Repensar o secularismo

Religião para radicais: entrevista com Terry Eagleton
 
Terry Eagleton discute seu novo livro, Reason, Faith, and Revolution: Reflections on the God Debate [Razão, Fé e Revolução: Reflexões sobre o debate de Deus] mar./2009, Yale University Press, release [ing.]. Para Eagleton, “neo-ateus” como Richard Dawkins e Christopher Hitchens “compraram sua rejeição à religião na barraca de saldos”. Para ele, a política entrou nessas controvérsias, como um elefante que ninguém vê, mas não sai da sala.

 

Em vez de considerar “crentes” e “ateus”, categorias típicas que se usam nos novos debates sobre ateísmo, você escreveu sobre “uma versão do Evangelho cristão relevante para radicais e humanistas”. Quem são esses “radicais e humanistas”? Por que escolheu escrever para eles?
 
TE: Interessava-me levar o argumento até mais longe do que o usual, alcançar círculos maiores, para poder extrair as implicações políticas dessas discussões sobre Deus, o que ainda não se fez na profundidade necessária. É preciso por esses argumentos em contexto muito mais amplo. Nessa medida, no meu modo de ver, radicais e humanistas têm de participar das discussões, independente do que pensem sobre Deus. Não se discute exclusivamente Deus ou exclusivamente religião.
 
Você quer que mais gente leia a Bíblia, ou que mais pessoas vão à igreja, ou quer, apenas, que percebam conexões entre, digamos, marxismo e cristianismo?
 
TE: Com certeza não me interessa que mais gente frequente igrejas. Acho que o que mais me interessa é que mais gente leia a Bíblia, porque é leitura interessante para as políticas da radicalidade. Em vários sentidos, concordo com, por exemplo, Christopher Hitchens, para quem a maioria das religiões são detestáveis e não passam de construções ideológicas. Mas acho que Hitchens e Richard Dawkins tomam partido com excesso de segurança, sobre essa questão. Há mais potencialidades nos Evangelhos e na tradição cristã que interessam – ou deveriam interessar – muito aos radicais; mas os radicais ainda não tomaram consciência disso; não, pelo menos, na profundidade necessária. Não me interessa que seja lá quem for faça seja lá o que for; apenas tento mostrar que há aí uma determinada interpretação muito mais radical do q ue se pode ver a partir da maioria dos discursos políticos dominantes em circulação hoje.
 
Você é crítico de literatura, e agora fala de religião. A religião é literária? Você está propondo que a religião converta-se em recurso para a vida política, assim como outros cânones literários podem ser recursos políticos?
 

TE: Não, não, de modo algum, não. Acho que o movimento de tomar a religião como literatura é, só, um modo para diluir o conteúdo radical que há na religião. É de fato um modo para evitar algumas questões desagradáveis que insistem em nos atormentar. Uma das coisas que aconteceram no século 19 foi que a cultura – literária ou qualquer outra cultura – tentou substituir a religião, e há muita conversa sobre religião como poesia e religião como mito. Foi um modo de fugir de alguns dos desafios difíceis que a religião nos impõe, quando a tomamos com mais seriedade.
 
Você se refere aos desafios políticos?
 
TE: Em termos gerais, sim. Ou, de você preferir, refiro-me aos desafios ético-políticos, Estão esquecidos, ou foram postos de lado, e o cristianismo, sobretudo, foi convertido em peça de poesia, ou de mitologia. Há muita poesia e muita mitologia na Bíblia, é claro. Mas interagem com outros elementos e isso é o que me interessa destacar.
 
Você acha que essas tradições devem ser radicalmente reinterpretadas para o mundo secular, moderno? Santo Tomás de Aquino é um dos autores mencionados em seu livro, mas também são mencionados – talvez com maior ocorrência – Karl Marx e Sigmund Freud. A religião que você defende está mais próxima dos escolásticos medievais ou desses pensadores modernos?
 
TE: Acho que o Evangelho cristão sempre espera reinterpretações contemporâneas. Os teólogos têm de determinar que tipo de discurso, qual o modo contemporâneo de falar, como as falas podem ser mais bem articuladas em assuntos específicos. Deve haver controvérsia e debate. Ao mesmo tempo, Marx e Freud e outros são importantes para essa interpretação contemporânea, o que não implica rejeitar a tradição e só considerar o presente. O presente é constituído de tradição e de história. Em meu livro ofereço o que entendo que seja – embora as ideias venham embaladas muitas vezes em termos de Marx ou Freud ou do pensamento radical – uma interpretação assumidamente tradicional das escrituras.
 
Embora, claro, o cristianismo que você apresenta não soe exatamente igual ao cristianismo que se ouve na esfera pública, sobretudo nos EUA.
 
TE: Acho que isso acontece, pelo menos em parte, porque muitos dos significados autênticos do Novo Testamento foram ideologizados ou mitificados e, por essas vias, foram apagados. A religião converteu-se numa ideologia muito confortável, para uma cultura de cultua o dólar. O escândalo do Novo Testamento – a evidência de que apóia os que os EUA chamam de “losers” [derrotados, fracos, perdedores], e promete aos pobres que herdarão o reino de Deus, os pobres, não os burgueses respeitáveis – tudo isso foi substituído, sobretudo nos EUA, por uma versão idólatra. Trabalho atualmente numa universidade na qual orgulhosamente proclama-se o slogan “Deus, o País e a Universidade Notre Dame.” Acho que é preciso ensinar – e sempre repito, lá – que Deus não liga muito para países e nações. Javé, na Bíblia dos judeus, não tem nem Estado nem nação. Não faz sentido usar Deus como um totem ou um fetiche. Mas é o que se vê. Cada vez que se tenta ‘conformar’ Deus numa dessas modalidades, Deus nos escapa. E vai-se, com ele, a ideia de uma humanidade universal, indivisa. Essas ideologias tornam muito difícil recuperar qualquer versão tradicional do cristianismo.
 
Há várias versões, que competem entre elas, da revelação; há quem creia mais na Bíblia; outros creem mais na autoridade papal. Como discernir entre duas tradições sobrenaturais?
 
TE: Bem, é preciso discutir por meios racionais, considerar as evidências, analisar, construir pesquisa histórica. Nesse sentido, a teologia é uma disciplina intelectual como qualquer outra. Não se pode conhecer pela intuição, nem se pode exigir submissão ao dogma. Não se pode afirmar uma tradição e negar outra; não, com certeza, sem ser sectário. Não creio que haja um modelo, um conjunto de regras fixas, que, num passe de mágica revelará a verdade. A teologia é uma disciplina intelectual como qualquer outra; por hipótese, é um processo argumental infinito, uma discussão sem fim. O que não implica dizer que ‘vale tudo’.
 
Chamou-me a atenção que você reafirma a Teologia da Libertação, que o atual Papa repudiou quando foi Prefeito da Congregação para Doutrina e Fé. O Papa disse que temia que a libertação nesse mundo, pela revolução, fosse tomada como substituta da libertação espiritual, por Cristo.
 
TE: Seria erro grave identificar qualquer sociedade humana e o reino de Deus. Se alguma Teologia da Libertação algum dia disse isso, é preciso rejeitá-la. Não creio que esse seja o motivo pelo qual o Papa rejeitou a Teologia da Libertação. O Papa rejeitou-a, isso sim, por causa de seu fundamento político. Seria erro grave, também, supor que estejamos falando de diferenças entre uma revolução material e uma revolução espiritual. Seria o tipo de gnosticismo que o judaísmo e o cristianismo condenam. Uma revolução socialista pode ser tão espiritual quanto a luta para alcançar o reino de Deus pode ser luta material.
 
Você considera-se cristão per se, ou vê-se como uma pessoa a admira e deixa-se inspirar pelo cristianismo?
 
TE: Acho que o Papa não me consideraria cristão. Fui criado, claro, como católico. Acho que tive sorte, porque, à época do Concílio Vaticano I, encontrei, justamente quando poderia ter rejeitado todas as religiões, em bloco, uma versão muito desafiadora do cristianismo. Entendi que nada havia para rejeitar ali, nem do ponto de vista político nem do ponto de vista intelectual, porque aquele discurso era oportuno, complexo e apaixonante. Em certo sentido, não se pode escolher muito, nesses assuntos. Acabei por perceber que essa herança influencia muito profundamente o meu trabalho, provavelmente mais, ao longo dos últimos anos. Não sei dizer, hoje, que relações mantenho com tudo isso. Mas aí o dilema é apenas histórico, questão de como um homem pode entender-se, ele mesmo, historicamente.
 
Quando você diz que há pouca margem de escolha – ocorreu-me que seria interessante saber por que Richard Dawkins se autodefine como “ateu pós-cristão” e fala sobre celebrações natalinas.

 
TE: Acho, de fato, que ele é ateu pré-cristão, porque ainda não entendeu do que trata o cristianismo, para começo de conversa! É mais ou menos como Madonna autodefinir-se como “pós-marxista”. É preciso conhecer a coisa, para ser pós-a-coisa! Já disse que acho que Dawkins, principalmente, comete muitos erros crassos sobre o que o cristianismo afirmaria. Passa praticamente todo o tempo esmurrando uma porta aberta, espancando um monte de palha.
 
Você disse que ele enfatiza uma versão “proposicional” da fé religiosa, em detrimento de uma versão “performativa”. Mas até que ponto se pode ir, se se crê performativamente em Deus, mediante atos políticos, antes de que a coisa se converta em proposição?

 
TE: Todos os atos performativos implicam proposições. Não faz sentido dizer que operei um ato performativo (por exemplo, uma promessa ou uma ameaça), a menos que eu assuma algumas crenças sobre a natureza da realidade; de fato, prometer é uma instituição, e sou competente para prometer etc., etc., ou não há promessa nem ameaça. O performativo e o proposicional operam um dentro do outro. Mas é erro positivista típico começar pelo proposicional, como alguém que tenta analisar um texto literário – que é basicamente desempenho, performance. Quem não entenda isso, sempre errará do começo ao fim, sobre o tipo de objeto que verá à sua frente. Esses neo-ateus, e, verdade seja dita, também a grande maioria dos crentes, foram arrastados para uma teologia dogmática, e levados a crer que abraçar uma religião consiste em apor a prà ³pria assinatura num conjunto de proposições, como num abaixo-assinado.
 
Há razões políticas por trás desse erro?
 
TE: Recentemente, acredite se quiser, Dawkins e eu fomos convidados a escrever artigos para a primeira página do Wall Street Journal. Não sei de onde saiu essa ideia, de quem ou para quê; não sei, sequer, se algum dia publicarão nossos artigos. Eu disse que escreveria, desde que o texto fosse publicado integralmente até a última frase, que seria: “Jesus Cristo jamais seria aceito como colunista no Wall Street Journal.” Mas é sinal de o quanto esse debate é intenso e estranho: está aparecendo nos lugares mais estranhos. Já invadiu os templos de Mammon, o Demônio! Acho que é porque essas pessoas realmente pensam que religião seja um conjunto de frases, de proposições. É debate muito confortável e antisséptico. Quanto a mim, quando part icipo desse tipo de discussão, só me interessa demonstrar que nada é exatamente assim. Esses debates têm subtexto político muito forte.
 
De volta às questões de fé e razão – suas ideias fazem-me lembrar do modelo de “nonoverlapping magesteria[1]” [aprox. “magistérios que não se sobrepõem”; em inglês, o conceito aparece referido também pela sigla NOMA], de Stephen Jay Gould. O próprio Gould não era crente, embora escrevesse sobre religião e ciência; e algumas vezes foi acusado de abraçar posições que só seriam possíveis para quem não desse qualquer importância à crença religiosa.
 
TE: Acho que Gould não errava nesse ponto [nesse artigo, o autor diz que ciência e religião são confinadas a diferentes domínios]. O mais interessante é que essas ideias enfureçam tanto a turma de Dawkins. Interpretam erradamente a posição de Gould, como se implicasse que a teologia escapasse às regras e exigências da razão. Nesse caso, os teólogos poderiam dizer o que quisessem e argumentar como lhes desse na telha. Como se não tivessem de produzir evidências nem devessem conformar-se às regras da argumentação racional. Agora, escrevem como se nada devessem à ciência. Tradicionalmente, se trata de uma heresia cristã, conhecida como fideismo. Mas todas as racionalidades, inclusive a teológica, foram não-científicas por tempo demais e ainda não estão absolutamente enquadradas nos procedimentos da argumentação racional. Esses neo-ateus cometem o erro de identificar as regras da racionalidade e as regras da racionalidade científica. Então, se algo escapa às regras da racionalidade científica, os neo-ateus concluem que teria escapado às regras da própria racionalidade. Há erro lógico, aí; é um modo errado de argumentar. Dawkins não aceita a ideia de que a fé inclui a razão ou que de que se tenha de discutir o conceito de racionalidade.
 
Os neo-ateus usam camisetas com um grande “A” vermelho, e se autopromovem apresentando-se como “inteligências brilhantes”. Há algum contramovimento? Você gostaria de inaugurar alguma reação? O que você escreveria na sua camiseta?

 
TE: Em vez de meter-me nessa briga, gostaria de sentar no muro e assistir e ver o que acontece. Esse tipo de discussão tem de ser entendida em termos de uma sociedade norte-americana na qual um grupo relativamente pequeno de ateus ou agnósticos arrogantes e pressupostos iluminados enfrentam uma religião pesadamente ideologizada, a qual, bem examinada, é, sim, muito feia. Acho que está errado, e é uma espécie de vício da racionalidade, por as coisas em termos de inteligência. De fato, muita gente crê que será abduzida para o paraíso; muitos desses não são o que se classifica como “inteligentíssimos”, são tolos, de pouca inteligência. Por outro lado, a Europa também está cheia de agnósticos muito tolos. É erro racionalista supor simploriamente que seu adversário seja burro. Assim se vê o que há de errado nesse específic o tipo de ateismo: os argumentos são propostos em termos super intelectuais e proposicionais; e assim se encobre parte importante do problema e não se vê, de fato, muita coisa importante.
 
Você acha que seja acaso que os neo-ateus mais bem-sucedidos, Richard Dawkins e Christopher Hitchens, tenham, precisamente, sotaque britânico?
 
TE: Não, não é acaso. A Inglaterra é uma sociedade muito agnóstica. No que tenha a ver com religião, olham com ironia o comportamento de muitos norte-americanos. Os EUA, é claro, vivem em vários tipos de diferentes confusões. São ainda uma sociedade enormemente metafísica e religiosa; e a cultura capitalista avançada típica é fortemente cética. As sociedades capitalistas avançadas em geral não exigem que seus cidadãos sejam crentes, desde que levantem cedo e trabalhem bastante. São bem pós-metafísicos. Em certo sentido, a Grã-Bretanha também é uma sociedade pós-metafísica. Só uma minoria da população frequenta a igreja. A religião não é parte de um discurso público e político lá, como é nos EUA. Os EUA são caso especial, porque, por um lado, são a mais rampante sociedade capitalista da história e, por outro lado, são sociedade profundamente metafísica. Realmente, essas duas coisas são inerentemente antípodas. Os mercados são relativizantes, pragmatizantes e secularizantes. Mas para impulsioná-los, defendê-los e legitimá-los, é bom ter à mão alguns valores mais absolutos. Por isso, talvez, haja tantos corretores psico-espirituais, na Bolsa de Valores.

[1] GOULD, Stephen Jay, "Nonoverlapping Magisteria," Natural History 106 (March 1997): 16-22.

O artigo original, em inglês, pode ser lido em:
http://blogs.ssrc.org/tif/2009/09/17/religion-for-radicals-an-interview-with-terry-eagleton/


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