América Latina: Bicentenário e as heroínas da independência

Caracas, 31/08/2009 – Juana Azurduy ou Manuela Sáenz, Bartolina Sisa ou Gertrudis Bocanegra, Luisa Cáceres ou Policarpa Salavarrieta, as heroínas testemunham a participação feminina na luta pela independência americana da Espanha, façanha cujo bicentenário começa a ser comemorado este ano na América Latina.

Mas, por sua vez, encarnam o solapamento político e historiográfico do papel da mulher, que maciçamente combateu ou sofreu nesse processo de um quarto de século, ente 1809 e 1824.


No dia 14 de julho, a presidente da Argentina, Cristina Fernández promoveu post-mortem ao grau de general a tenente-coronel Juana Azurduy (1780-1862 - foto), que perdeu cinco de seus seis filhos enquanto guerreava pela independência do Alto Peru, hoje Bolívia, dependente de Buenos Aires ao final do período colonial.

Dois anos antes, o presidente equatoriano, Rafael Correa, promoveu também a general Manuela Sánez (1797-1856), a chamada “amante imortal” de Simon Bolívar (1783-1830) e coronel do exército libertador, ao comemorar um aniversário da batalha de Pichincha (1822), da qual participou essa heroína nascida em Quito.

“Isso é política, não é história”, disse à IPS Inés Quintero, vice-diretora da Academia Venezuelana da História. “Não se valoriza o papel da mulher no processo de independência dando mais um título a uma delas, isso não tem sentido, porque a história não é para prestação de contas”, acrescentou.

Segundo a acadêmica, o que ocorre é que “na medida em que o tema feminino rende dividendos em relação à visibilidade que demandam as mulheres, existem alguns ícones, as heroínas, que se incorporam como parte do discurso para se conseguir atenção para a questão da mulher”.

Para Sara Beatriz Guardiã, do peruano Centro de Estudos de Mulher na História da América Latina, “é possível notar uma mudança do discurso diante da importância que ganhou nas últimas décadas o estudo da presença da mulher na história”.

A tendência se encaixa com as comemorações do “ciclo bicentenário”, uma comemoração que começou este ano com evocações dos gritos libertários de 1809 em Quito e La Paz e que seguirá nos próximos anos recordando declarações e batalhas.

Esse processo e o sangrento confronto que o marcou despontaram com movimentos precursores, alguns com inegável presença feminina e com uma cota de heroínas que algumas vezes destaca e outras solapa a historiografia oficial.

É o caso de Micaela Bastidas (1745-1781), esposa de Túpac Amaru II (José Gabriel Condorcanqui, 1738-1781) e sua companheira na rebelião que encabeçou no Peru. Foram executados no mesmo dia, com a menos conhecida Tomasa Condemayta, capitã de um batalhão de mulheres que ganhou batalhas contra as forças espanholas.

Ou e Bartolina Sisa (1753-1782), heroína aymara e mulher de Túpac Katarí (Julián Apaza, 1750-1781), que mobilizou 40 mil indígenas contra o poder espanhol em Alto Peru.

Sisa comandou batalhões e demonstrou dotes de estrategista ao sitiar as cidades de Sorata e La Paz. Vencido o movimento, ela foi cruelmente humilhada e torturada antes de ser enforcada.

“Depois, os criollos (Brancos) conquistaram a independência, indispensável para o desenvolvimento de seus interesses, e as façanhas emancipadoras dirigidas pro índios foram minimizadas e esquecidas, apesar de terem sacudido as bases do sistema colonial”, diz Guardiã em seu ensaio “As mulheres e a recuperação da história”.

Além disso, “a participação destas mulheres foi apagada, com se o fato de ser mulher e morrer pela pátria não tivesse os mesmos significados e a mesma dimensão que as ações dos heróis, todos masculinos, de nossa história”, disse a acadêmica peruana.

As mulheres de novo se destacaram quando se tramou a independência, como Manuela Cañizares (1769-1815), anfitriã dos conspiradores que deram o grito de quito em 1809, ou Maria Ignacia Rodríguez (1765-1817), animadora dos patriotas no México.

Gertrudis Bocanegra (1765-1817) tramou uma rede de insurgentes mexicanos. Capturada por espanhóis negou-se a delatá-los, apesar das torturas, e morreu fuzilada pelos realistas, como eram chamadas as forças que respondiam à metrópole européia.

Empurraram país, filhos, irmãos, maridos ou noivos para que abraçassem a causa, como a chilena Javiera Carrera (1781-1862), adversária dentro do campo patriota do prócer Bernardo OHiggins, ou a neogranadina (colombiana) Policarpa Salavarrieta, grande lutadora clandestina, fuzilada em Bogotá em 1817, junto com seu noivo, Alejo Sabaraín.

A heroína venezuelana mais conhecida é Luisa Cáceres (1799-1866), mulher do general Juan Bautista Arismendi, a quem quiseram dobrar submetendo a jovem grávida a uma atroz prisão entre 1814 e 1816, que a fez perder um filho, e depois com seu desterro.

Na milícia destacaram-se figuras como Azurduy, participante de guerrilhas e importantes batalhas com as de Ayohuma (1813), Potosí e La Laguna (1816), na qual foi ferida e seu morreu seu marido, Manuel Padilla, quando ia em seu socorro.

Sáenz, participante da batalha de Pichinca, após a qual os exércitos colombianos entraram no Peru, acompanhou Bolívar em suas campanhas e tarefas políticas, e após impedir seu assassinato por opositores em Bogotá em 1828 começou a ser chamada de “libertadora do libertador”.

Mas, em toda a guerra participaram muitas outras mulheres, integradas aos exércitos, na retaguarda, na logística (as “soldaderas”) e como combatentes. O falecido historiador venezuelano Vinício Romero recordou à IPS que na batalha de Carabobo (1821) muito provavelmente morreram dezenas de mulheres, de um e outro lado.

No México houve importante participação de mulheres entre as tropas, bem como no exército colombiano (as da hoje Colômbia, Equador, Panamá e Venezuela) e na subregião andina foram incorporadas unidades indígenas, incluindo mulheres, às tarefas da guerra.

Milhares de indígenas acompanharam, por exemplo, o general argentino Juan Alvarez de Arenals (1770-1831), lugar-tenente de José de San Martín (1778-1850) durante sua campanha pela serra peruana em 1819-1820.

A história que não ama as mulheres

“Houve apenas uma única guerra que não contou com participação feminina”, escreveu o jornalista e novelista sueco Stieg Larsson (1955-2005) como abertura da última parte de sua trilogia “Millennium”, que acaba de ser lançada em castelhano.

Como exemplo, o autor de fenômeno literário do momento mencionou que na guerra civil norte-americana (1861-1865) “estima-se que combateram 600 mulheres. O fizeram disfarçadas de homens”.

Em uma reflexão que bem pode aplicar-se à façanha emancipadora americana, Larsson diz: “Aos livros de história sempre foi difícil falar das mulheres que não respeitam a fronteira que existe entre os sexos. E em nenhum outro momento essa fronteira é tão nítida como quando se trata da guerra e do uso das armas”.

Por isso, para Quintero, “a compreensão do processo não aponta para a excepcionalidade, para a heroína, mas para entender que a dinâmica histórica incorpora todos os atores em função de sua condição quando esses acontecimentos ocorrem”.

“Fora do código heróico ou de exceção se poderá compreender o que significou a participação feminina. Por exemplo, que os exércitos admitissem a necessária incorporação das mulheres, mas que as constituições políticas que se seguiram ao seu esforço não lhes reconhecesse participação nos assuntos do poder”, disse Quintero.

É necessário aprender que “as mulheres guerrearam, mas também fugiram, se esconderam, sofreram, semearam, cuidaram de casas, famílias e propriedades, amaram, criaram os filhos e enviuvaram, e também estiveram do lado contrário, como as esquecidas realistas”, acrescentou Quintero.

A historiadora é autora de uma biografia de Maria Antonio Bolívar, irmã do libertador e partidária da coroa espanhola.

Gardia afirmou que “a tendência que prevalece no estudo da história desqualifica como objeto de estudo o âmbito da vida cotidiana e, portanto, as mulheres que atuaram principalmente nesse espaço. Porém, a vida cotidiana está no centro do acontecer histórico”.

Para Quintero, “quando se estabelece distância entre a realidade e seres excepcionais, como Sáenz, não se valoriza na historiografia o papel da mulher mas o significado de uma heroína a partir do código patriótico de que elabora o discurso”.

“Mas isso não tem consequências sobre o significado da mulher na história, nem sobre a vida feminina, nem sobre os problemas da mulher contemporânea”, acrescentou. IPS/Envolverde


(Envolverde/IPS)
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