Enquanto isso, o comando norte-americano no Afeganistão põe em ação uma estratégia que implica retirar-se do interior do país e concentrar-se em proteger áreas mais populosas (estratégia a qual, vale anotar, foi a escolhida pelos soviéticos e faz lembrar, também, a primeira guerra afegã dos EUA, nos anos 80). As áreas menos populosas do país, segundo essa estratégia, portanto, ficariam a cargo dos mísseis Hellfire dos teleguiados dos EUA. Na última semana, três helicópteros dos EUA – único tipo de veículo que consegue chegar ao interior de um país montanhoso, cujo sistema rodoviário, além de quase inexistente, está fortemente minado – foram derrubados em circunstâncias ainda não esclarecidas (o que também obriga a recordar o desastre soviético na mesma região). Os Taliban redobraram os ataques em todo o país; o bombardeamento das estradas, por exemplo, cresceu 350% em relação a 2007; as baixas de soldados dos EUA alcançaram número recorde e o número de feridos cresce rapidamente; os aliados europeus interessam-se cada vez menos por enviar mais soldados; e os ataques dos Taliban na capital, Kabul, também aumentaram. Tudo isso, apesar da proporção teórica de 12 soldados dos EUA, da Otan e do exército afegão, para cada insurgente Taliban e seus aliados.
Não bastasse tudo isso, o "parceiro" dos EUA, o presidente afegão Hamid Karzai – conhecido nos bons tempos como "o prefeito de Kabul", dado o perímetro coberto por seu sempre muito duvidoso poder – foi declarado "vencedor" em eleições nacionais nas quais as seções eleitorais receberam mais urnas já cheias de votos do que eleitores. Imediatamente depois daquela 'vitória', e em nome de convencer o mundo de que os EUA teriam um efetivo parceiro "democrático" no Afeganistão, desembarcou lá uma impressionante legião estrangeira: o senador John Kerry, Richard Holbrooke e vários outros enviados, ou viajaram até lá ou telefonaram, para sussurrar palavras doces e dar uns trancos no 'parceiro'. Resultado da empreitada, decidiu-se que haveria um segundo turno eleitoral, marcado para 7/11 e cujo destino só poderia ser, como foi e será, piorar tudo. Seja qual for o resultado eleitoral – e, ontem, Abdullah Abdullah, adversário eleitoral de Karzai, já renunciou e anunciou que não concorrerá – a única vitória possível, dia 7/11, será vitória dos Taliban. (E não esqueçamos que, há alguns dias, o New York Times revelou que um irmão de Karzai, conhecido barão da droga, Ahmed Wali Karzai, regular e piamente 'denunciado' pelos funcionários dos EUA, é, de fato, há muito tempo, agente mantido pela CIA e senhor-da-guerra na cidade de Kandahar, ao sul. Se os Taliban estivessem em busca de boa propaganda, aí está a melhor com a qual jamais sonharam).
Com o segundo turno das eleições já consumado como desastre anunciado e pontualmente marcado e cumprido, e com tantos estrangeiros envolvidos no desastre, são tempos de bonança para os Taliban. Palavras como "ocupação", "governo fantoche" e todas as demais já conhecidas, soam cada vez mais verdadeiras aos ouvidos afegãos. Ninguém precisa ser gênio da propaganda para saber dar a esse tipo de situação o uso que mais lhe interesse.
Em quadros como esse, qualquer bom jogador imperial trataria de reduzir os danos. Desgraçadamente, na língua que se fala em Washington, o que aconteceu no Afeganistão não é perfeita definição de fracasso. Na visão economicista corrente, a guerra do Afeganistão passou à categoria de "grande demais para fracassar" – o que não implica reduzir danos; implica exatamente o contrário disso; implica aumentar o cacife ou dobrar a aposta. Em outras palavras: Washington pensa a Guerra do Afeganistão como se fosse a AIG da política externa dos EUA.
Os "dominós", naquele tempo e hoje
Já percebeu, leitor amigo, que quanto mais piora o quadro no Afeganistão, mais os jornalões tropeçam em comparações com o Vietnã? Analogias com aquela contrainsurgência-catástrofe são agora arroz-de-festa. Por mais que obviamente haja pouca semelhança entre o Vietnã e o Afeganistão, em termos históricos e, até, topográficos, há um elemento que os irmana: Washington. Porque é sempre Washington que, pelo que se vê, insiste em inventar semelhanças entre as duas guerras.
O que é que Washington tanto tem a ver com guerras? Como aconteceu de os EUA sempre se meterem em guerras em locais que a maioria dos norte-americanos nem sabe localizar no mapa, guerras que sempre tomam o pior rumo possível, e sempre, de algum modo, tornam-se "grandes demais para fracassar"? Por que, nessas guerras – seja o presidente Democrata ou Republicano – Washington sempre responde com estratégias não para salvar a paz, mas para salvar a guerra?
À medida que as coisas vão de mal a pior, e as chances encolhem dramaticamente, os líderes norte-americanos, como os piores jogadores, afundam-se cada vez mais em apostas impagáveis. Por que, sempre em terras ignotas, sob circunstâncias jamais perfeitamente conhecidas, os governantes norte-americanos convencem-se, sabe-se lá como ou por quê, de que tudo – o destino dos EUA, quando não o destino do planeta inteiro – estaria ameaçado, exposto a riscos terríveis? No caso do Vietnã, essa tendência corporificou-se naquela absurda "teoria do dominó": se o Vietnã caísse, a Tailândia, Burma, a Índia e, por fim, também a California, cairiam em sequência fatal, como dominós apoiados uns nos outros.
Agora, o Afeganistão está convertido em dominó n. 1 da nossa era, e os demais dominós periclitantes no século 21 são todo o mundo que será alvo de grupos terroristas, depois de uma Al-Quaeda fortalecida ter alcançado seu "paraíso seguro" e ter triunfado no interior do Afeganistão. Depois, em outras palavras... primeiro o Afeganistão, depois o Paquistão, depois o cogumelo atômico que cobriria uma cidade dos EUA. Tanto nos anos do Vietnã quanto hoje, Washington sempre acaba hipnotizada pelo que se supõe que seja a única moeda corrente de estatura internacional: a "credibilidade".
Para construir uma estratégia de "menos", para começar a reduzir nossos danos e nos arrancar do Afeganistão, bastaria – e, aí, opera uma espécie de fé que ninguém discute – destruir os inimigos terroristas (no Vietnã, eram os inimigos comunistas). Qualquer coisa diferente disso seria a vitória de um futuro califado islâmico da Al-Qaeda (como, antes, seria o comunismo a dominar todo o planeta).
Hoje, há uma compulsão para salvar a guerra do Afeganistão, muito mais do que para arrancar de lá nossos soldados. Uma compulsão, numa equipe de política externa que já deveria ter aprendido, mas uma equipe que, de fato, ainda não conhece, até hoje, a história de como se construiu o desastre do Vietnã. Infelizmente, os cidadãos não podem dar o primeiro passo e demitir os tais 'conselheiros' e interná-los em algum "Centro LBJ ou George W. Bush de Reabilitação", para reeducação de generais e 'autoridades'. Nem há qualquer programa de desintoxicação em 12 etapas que se possa recomendar aos políticos de Washington viciados em guerra.
A solução "diga não" é complicada, porque não faz progredir as carreiras. Mesmo assim, foi a via escolhida por um alto funcionário – só um – do serviço diplomático dos EUA, Matthew P. Hoh, que enviou carta de demissão ao seu superior civil do Departamento de Estado, na província de Zabul, em setembro passado. ("Falando claramente: não consigo mais entender o sentido ou a necessidade de tantos soldados norte-americanos mortos, nem de tantos gastos para manter o governo afegão. A guerra civil aqui tem já 35 anos. A presença militar dos EUA no Afeganistão só faz tornar mais legítima e mais estrategicamente aceitável a mensagem da insurgência Pashtun. Em vários sentidos, quanto mais os EUA apoiamos o governo afegão, mais contribuímos para separar governo e povo.")
Mais mais, ou menos mais?
Nesse contexto, apesar do drama de novelão inflado pela mídia – Obama está "amarelando"? Escutará ou não o conselho dos conselheiros? E dos generais? –, todos já sabemos, com doloroso grau de certeza, pelo menos uma coisa sobre a decisão que o presidente tomará sobre a guerra do Afeganistão: haverá mais guerra, não menos. O cacife vai subir. Ninguém está cuidando de reduzir nossos danos. Como o New York Times escreveu recentemente, "Dentro do governo, já não se discute se serão ou não enviados mais soldados, mas quantos soldados serão enviados daqui em diante." Em outras palavras, sabemos que, em resposta a uma guerra que praticamente todos nos EUA concordamos que já é um desastre, o presidente acrescentará, em certo horrendo sentido, mais carne ao braseiro.
É verdade que o presidente Obama, até aqui, deixou transparecer muito pouco sobre o que planeja fazer (supondo que esteja planejando algo). O que se diz agora é que, depois de muito divulgadas e noticiadas longas sessões de brainstorming com seu vice-presidente, principais conselheiros, generais, o Conselho dos Chefes de Estado-maior, deputados e senadores e oficiais de gabinete, é possível (mas nada garante) que o presidente anuncie uma decisão antes de partir para Tóquio, dia 11/11.
Mesmo assim, graças à quase infinita rede de vazamentos e futricas que opera em Washington, superativada depois que, há um mês, vazou para Bob Woodward do Washington Post o relatório do general Stanley McChrystal, comandante dos EUA no Afeganistão, sabemos que: todas as opções entre as quais se movimenta o presidente Obama incluem o advérbio "mais" [guerra] (no tempo do Vietnã, falava-se de [sempre mais] "escalada"). Nenhuma opção atualmente em estudo considera a possibilidade de "menos" [guerra]. A alternativa da retirada, pensada ou proposta seja lá como for, diz a imprensa, já foi retirada de pauta.
A maior publicidade está sendo dedicada, é claro à alternativa chamada “Contrainsurgência” [ing. Counterinsurgency, de onde a sigla COIN] apresentada pelo general McChrystal e claramente defendida por outro general, o favorito de George W. Bush para a “avançada” [ing. surge] no Iraque, atual comandante do Centcom, David Petraeus. Conforme essa opção, o presidente aumentaria significativamente o número de soldados norte-americanos em campo para “proteger” a população afegã. O número de soldados extras que se diz estar sendo proposto ao presidente Obama passou por estranho processo de inflação por vazamento para a mídia, ao longo das últimas semanas. De i nício, como publicou o New York Times, o general McChrystal teria exposto três alternativas: um número menor de 10-15 mil soldados (“alternativa de alto risco”); um número intermediário de 25 mil soldados (“alternativa de risco médio”), e um número máximo de 45 mil soldados (“alternativa de baixo risco”). Mais recentemente, sugeriu-se que as três alternativas de McChrystal seriam: 10 mil, 40 mil e 80 mil soldados (ou, possivelmente, entre 44 e 85 mil soldados) – e o general prefere, como se diz agora, 40 mil. Esses soldados norte-americanos, que se estima que estarão no Afeganistão ao final de 2009, mais do que terão dobrado o contingente que lá havia quando Obama assumiu a presidência. O espantoso aumento, para quase 70 mil soldados, até aqui, configura um esforço de guerra mais intenso e menos bem-sucedido.
Em episódio sombriamente cômico, vários ministros da Defesa de países da OTAN aprovaram essa mais robusta opção COIN do general McChrystal – indiferentes ao fato de que seus governos não dão sinais de desejar enviar mais soldados para apoiar a “avançada” dos EUA. (Única exceção até agora foi o primeiro-ministro britânico Gordon Brown, que concordou com enviar pífios 500 soldados ingleses – e cuidou de manter no documento várias cláusulas que lhe permitam não cumprir a promessa.
Além dessa mais recente opção do McChrystal, que implica “mais”, há informações de que três outras opções estariam sendo estudadas, todas representando “menos”. Digamos, para entender bem, que são opções de “menos mais [guerra]”. São elas:
• Concentrar-se na missão de treinamento para o exército e a polícia afegãos, para conseguir afastar-se de ambos, o mais rapidamente possível. De fato, é mais uma opção de “mais” [guerra], porque será necessário enviar para o Afeganistão milhares de novos treinadores e conselheiros dos EUA. Há notícias de que essa seria a opção preferida pelo senador Carl Levin e outros Democratas no Congresso que temem ‘escaladas’ gigantescas à moda do Vietnã e a queda de popularidade ‘doméstica’.
• Manter estável o número de soldados no Afeganistão, aproximadamente no estágio atual, e concentrar-se não na contrainsurgência, mas no que se tem chamado de “contrainsurgência-plus”. Em termos objetivos, significa intensificar o uso dos teleguiados e das equipes das Forças Especiais, com mira nos Taliban do interior do Afeganistão, nos grupos da Al-Qaeda e nos agentes e operadores do Taliban nas regiões das áreas tribais da fronteira com o Paquistão. Essa opção, pelo que se ouve, seria a preferida do vice-presidente Joe Biden, que temeria (muito razoavelmente) que uma maior presença dos EUA no Afeganistão só serviria para mobilizar os afegãos, cada vez mais, contra uma força ocupante estrangeira. Essa opção, que a m ídia dos EUA frequentemente apresenta como se implicasse alguma ‘des-escalada’ e próxima de opção antiguerra, é de fato [também] opção de mais guerra.
• E a opção apresentada pelo senador John Kerry, presidente da Comissão de Relações Exteriores do Senado, que Jim Lobe, do Interpress Service, batizou de “contrainsurgência light”. Nas palavras do senador, implicaria mais treinamento para os soldados afegãos e o envio de talvez 10-15 mil soldados imediatamente. (Como faz sempre, Kerry conseguiu falar e falar, sem dizer nenhum número preciso.) Simultaneamente, esperaríamos que progredissem outros fatores considerados cruciais para o sucesso de uma campanha de contrainsurgência: “que se constituíssem as forças afegãs necessárias para uma parceria com soldados norte-americanos”; [que emergissem] “líderes locais com os quais se po ssa trabalhar”; e [que amadureça] “uma sociedade civil capaz de fazer bom uso dos estímulos para o desenvolvimento que leva tantos benefícios tangíveis para a população local”. Apelando à imagem clássica do controle imperialista, o senador fala de “dar uma cara afegã” à guerra do Afeganistão. Em palavras bem claras, que ninguém diz, trata-se, mesmo, de pôr uma máscara afegã sobre a guerra dos EUA. (Dado que jamais se reunirão todos os fatores cruciais que Kerry apresenta como indispensáveis a qualquer campanha bem-sucedida de contrainsurgência, pode-se dizer que essa opção também é opção de “menos mais” [guerra]).
Pântanos, dilemas e confusões, naquela época e hoje
É possível, é claro, que o presidente escolha uma “estratégia híbrida”, misturando e combinando ingredientes dessa lista. Pode, por exemplo, aumentar o número de bombardeios por teleguiados no Paquistão; aumentar ‘modestamente’, à moda Kerry, o número de soldados; e mandar para o Afeganistão mais treinadores e assessores norte-americanos – pacote que seria apresentado como parte de um plano para pavimentar a estrada de uma futura retirada. O que se sabe com certeza, a partir do que houve ano passado, é que “mais” [guerra], venha sob a forma que vier, sempre será um pesadelo; e ninguém cogita de retirada; e as cartas não mostram qualquer ideia de retirada. Tão cedo, ninguém, em Washington, moverá uma pedrinha para reduzir nossos danos.
Na era Vietnã, havia uma palavra-código para essa situação: “os pântanos do Vietnã”. Estávamos, como dizia uma canção de protesto contra a guerra, “enterrados na lama até a cintura”, e afundando. Se o Vietnã foi convertido em pântano e treva, aconteceu porque os EUA o converteram em pântano e treva. Assim também, em condições um pouco diferentes, o Afeganistão já está convertido em a AIG da política externa dos EUA; e os assessores e conselheiros de Obama são os equivalentes ‘diplomáticos’ do secretário Hank Paulson, do Tesouro de Bush. E acontece lá, como na economia: expandirão a guerra do Afeganistão o quanto queiram; no final, lá estará o contribuindo norte-americano, para pagar a conta.
[...]
Se a guerra do Afeganistão já é, hoje, grande demais para fracassar, o que, santo deus, será essa guerra depois de todas as ‘escaladas’ de que tantos falam? Como no Vietnã, agora também no Afeganistão, camadas e camadas de mitos e ‘previsões’ e ‘projeções’ – toda a mitologia que se chama ‘realismo’ em Washington – já tornou impossível pensar objetivamente sobre a guerra. Por isso desapareceu da pauta a possibilidade de analisar-se seriamente uma alternativa para “menos” ou “nenhuma” [guerra]. Apesar de já poderem ter aprendido, no Vietnã, que nenhuma retirada jamais será desastre maior do que os ‘avanços’, só se cogita de mais guerra, não de menos.
Os EUA passaram por todas as etapas de avanço, retirada e derrota no Vietnã sem ter padecido qualquer grave dano de pós-guerra. Isso, daquela vez. Hoje, os EUA já não são aqueles EUA e não terão a mesma sorte. Os EUA, nós mesmos, já não somos ‘grandes demais para quebra’. E, por favor, ajudem-me a lembrar: “quem, afinal, nos ‘resgatará’ da falência... se for preciso?!”
O artigo original, em inglês, pode ser lido em:
http://www.tomdispatch.com/post/175133/afghanistan_as_a_bailout_state