A verdade sobre o Oriente Médio está soterrada longe dos jornais

Amira Hass foi direto ao ponto, ao dizer, semana passada, que o prêmio que recebera pelo trabalho de uma vida inteira premiava um fracasso. A correspondente na Cisjordânia do jornal israelense Haaretz explicou-se eloquentemente em entrevista ao canal em inglês da rede Al-Jazeera. Recebera um prêmio por seu fracasso, disse ela. Apesar de todos os fatos que ela e seus colegas jornalistas sempre noticiaram sobre a ocupação israelense na Palestina, o mundo ainda não entende o que significa “ocupação” e ainda usa palavras como “terror” e “guerra contra o terror”. Amira está absolutamente certa. A maior parte da imprensa e das televisões ocidentais comportam-se ainda e sempre como se não tivessem qualquer compromisso com a verdade, participando do que Noam C homsky descreveu como “a construção do consenso”.
Uma vez que governos e editorias e diretores de redes de televisão decidam sobre “a pauta” e “a matéria”, todos podem ter certeza de que o muro dos israelenses será convertido em “barreira de segurança” ou “cerca”; que algum ditador árabe pró-ocidente virará “homem forte”; que o território palestino ocupado será metamorfoseado em “território disputado”; e todos os ofendidos e humilhados tornar-se-ão genericamente violentos: a brutalidade terá sido suavizada; e a ocupação da Palestina foi legalizada.

Em junho de 2010, será lançado o livro de Fred Halliday, da London School of Economics, intitulado Shocked and Awed[1] [Chocado e Horrorizado] sobre artilharia e campos minados no front de combate da linguagem. Lá estará a “Guerra ao Terror” – metamos aí nesse lixo as maiúsculas necessárias; e “a Bolha do Mar do Sul”[2], e uma tal “Gitmo”[3] e a tal “rendição extraordinária”[4] (que é, sim, é rendição sob tortura, quer dizer, é rendição muito ‘extraordinária’!), além  de, como Halliday observa, palavras cujo sentido a mídia perverte como, dentre outras, a palavra Jihad.
Mas, na minha opinião, o problema é maior do que isso. Não se trata apenas de um complexo militar-político-jornalístico de Casa-Branca-Departamento de Estado-Pentágono-CNN-Downing Street-Ministério da Defesa Britânico-BBC. Nossos mestres preferem que não saibamos de coisa alguma, nem dos bandidos nem dos mocinhos.

Há anos, um repórter da revista Time no Cairo encheu seu caderninho com fatos sobre a rotina de torturar prisioneiros da polícia egípcia. Mas o embaixador dos EUA no Cairo persuadiu o chefe da sucursal da revista a nada publicar, porque temia que o governo de Mubarak desabasse, ante a denúncia daqueles abusos. Só rindo! A Time nada publicou e, claro, as torturas redobraram. Pouco depois, os policiais egípcios já obrigavam os prisioneiros a estuprarem-se uns os outros.
E nada mudou. As grandes agências ocidentais de notícias que instalaram no Egito as suas sucursais para o Oriente Médio mantêm-se tão longe de tocar nesses assuntos ‘sensíveis’ hoje, quanto há uma década. E o mesmo acontece naquele nosso velho amigo aliado muçulmano, a Turquia. Mas comecemos pelo Cairo.

Quando o “processo de paz” – lembram-se dessa expressão repugnante? – aproximava-se da fase de desfrute, já lá vão quase dez anos, as grandes agências gastaram milhões em novas instalações e novas equipes, todos querendo habitar a coruscante capital da democracia de Mubarak. E o que aconteceu? Como sempre, os serviços secretos egípcios, Mukhabarat, infiltraram seus rapazes em todas as sucursais e agências – ou chantagearam jornalistas egípcios –, para espionarem toda a produção jornalística. Todos os chefes de redação e sucursais de jornais e revistas no Cairo sabem quem são os espiões que trabalham em cada redação. Evidentemente, não podem demiti-los.

Tampouco podem publicar as matérias que seria tarefa daquelas agências publicar e sobre as quais as agências existem para nos informar. Qualquer indício de que esteja em preparação alguma matéria anti-Mubarak – exceção, aqui, foi a corajosa cobertura de um espancamento de mulheres (e também de homens) que participavam de uma manifestação anti-Mubarak, do movimento “Basta!” – e o ministro da Informação imediatamente telefona e manda chamar o chefe de redação ou sucursal que esteja de plantão. Publicar retratações nem sempre ajuda. E as consequências são gravíssimas, se houver reincidência. Pode acontecer de a sucursal ser fechada. Fechada? Fechar os escritórios de jornal, revista ou agência? Depois de gastos aqueles milhões para instalá-los lá?

Essa é a razão pela qual toda a cobertura feita por sucursais do Cairo de agências ocidentais, que denunciem atos de selvageria da polícia egípcia, só repete o que digam ou a ONG Anistia Internacional (que fala de Londres) ou ONG Human Rights Watch; e, imediatamente depois do que tenham dito aquelas organizações, falam as autoridades egípcias, que condenam todas as ONG de direitos humanos. Em outras palavras, o investimento que as empresas jornalísticas e agências ocidentais fizeram na instalação de novos escritórios no Egito acabou por tornar-se mais importante que qualquer compromisso com a notícia. Mas... OK. Falemos do meu assunto favorito: Turquia.
Hoje todos já sabemos que o genocídio dos armênios de 1915 é fato histórico, que 1,5 milhão de homens, mulheres e crianças foram estuprados, esquartejados, queimados e executados a tiros pelos turcos otomanos. Mas relembrei toda a profundidade histórica desse primeiro holocausto do século 20, quando uma amiga minha, Catherine Sheridan, presenteou-me com um livro encadernado em couro da biblioteca de seu falecido marido Don. O livro é Syria, the Holy Land and Asia Minor, de John Carne Esq., impresso por Fisher, Son & Co., da Rua Newgate, Londres, em 1836. E o que, então, o Sr. Carne Esq., viu em Antióquia?

“Dentre os que foram visitados pelas crueldades da revolução grega estava uma senhora armênia, viúva jovem e bonita, cuja marido havia sido assassinado (...) havia horror e tristeza em seu rosto pálido. O golpe, repentino e terrível demais; a casa, o marido, o amor, tudo quanto dera vida àquele coração, cruelmente arrancado (...)”. O marido, claro, fora vítima da guerra de independência grega contra os turcos otomanos – a mesma guerra na qual morreu Lord Byron, em Missolonghi, em 1823. Portanto, os armênios já estavam sendo assassinados quase um século antes de consumar-se o crime do genocídio; de fato, já estavam sendo massacrados às centenas de milhares no final do século 19, antes do genocídio, é claro.

E em que termos os defensores da imprensa ocidental referem-se ao genocídio dos armênios? Aqui, a Reuters, de 13 de outubro p.p., reporta que “sobrevive hostilidade remanescente da Primeira Guerra Mundial e das mortes em massa de armênios, pelos turcos otomanos. Para os armênios tratar-se-ia de genocídio, termo que os turcos rejeitam.” Dia seguinte, a Associated Press: “Armênios e vários historiadores dizem que os turcos otomanos cometeram genocídio contra armênios no início do século passado, acusação que a Turquia rejeita.”

Impossível imaginar a ‘indignação’ universal, se a Reuters falasse de “mortes em massa” de judeus por alemães, nos seguintes termos: “Judeus dizem que os alemães cometeram genocídio, acusação que os alemães da extrema-direita e os neonazistas rejeitam”. Ou se a AP publicasse que “Israel e vários historiadores dizem que os nazistas alemães cometeram genocídio contra os judeus na II Guerra Mundial, acusação (sic) que a direita alemã [etc. etc.] rejeita.” Seria “ultraje”. Mas é claro que ninguém fecharia os escritórios da Reuters ou da AP em Berlim. Em Ancara e em Istambul o problema é claramente outro. OK. Todos podem pedir transferência para o Cairo – onde poderão aproveitar vários de seus talentos para a sofística.

Não, não. Chomsky errou. Não se trata de consensos. Trata-se de construir a omissão social, política e histórica. O slogan é conhecido e simples: "Não resista; ceda sempre à qualquer intimidação".

O artigo original, em inglês, pode ser lido em:
http://www.independent.co.uk/opinion/commentators/fisk/robert-fiskrsquos-world-the-truth-about-the-middle-east-is-buried-beneath-the-headlines-1812300.html
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