autoridade de Lula foi aprovada pelo tribunal, ele será novamente hostilizado e entrará em outro labirinto. A capacidade persecutória e repressiva de excelência não tem limites, salvo os que possam ser colocados factualmente. A famoso Adolph Eichmann, que morreu achando insuperável sua letal performance, deve estar tremendo de ciúmes no túmulo.
Esta nova série de provocações é um erro. Eventualmente, pode dar certo, mas os daimios do Supremo subestimam o número e a força dos que lutam pelos direitos humanos. O mais provável é que as provocações fracassem, e o ódio semeado dure muito tempo, como acontece como o material radiativo. Perguntem aos milicos argentinos dos anos 70!

Terrorismo Global

A Sexta Feira 27 foi fogo. Ainda faltava o Jornal Nacional.

Primeiro, foi colocada no ar a costumeira crítica à política internacional do governo. Desta vez foi por ter recebido o presidente do Irão. O que deve criticar-se de Irão (e muito!) é sua permanente aplicação da pena de morte, as torturas, a situação da mulher, a negação ao direito da identidade sexual, a punição do direito ao planejamento familiar, a contaminação teocrática da sociedade. (Salvo a pena de morte, estes problemas diferem dos que existem no Brasil apenas na intensidade.) Mas, em qualquer caso, desde quando a mídia se preocupa pelos Direitos Humanos?  Muito pelo contrário, eles nos qualificam de subversivos, conspiradores, terroristas e apologistas do crime.

Então, o que eles estão repudiando não é um convite a um violador dos Direitos Humanos, mas uma parceria pacífica que ajude a quebrar o isolamento de Irão. Embora a sociedade dos aiatolás produza um horrível sentimento de voltar à Idade Média ocidental, com os estados dominados pela teocracia, é necessário procurar uma solução ao problema. Embora a amizade demonstrada por Brasil e Venezuela não sejam, talvez, as melhores opções, sem dúvida a permanente provocação estimulada pela mídia mundial é ainda pior. A provocação é uma atitude pouco sensata, mesmo que se adote uma perspectiva puramente utilitária, esvaziada de toda ética.

Irão não tem possibilidades de sair vitorioso num confronto com seus inimigos, mas sua derrota não vai ser tão fácil como os americanos e europeus imaginavam a derrota de Iraque  e Afeganistão, que, aliás, ainda não foi completada. Uma guerra contra Irão dividiria certas regiões do mundo, e talvez o Estados Unidos e Israel decidissem usar armas nucleares para não estender uma luta com desdobramentos perigosos.

Ou seja, os que se opõem às posições pacifistas de entendimento com Irão e de suavização das tensões, apostam numa catástrofe nuclear, da qual a república islâmica sairá destruída, mas outros estados também serão atingidos. (O esforço do governo para amaciar Irão não justifica sua omissão do problema dos Direitos Humanos, mas todo mundo sabe que a mídia brasileira não está preocupada por isso). 

Também insidiosa foi a referência a Honduras, onde se instala agora uma farsa eleitoral que santifica o golpe de junho. Embora a Rede Globo diga que as condutas do governo brasileiro estão “a contramão da história”, em realidade, apenas quatro países da América Latina (Colômbia, Peru, Panamá e Costa Rica) aceitam aquela simulação de democracia. O resto se alinha contra a imposição americana de reconhecer o governo fraudulento que surgirá delas, e apenas dois (México e El Salvador) ficam calados.

Mas, isto foi apenas a introdução. De fato, os dois assuntos sensíveis (Irão e Honduras) visam atacar o que realmente mais preocupa da política internacional brasileira: sua oposição à hegemonia total dos Estados Unidos. Mas, na sequencia, foi tocado de novo o caso Battisti.
É evidente que a presença de Battisti no país é menos importante que a amizade do governo com Irão ou com os bolivarianos, mas este caso singelo (que envolve só uma pessoa perseguida durante 30 anos, cuja força está apenas em milhares de amigos pacíficos) serve de gancho para outras propostas. A mídia pretende mostrar à pessoa comum, que normalmente ignora assuntos internacionais, coma a político do governo pode modificar seu dia-a-dia.  Doravante, a vida e segurança de 190 milhões de brasileiros estarão ameaçadas por um criminoso maluco que o governo protege, e que pode semear a morte e destruição em grande parte da sociedade.

Estes desvarios não são casuais. De fato, o JN mostrou um compacto de diversos assuntos vinculados com o refúgio. Desde uma curta cena daquele fascinante filme de Hitchcock (Notorius), onde estelionatários americanos escolhem o Brasil como paraíso da impunidade, passando por mafiosos, criminosos nazistas (sobre cuja presença a mídia nunca protestou), Ronald Biggs e muitos outros. Acaba a reportagem com uma refugiada sérvia que defende sua condição de asilada; ela disse que veio ao Brasil para proteger sua família. Com um doce sorriso, enquanto mostra fotos de seus filhos, diz que está muito grata ao país, pela sua hospitalidade. Finalmente, usando uma frase muito bem construída para alguém que apreendeu o português recentemente, recita: “Eu vim aqui para salvar minha família, mas não porque esteja fugindo, pois nunca matei ninguém”.
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