No discurso do Dia dos Mártires em Beirute, na 3ª-feira, o secretário-geral do Hizbóllah, Hassan Nasrallah[1] reconheceu, indiretamente, que o acerto político que levou à formação do governo de unidade resultou do entendimento entre sírios e sauditas e, mais importante, que o Irã não é parte desse entendimento. Nas palavras de Nasrallah:
“Também consideramos positivo o encontro sírio-sauditas e somos os primeiros a colher seus frutos. Consideramos positivo qualquer reaproximação na Região. (...) Mais que isso, contamos com que uma reaproximação entre sírios e sauditas estabeleça comunicação entre os dois países. Que haja também uma iniciativa iraniana em direção à Arábia Saudita, ou saudita em direção ao Iran.”
A grande questão agora é saber até que ponto se pode esperar entendimento entre sírios e sauditas também em relação ao Iraque, ou, mais precisamente, se aliança semelhante poderá ter peso crescente durante o período crítico de transição que se inicia, rumo às eleições parlamentares cruciais no Iraque previstas para dentro de dois meses e à retirada dos soldados norte-americanos que começa em 2010.
A Síria, por sua vez, recompensou os sauditas numa questão que impõe tremendo desafio aos interesses de Riad – o Iêmen. Foi muito útil para Riad que a declaração dos sírios tenha surgido um dia depois de Teerã ter condenado veementemente a intervenção dos sauditas “nos assuntos internos” do Iêmen. Damasco soube muito bem capitalizar a gratidão dos sauditas.
A Síria só fez afirmar um simples (dentre outros) princípio das relações entre Estados, ao dizer que “a Síria apóia o legítimo direito do reino saudita de defender sua soberania e a integridade de seu território”. Só isso. E Riad festejou muito. O jovem presidente sírio, Bashar al-Assad é de fato resultado da experiência do bloco antigo – deixa o ferro esquentar sem alarido e só malha ferro realmente quente.
O nexo que aproxima os sauditas e os Taliban
Como publicou o diário al-Watan, do Kuwait, em resumo claro, “Os Estados árabes já entraram no conflito nuclear iraniano.” Afeganistão, Iraque e Iêmen – três diferentes cenários que surgiram, nos quais os sauditas movimentaram-se para enfrentar a crescente influência do Irã na Região. Tudo indica que o Iêmen está cada vez mais tomando a forma de grave crise regional; e Riad enfrenta aqui uma ameaça existencial.
Primeiro, o Afeganistão. Para que não haja dúvidas, a Arábia Saudita aspira a desempenhar papel chave no processo de reconciliação entre EUA e os Taliban no Afeganistão. Parte importante dos fundos que mantêm os Taliban partiram da Arábia Saudita – inclusive durante a fase atual da guerra – e isso não se faria sem certo grau de conivência da inteligência dos EUA. O âmago da questão é que a influência dos sauditas sobre um movimento Wahhabista ‘linha-dura’ no Afeganistão foi sempre considerado “patrimônio estratégico” dos EUA, desde o início do movimento Taliban liderado por Mullah Omar em 1994.
A certeza de que os sauditas interferirão no Afeganistão na próxima fase, sob o pretexto de construir uma reconciliação com os intratáveis Taliban, é objetivo central, à margem do papel que o Irã venha a ter numa futura estrutura de poder em Kabul; nessa medida, Riad atuará em sincronia com os objetivos geopolíticos dos EUA (e do Reino Unido e do Paquistão).
Todos os sinais indicam que Teerã já entendeu o plano de jogo de EUA-Reino Unido-Sauditas-Paquistão. Deve-se esperar que Teerã proteja seus interesses, por medo de que, se o movimento dos sauditas der certo, o Afeganistão seja amanhã convertido em santuário para Jundallah e o grupo de terroristas sunitas que está unido aos Taliban nas atividades de subversão na região leste do Irã.
Bem visivelmente, as declarações dos iranianos sobre o Afeganistão têm ‘endurecido’ nos últimos tempos. Embora reiterem o apoio de Teerã ao governo do presidente Hamid Karzai, os iranianos ter insistido, vociferantes, na imperiosa necessidade de os EUA retirarem-se do Afeganistão. Todos os sinais de que o Irã estaria disposto a trabalhar com os EUA para estabilizar o Afeganistão desapareceram, sobretudo depois do ataque massivo dos terroristas de Jundallah no Irã, ataques nos quais Teerã vê pegadas de acerto firmado entre EUA, britânicos, sauditas e paquistaneses.
Em termos bem claros, pode-se dizer que Teerã está extremamente desconfiada desse condomínio sobre o Afeganistão. Não por acaso, o ministro das Relações Exteriores do Irã, Manouchehr Mottaki, é esperado em visita a Nova Delhi, na 2ª-feira, para reuniões cujo foco será a cooperação com a Índia, para estabilizar o Afeganistão. (A Índia é obcecada com criar uma nova rota, diferente da iraniana, ou, em outras palavras, com conectar os seus vagões aos vagões do Tio Sam, no minuto em que o governo de Barack Obama reconhecer a primazia da Índia na região do Oceano Índico e lançar ao mar a bagagem paquistanesa, incômoda e sem graça.)
Sectarismo versus nacionalismo
Do mesmo modo, o Iraque também está sendo rapidamente convertido em campo de teste para um desafio saudita à influência iraniana. Os sauditas parecem decididos a limar a influência iraniana, apoiando as forças do nacionalismo árabe (como força de oposição ao “sectarismo”). O processo assumiria a forma vaga de apoio a um Iraque futuro que seria “sociedade democrática e pluralista” que incorporaria uma herança nacional iraqueana, na qual a religião tem lugar importante, mas ‘só’ espiritual (diferente, portanto, do que se vê no Irã) – e com ênfase na identidade iraqueana do Iraque.
Há ainda contradições entre as posições dos sauditas e dos sírios sobre o Iraque; Riad, de fato, não manifesta grande simpatia pela antiquada ideologia Ba’ath (iraqueana); mas a aproximação com Damasco está progredindo rapidamente. Os sauditas sentem que é urgentemente necessário ver mais longe, para além da abordagem “um ou outro” em relação ao Iraque, considerando que já há pensamento político moderno no Iraque e que a escolha pela maioria é uma das inevitabilidades da política contemporânea. Riad quer, cada dia mais, comerciar com os grupos xiitas iraqueanos (que incluem personalidades como o Grande Aiatolá Hussein Ismail al-Sadr) e é possível que os sauditas guardem ressentimentos contra a sombra iraniana que paira sobre a política do Iraque.
O presidente do Parlamento [Majlis] iraniano, Ali Larijani, visitou o Iraque semana passada e encontrou-se com o Grande Aiatolá Ali Sistani. O primeiro-ministro iraqueano, Nuri al-Maliki, criticou abertamente as políticas sauditas que, para ele, “não contribuem”. O Iraque também acusou a Síria de oferecer proteção aos agentes Ba'athistas que o Iraque acusa de ser responsáveis pela explosão de um carro-bomba no centro de Bagdá que matou mais de 150 pessoas – o mais violento e mortal ataque terrorista dos últimos dois anos.
Segundo Maliki, todos os esforços que seu governo empreendeu para melhorar as relações com Riad chegaram “a um impasse.” “Todos os sinais confirmam que a posição dos sauditas é negativa em relação aos negócios iraqueanos”, disse ele, repetindo as alegações de Bagdá, de que os sauditas trabalham para aprofundar as divisões sectárias no Iraque, oferecendo apoio e financiamento a extremistas e aos insurgentes da Al-Qaeda.
Em agosto, um grupo de deputados iraqueanos acusaram diretamente os sauditas de estarem empregando Ba'athistas e terroristas da Al-Qaeda, para erradicar a fé xiita no Iraque. De fato, muitos dos terroristas capturados no Iraque são cidadãos sauditas que se alistaram na Jihad contra o que veem como dominação pelos “apóstatas” xiitas.
Um outro Hizbóllah?
Embora os sauditas estejam na ofensiva no Afeganistão e no Iraque, estão fortemente na defensiva, no Iêmen. Como o Iraque e o Afeganistão, o Iêmen também está convertido em paraíso seguro para combatentes da Al-Qaeda. Mas no Iêmen a mesa está fortemente virada contra os sauditas. Os elementos da Al-Qaeda usam o Iêmen como rota de passagem para incursões na Arábia Saudita. A rebelião do clã xiita Houthi, nas montanhas do noroeste do Iêmen também torna altamente volátil a fronteira Arábia Saudita-Iêmen. (Para complicar tudo, há antigas disputas de fronteira entre Iêmen e Arábia Saudita, que podem eclodir, reabertas, a qualquer momento.)
Os Houthis não têm armamento moderno, mas são muito numerosos, muito fortemente motivados e donos de reconhecida competência no uso de minas terrestres. Os sauditas veem a milícia Houthi como uma nova versão potencial de movimento semelhante ao Hizbóllah – baseado em ideais igualitários, de justiça e equidade sociais, com quadros altamente treinados e disciplinados, e em número suficiente para povoar as fronteiras sauditas. Riad vive hoje em estado de virtual paranóia, sobre o que fazer para enfrentar o espectro nascente de um movimento iemenita de estilo Hizbóllah, bem ali, na região da fronteira.
O medo arquetípico de que padecem os sauditas – do qual ninguém fala, porque é medo muito extremamente sensível – é que a região dominada pelos Houthi, do Iêmen do norte, também tem fronteiras com o leste da Arábia Saudita – província sempre agitada, de maioria xiita (além de riquíssima, em petróleo) e que ainda vive em estado de muito sensível ressentimento contra a intolerância dos Wahhabitas.
Relatório de 32 páginas, do mês de agosto passado, da Associação Human Rights Watch, reúne muitas evidências de que a Arábia Saudita vive hoje o período de máxima tensão sectária-religiosa, em anos. Nas palavras de Sarah Leah Whitson, diretora de HRW para o Oriente Médio, “Todos os xiitas sauditas querem que seu governo respeite sua identidade e os trate ofereça-lhes igualdade de condições e tratamento. Apesar disso, as autoridades sauditas tratam essas pessoas, praticamente sempre, com escárnio e desconfiança.”
“O governo saudita há muito tempo vê a população xiita pelo prisma do dogma Wahhabita da estabilidade do Estado, em relação ao qual os Wahhabitas são considerados infiéis e desleais, do ponto de vista nacionalista.”.
Segundo o Relatório da organização HRW, a discriminação do Estado contra os xiitas sauditas vai além das questões de liberdade religiosa. O Relatório cita atos de discriminação na liberdade de educação, nas avaliações judiciais (com juízes sunitas desqualificando frequentemente o testemunho de xiitas, por critérios exclusivamente religiosos), e exclusão na seleção para empregos.
Riad parece não saber absolutamente o que fazer para reagir à crescente fermentação do caldeirão iemenita, sobretudo porque o regime saudita está em transição. Mostrando a tradicional cautela saudita e a disposição de seguir o rumo no qual sopre o vento, Riad tem usado força excessiva contra os Houthis – que denunciaram ataques com bombas de fósforo, pela aviação saudita. Parece que o rei Abdullah já cedeu o bastão à próxima geração, para enfrentar a situação corrente.
Segundo bem informados especialistas norte-americanos, essa nova geração de príncipes sauditas inclinados a usar mais os músculos que o cérebro incluiria o assessor do ministro da Defesa, Príncipe Khaled bin Sultan (filho do Príncipe Coroado Sultan, homem de constituição física frágil); o chefe do serviço de contra-terrorismo, Príncipe Muhammad bin Nayef, que recentemente escapou de um atentado organizado pela Al- Qaeda; o governador de Najran, capital da Província do Leste, Príncipe Mishal bin Abdullah; e o ministro do governo local, Príncipe Mishal bin Miteb, sobrinho do rei.
A jovem geração de autoridades sauditas tem um plano de três faces: criar uma “zona-escudo” [ing. “buffer zone”] no norte do Iêmen, mediante intenso bombardeio contra as comunidades Houthi que habitam a área da fronteira, para forçá-las a recuar; murar os 1.500 km de fronteira com o Iêmen, para impedir a entrada no país dos iemenitas mais pobres; e determinar bloqueio naval do norte do Iêmen, para que os Houthis não possam receber armamento. A eficácia dessa abordagem saudita é altamente duvidosa e pode muito rapidamente criar um “Hizbóllah do Iêmen”, que mais cedo ou mais tarde combinar-se-á com o ressentimento dos xiitas na província do Leste da Arábia Saudita.
Há aí uma bomba-relógio já ativada. Todas as probabilidades indicam que as políticas ‘cabeça-quente’ dos sauditas só acelerarão os resultados menos desejáveis, e podem converter o Iêmen em mais um “Estado gorado”, semelhante à Somália. (Para piorar, os EUA já falam em abrir nova frente da “guerra ao terror”, dessa vez no Iêmen.)
Analistas e comentaristas sauditas alegam que Teerã tem apoiado os Houthis e conta com implantar a confusão na Arábia Saudita. A alegação ainda não foi comprovada, mas a crise está em ebulição. Pode-se supor, dentre outras possibilidades, que Teerã sentir-se-á muito aliviada se o conflito surgir, de modo que Riad fique sem tempo ou energia para desperdiçar com Iraque ou Afeganistão – ou com Jundallah.
Uma coisa é certa. Teerã não tomará qualquer atitude precipitada nem embarcará em aventura de qualquer tipo que venha a comprometer sua reputação como poder regional “responsável”. Ao mesmo tempo, a última coisa que Teerã quer é qualquer tipo de confrontação com os EUA. Os persas têm fino senso histórico e sempre preferiram o cérebro aos músculos. Teerã sabe que, em qualquer caso, está bem localizada para acumular milhagem política, que aumentará conforme aumente o excessivo envolvimento dos sauditas no Iêmen, erro estratégico que maculará a imagem regional de Riad e inevitavelmente produzirá uma resposta-reação dos Houthi (de nacionalismo iemenita). Que essa resposta-reação apareça sob a bandeira do Hizbóllah, ou sob outra bandeira, é detalhe sem importância.
O chefe do estado-maior do exército de Israel, Gabi Ashkenazi, não poderia ter feito melhor resumo de toda essa situação. Em depoimento ao Parlamento [Knesset] israelense, Ashkenazi disse, recentemente: “O Irã é muito radical, por um lado; mas, por outro lado, ninguém pode dizer que seja um país irracional.”
Nota de tradução:
[1] Ver matéria em http://www.nowlebanon.com/NewsArticleDetails.aspx?ID=125807.
O artigo original, em inglês, pode ser lido em:
http://www.atimes.com/atimes/Middle_East/KK14Ak01.html