Lisboa, abril/2009 – Confesso que não sou um admirador de Bento XVI. É verdade que, por ser um agnóstico declarado, talvez se possa duvidar de minha imparcialidade.
Porém, fui um admirador de João XXIII, Paulo VI e João Paulo I e acompanhei com a maior atenção o Concílio Vaticano II, que constituiu uma enorme abertura da Igreja para a sociedade e contribuiu decisivamente para o diálogo ecumênico entre as igrejas, bem como para o diálogo civilizado entre crentes e não crentes, e a favor da paz.
O mínimo que se pode dizer é que Bento XVI não se situa na linha dos papas que o antecederam e continuaram se inspirando no espírito do Vaticano II. Embora João Paulo II tenha dado marcha-à-ré em alguns aspectos de estrita ortodoxia teológica, em outras áreas foi um grande papa, que compreendeu a pluralidade do mundo, dialogou com amplitude em todos os continentes e deu uma contribuição importante para a unidade da Europa, antes e depois do colapso do universo comunista e da União Soviética em particular.
Desde do começo de seu pontificado – para muitos católicos, inesperado – Bento XVI se singularizou por ter dado passos em falso que o obrigaram a tergiversações sucessivas, resultando em uma imagem titubeante e pouco segura. O eminente teólogo católico suíço Hans Kung – que o conhece há muitos anos e com quem teve discussões e divergências – lhe deu, no início, o “beneficio da dúvida”. Porém, em um recente artigo, Kung declara que o papado de Ratzinger representa um lamentável retrocesso na abertura da Igreja Católica para a modernidade.
Na esfera político-religiosa, os espanhóis, por exemplo, tem fundados motivos de queixa. Bento XVI beatificou os mártires religiosos da Guerra Civil, mas apenas os que foram vítimas dos republicanos, enquanto existiram de ambos os lados. Os “mouros”, as tropas a serviço do general Francisco Franco, que com ele passaram do Marrocos para a Espanha a fim de participar da “cruzada nacionalista e cristã”, tinham um gosto especial por atacar os religiosos do campo republicano.
É precisamente no campo das questões divisórias da sociedade contemporânea – como divórcio, casamento entre homossexuais, legalização do aborto e, em geral, os temas da sexualidade – que o papa atual se mostra mais intransigente. Às vezes de maneira inaceitável, mesmo para muitos e, talvez, a maioria dos católicos.
A viagem africana do papa – a Camarões e Angola – foi em si mesma uma iniciativa louvável de todos os pontos de vista. A África é um continente onde a pobreza e as condições de vida são as piores e as mais aflitivas, sobretudo em tempos de crise, já que as epidemias (como aids, tuberculose e outras) encontram condições mais propicias para se propagar, fazendo milhões de mortes que poderiam ser evitadas. Também é o continente onde as promessas dos dirigentes dos países desenvolvidos se revelam mais retóricas, mais ineficazes e, por fim, inexistentes. Me vem à memória um dos últimos discursos de Tony Blair, quando ainda era primeiro-ministro britânico e antes de se converter ao catolicismo. A soma das promessas que fez à África teve como resultado um zero absoluto.
Na primeira etapa de sua viagem, em Camarões, durante um encontro com autoridades muçulmanas – também em si muito oportuno – resolveu atacar os preservativos. Prescreveu a abstinência sexual (na África!), o que significa privar as populações de uma de suas poucas alegrias, e onde o preservativo salvou milhões de pessoas da aids. Porque essa é a verdade. Não é de estranhar que esses dois temas – abstinência e preservativo – tenham prejudicado sua viagem africana e criado uma onda de indignação em todo o mundo. Embora não seja o único, me agrada destacar que um bispo português, Janurio Torgal Ferreira, se colocou contra o papa ao declarar em tom firme que “proibir o uso do preservativo é consentir na morte de numerosas pessoas”.
Felizmente, em Angola o papa corrigiu a pontaria e soube pronunciar palavras que chegaram ao coração dos angolanos. Bento XVI condenou sem meias palavras a pobreza, a corrupção, as desigualdades socioeconômicas e falou da imperativa necessidade de uma divisão mais igual das riquezas angolanas e de maior observância das regras da democracia.
* Mário Soares é ex-presidente e ex-primeiro-ministro de Portugal.
(Envolverde/IPS)